quinta-feira, 30 de julho de 2015

E quando se suspira... pelo fim das férias?

  Por esta altura, muitos são os que vão suspirando pelas férias, enquanto vagueiam pelas fotos de praias de areias finas e águas cristalinas que os seus amigos parecem pôr de propósito no facebook só para, nestes últimos dias antes do merecido dolce fare niente, fazer o relógio andar ainda mais devagar
 Com o Xavier parece ser um bocadinho diferente. Casado e pai de duas filhas, decidiu procurar ajuda porque não gosta das férias: “tirar férias é um tormento. Comigo está tudo bem. Se não fossem as férias, estava tudo ótimo”. Pergunto-lhe se me pode explicar um bocadinho melhor, o que faz, tentando disfarçar a agitação: “ todos os anos vamos de férias para o Algarve. Quinze dias. A minha mulher e as miúdas querem ir para a praia, passear na marina à noite, fazer churrascos, essas coisas… Eu não aguento! No ano passado, tive de ir comprar uma pen para ter net móvel. Tinha de trabalhar! As coisas ficavam atrasadas. Quinze dias sem fazer nada é muito tempo. E elas depois andam sempre de má cara porque quero ficar em casa a trabalhar. Não entendem”.
   O Xavier é um profissional de sucesso. Trabalhador incansável, tem uma vida financeira estável, que lhe permite manter uma boa casa, um carro familiar de alta cilindrada e um outro utilitário, uma casa de férias no Algarve, colégios caros e atividades extra-curriculares para as filhas, etc.
  Mas não só as férias que o inquietam. Os sábados passa-os a trabalhar. Aos domingos, depois do jogo de vólei das filhas (passado, claro, a responder a e-mails de trabalho no i-phone) e do almoço na casa dos pais ou dos sogros, esquiva-se para o escritório lá de casa, adiando, uma vez mais, o passeio de mão dada com a mulher, ao entardecer.
  À noite, por muito cansado que esteja, tem quase sempre grandes dificuldades em adormecer. Ao ar amuado da mulher por (quase) nunca o sentir ali, realmente perto dela, juntam-se as 1001 preocupações de trabalho. Estão sempre presentes, mas teimam em agudizar-se quando apaga a luz.
  Talvez o que o Xavier queira dizer, com o seu apelo, seja qualquer coisa como: transporto tanta angústia dentro de mim, que temo que a única forma de a ir fintando seja esta espécie de hiperatividade funcional (no sentido que Sami-Ali lhe dá). Parar (seja para estar na praia ou numa esplanada a gozar a brisa do entardecer) é ser, brutalmente, invadido por ela. Talvez o que o Xavier queira dizer, com o seu apelo, seja que este registo agitado e híper-funcional em que tem estado mergulhado, ao mesmo tempo que vai (cada vez menos) fintando a angústia, o vai afastando, cada vez mais, de quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos…) o pode ajudar a transformar a angústia em palavras, as palavras em histórias e as histórias em vida. Se o Xavier conseguisse ser mais claro, talvez tivesse dito: ajude-me a entender e a transformar toda esta angústia, para parar de, à boleia do trabalho, fugir dela e, com isso, afastar quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos, etc.) me pode ajudar a desfrutar do trabalho, da esplanada, do pôr-do-sol… da vida.

  Num mundo muito centrado na ideia de sucesso, corremos o risco desta espécie de hiperatividade funcional ser valorizada. Num primeiro momento até pode representar, de facto, ganhos de produtividade e um salto considerável no percurso profissional. Mas, à semelhança do que alguns dizem acerca da dívida de alguns países do sul da Europa, é insustentável a prazo. Correr por gosto não cansa. Já correr por medo (o medo de que à falta de um registo híper-funcional que a sustenha, a angústia tome conta de tudo), tenho para mim, dá maus resultados, a prazo. Talvez por isso o ócio (dos passeios de mão dada na brisa da tarde, às jantaradas de amigos, passando pelas reuniões familiares ou pelo dolce fare niente) seja fundamental para nos apaixonarmos pelo trabalho e, muito mais importante do que isso, pela vida! 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais, está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

Férias, Adamastores e outros gigantes.


O Duarte tem 10 anos acabados de fazer. A festa foi rija. Vieram todos os amigos. Todos menos o Frederico. Os pais acharam que ele tinha de ficar a estudar para o exame de Matemática. Rija, mas dominada pelas conversas acerca do exame da próxima semana. Conversa de pais, claro, que o Duarte e os amigos estavam mais interessados em tirar as teimas do 2-2 que a chamada para entrar da Professora impediu de desempatar.

Miúdo de olhar vivo, o Duarte tem boas notas e muitos e bons amigos. As observações negativas da Professora nunca vão além de um “é muito conversador” (o que, como todos sabemos é, à partida, uma espécie de atestado de vida… na ponta da língua). Os exames não vão mexer-lhe com as notas. Pelo menos de forma significativa. Mas, apagadas as velas, o exame aproxima-se a passos largos. A dois dias do exame, a mãe acorda o Duarte à mesma hora de todos os dias. Não, desta vez, o Duarte não salta da cama com o entusiasmo de quem ainda vai ter 20 minutos para jogar futebol antes de entrar na sala. Está envergonhado. Há anos que não fazia xixi na cama. Voltaria a fazer na noite seguinte, e na que se lhe segue, ainda. “Largou tão bem as fraldas. Nunca foi de fazer xixi na cama. O que se passa com o meu Duarte? Andará a abusar da coca-cola?” interroga-se a mãe para com os seus botões…

A Professora – quase sempre empenhada, dinâmica, afetuosa, segura - ao longo de todo o ano letivo, foi procurando serenar as crianças perante o “fantasma” do exame. Mas, desta vez, a serenidade firme que quase sempre acompanhou o “claro que vai correr bem” em momentos de maior insegurança do Duarte e de cada um dos seus colegas (fosse com as notas ou com os torneios inter-escolas) foi sendo levemente contaminada por uma réstia de preocupação. O suficiente para o “claro que vai correr bem” não soar da mesma maneira ao Duarte & Companhia. A Professora – quase sempre bem preparada, segura, empenhada, dinâmica e afetuosa - temia, agora, ainda que ao de leve, que uma possível discrepância entre os resultados da sua avaliação durante o ano e os do exame nacional pudesse abrir o flanco para mais uma pequena bicada (a juntar a outras bem mais substanciais, como a falta de colocação que a tem assolado nos últimos anos) na sua autoestima profissional.

Os pais do Duarte sempre tiveram muito orgulho nas suas notas. Para além disso, sabem bem que, por mais que as notas sejam importantes (e são!), estão longe de ser o mais importante! Orgulham-se, por isso, da “pinta” do filho, das suas fintas e golos e, muito em especial (mais ou menos secretamente), das suas saídas desconcertantes. Como a Professora, o seu “vai correr tudo bem” (seja a propósito das fichas de avaliação, do teatro da festa de Natal, da apresentação pública de viola ou da prova de natação) é quase sempre sereno, firme e afetuoso. Mas, como acontece com a Professora, desta vez parece ser dito com um nadinha de apreensão no olhar. Afinal de contas, um exame nacional é um exame nacional. A Escola mudou muito nas últimas décadas, mas não vá o diabo tecê-las: pairam no ar, lá bem longe, já difusas, as histórias de avós e tios com os exames de 4ª classe, em tempos idos, de muito maior rigidez.
O Duarte tem muita vida no olhar, uma Professora e pais firmes, seguros e afetuosos (ainda que, muito circunstancialmente, possam, porventura, estar a vacilar um bocadinho). Passados três ou quatro dias, a atenção regressa à bola e às balizas, à piscina e à viola, e o controlo dos esfíncteres está de regresso como se nunca tivesse tirado férias para os exames. Felizmente, há muitos Duartes, com pais e professores tão seguros, firmes e afetuosos como os dele. Quando assim é, na pior das hipóteses, os Duartes até podem, muito circunstancialmente, abanar um bocadinho com os exames. Mas nada que não se resolva num abrir e fechar de olhos…
Mas, e se o nadinha de apreensão da Escola, dos Professores e dos pais se transforma numa pressão tal (mais ou menos silenciosa) que, rapidamente, se torna ingerível para qualquer criança? Exigir o melhor do esforço de cada criança está longe de ser sinónimo de pressão alta!

Tenho dúvidas se, do ponto de vista pedagógico, os exames nacionais no 1º ciclo trarão, no contexto atual, muitos ganhos. Mas estou plenamente convencido que, seja como for, o que não fará sentido nenhum é criar-se uma atmosfera tal em torno dos exames das crianças que, de repente, aquilo que até poderia ser visto como uma espécie de “treino precoce de adaptação” para os exames que hão-de vir nos anos mais avançados do Ensino Secundário (ao mesmo tempo que, de uma forma transversal, aferia conhecimentos e competências) se transforme num verdadeiro Cabo das Tormentas (com direito a Adamastor e tudo!), que é preciso dobrar antes das férias grandes. Afinal de contas, exigir o melhor do esforço de cada criança estará muito longe de significar pressão alta!
A fazer fé nas notícias sobre um artigo de opinião inglês (que se tornaram virais nas redes sociais) que sugere que o medo do fracasso está, a passos largos, a querer, nas crianças, destronar o medo do escuro (e que, de resto, coincide, em certo sentido, com aquilo que vou sentindo no trabalho com crianças e pais) será caso para dizer, “mal por mal, volta bicho papão, estás perdoado!”.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

Transparências

Parecia não ouvir uma palavra das minhas interpelações, enquanto jogávamos futebol. Ele fazia-o com muita arte, mas de forma quase displicente. Parecia estar com a cabeça em todo o lado menos naquele campo improvisado. Facilitei, de forma bem disfarçada (achava eu!) a entrada de um golo seu, para puxar pela competitividade. Nesse exato momento, aquele menino, aparentemente alheado, pára, olha-me nos olhos e diz-me: tu deixaste entrar o golo de propósito! 
Fiquei gelado. Acho que nunca, até esse dia, tinha percebido tão bem o quão somos todos tão competentes a lermo-nos uns aos outros. Por mais desatentos que possamos parecer à primeira vista...


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

A saúde mental faz bem ao PIB.

A Maria faz parte dos quadros da função pública há mais de 20 anos. Não está na secretaria por estes dias. Já conta com 3 baixas psiquiátricas no currículo. Depressão diz o relatório. O Jovenal, mais sonolento a cada dia que passa, não dorme 3 horas seguidas vai para um ano. À noite, apaga a luz e acende-se a angústia. As preocupações, que o cansaço e a ocupação vão adormentando durante o dia, vêm em catadupa, aos trambolhões, na hora de dormir. Parte da fatura tem sido paga pelas máquinas industriais: a rapidez e eficiência com que sempre as reparou e afinou têm vindo a diminuir a olhos vistos. As linhas de produção ressentir-se-ão em breve. E, com elas, a faturação da empresa. 

Vinha correndo bem a vida ao jovem Inácio. Os contratos avultados de exportação que conseguiu fechar aceleraram-lhe o futuro promissor na gestão. Mas a ascensão meteórica está agora entalada. No 1º semestre do ano, não conseguiu um único novo cliente internacional. Não, não perdeu a visão estratégica nem o tato para o negócio. Mas as horas antes das reuniões com os clientes passaram a ser ocupadas por 1001 estratégias para não ter de lhes apertar a mão. As horas depois, com 1001 estratégias para que ninguém percebesse que as ocupava, quase na totalidade, a lavar as mãos com tudo o que é desinfetante. 

A promoção da saúde mental (através da psicoterapia, nomeadamente) é, antes de mais, uma questão de humanidade e equidade social – justificação muito mais do que suficiente para a implementação de uma estratégia integrada de saúde mental. Mas, na era em que tudo cabe num indicador económico, é bom lembrar o mais recente relatório da OCDE sobre esta matéria. Dele parece decorrer que os gastos com uma estratégia sustentada de promoção da saúde mental não são bem custos. Serão antes investimento com retorno. Às poupanças com baixas e prestações sociais, junta-se um aumento significativo da produtividade do trabalho. Nós não andávamos a precisar desesperadamente de fazer crescer o PIB?!



(Inspiração: http://www.oecd.org/employment/fit-mind-fit-job-9789264228283-en.htm)


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue -  sendo, por vezes, inspirado em histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

Violências



Capas de jornal. Aberturas de noticiários televisivos. 
Foi assim, durante dias, há um par de meses: a mediatização de casos de natureza, contexto e gravidade diferentes, mas com um padrão que os liga: a violência.
Nunca, em contexto profissional, conheci ninguém com comportamentos reiteradamente violentos (sejam crianças, adolescentes ou adultos) que não tivesse uma história marcada por um sofrimento muito significativo. Nunca. 
Uns, tão habituados a um registo omnipotente, quais principezinhos do quero-logo-acontece, que nunca tinham aprendido (por falta de sinais claros e consistentes de STOP ou de quem os tivesse ajudado a configurar a dor da frustração) a expressar de modo adequado a dor aguda da “derrota”. Quando ela, mais tarde ou mais cedo, acontece, a violência impulsiva surgia assim como uma resposta mais ou menos inevitável.
Outros que, sentindo-se quase invisíveis de tão pequeninos se sentirem, nas mais variadas circunstâncias (por acumularem experiências repetidas de amesquinhamento e humilhação, por exemplo), apanhavam a boleia protetora do grupo ou de qualquer outra capa de poder para, através da violência sobre os mais frágeis se sentirem, nem que fosse por breves momentos, os todo-poderosos (talvez seja isso que acontece com alguns grupos de delinquentes que se mascaram de adeptos de futebol, com alguns abusos violentos em algumas praxes académicas, com alguns casos de bullying ou com um ou outro caso de violência policial perfeitamente injustificada). 
Outros, ainda, bem ao jeito do Fight Club, pareciam sentir-se tão zombies (quantas vezes com história de episódios repetidos como vítimas de violência) que (à falta da liberdade interior de verem o coração bater mais forte com um pôr do sol em Santorini, um filme, uma música, um olhar ou um abraço) a dor dos murros e pontapés que dão e levam parece ser das poucas coisas que lhes liberta adrenalina nas veias, fazendo-os sentir um bocadinho menos adormentados, um bocadinho mais vivos, paradoxalmente.

Estou, com isto, a querer desculpabilizar este tipo de comportamentos? De modo nenhum. As regras parentais, as normas sociais e os regulamentos legais - assim como as consequências (firmes, coerentes e proporcionais) que devem decorrer da sua violação - são essenciais para proteger aqueles que estão numa posição mais frágil e para parar quem não parece conseguir gerir minimamente a sua agressividade. 
Sendo a perspetiva punitiva essencial, talvez já não faça é muito sentido dividirmos o mundo rigorosamente a meio: bons para um lado, maus para outro. Tendo a violência uma dimensão muito significativa de responsabilidade individual à qual ninguém deve poder fugir, a verdade é que parecem haver condições ambientais (a qualidade dos cuidados parentais em primeiro lugar, claro está, mas também a aposta clara em saúde mental, ou as oportunidades para educar a expressão emocional – pelo brincar livre, pela expressão artística e corporal, pela rivalidade dentro de um quadro de regras claras, que muitos desportos proporcionam, etc, etc.) que a podem tornar bem menos provável.

Perdoem-me a “lamechice”, mas não resisto a citar, a este respeito, o Nélson Mandela (ele que sendo, com inteiríssima justiça, um dos símbolos maiores do melhor que a humanidade alguma vez foi capaz de fazer, não deixou, durante um curto período do início do seu percurso público, de ser um defensor da violência feroz como arma contra violências maiores): “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

Auto-lesões


Numa leitura mais apressada, as autolesões podem ser vistas como mais uma forma de chamar a atenção. Mas são (quase sempre) muito mais do que isso! 
Chamadas de atenção serão, tenho para mim, movimentos muito mais saudáveis de crianças (e adultos!) que nos tentam vencer pelo cansaço (muito ao jeito do “já chegámos?” do burro do Shrek), de adolescentes que marcam as suas posições de forma mais ou menos inflamada, ou de adultos que se aperaltam impecavelmente para tentarem brilhar numa festa. Não! Magoar-se a si próprio não é uma simples chamada de atenção! Ninguém se magoa a si próprio – tenho para mim - à margem de uma dor tão difusa e tão sem lugar, que não está a conseguir encontrar em nenhum colo, em nenhum olhar, a capacidade de a acolher, de a deixar chorar, de a legendar e de a reparar, por fim. Tal qual um beliscão na mão nos distrai, ainda que só por breves momentos, de uma dor de dentes mais ou menos insuportável, uma autolesão pode servir, assim, como uma anestesia momentânea para uma dor mental mais ou menos aguda. Não! Quem se magoa a si próprio, de forma reiterada, não está a fazer uma mera chamada de atenção! Sim! Precisa de ajuda (urgente)!

(Inspiração: http://www.alert-online.com/pt/news/health-portal/autolesao-aumenta-entre-os-jovens-portugueses)

Porque é que as pessoas deprimem?

Abundam as explicações. Umas sublinham o papel de desregulações bioquímicas no cérebro. Outras – com as quais mais me identifico - relevam especialmente o papel das experiências e relações interpessoais. Claro que os neurotransmissores intervirão no processo. Não há muito como imaginar, à luz das neurociências do século XXI, que as experiências e as relações muito marcadas por mal entendidos, que nos fazem sentir mais ou menos abandonados, mais ou menos medrosos, mais ou menos incapazes, mais ou menos incompreendidos e mal-amados … não se reflitam na bioquímica nervosa. O mesmo acontecerá, naturalmente, com as experiências mais ou menos traumáticas. Mas, se as pessoas deprimem (ou, pelo contrário, se agarram à vida) também em função da qualidade das suas experiências e relações interpessoais, talvez não faça, de facto, muito sentido imaginar o tratamento da depressão (ou da ansiedade, por exemplo) à margem de um espaço que lhes permita, ao olhar para dentro, encetar um rearranjo sustentado de padrões relacionais.
(Inspiração: http://psychcentral.com/news/2013/05/29/hundreds-of-studies-back-benefits-of-psychotherapy-for-depression/55370.html)

Plasticidade cerebral

Há muito que se intuía. A investigação com técnicas de imagiologia cerebral tem, aparentemente, vindo a confirmá-lo, estudo atrás de estudo: a ausência de vínculos relacionais sólidos parece alterar aspetos muito significativos da arquitetura do sistema nervoso.


(Inspiração: http://www.iflscience.com/brain/neglect-childhood-leaves-marks-brain)


E as psicoterapias?

Tempos houve em que, com a vertigem positivista, se chegou a pensar que o sofrimento mental (nas suas várias intensidades e apresentações sintomáticas) e, por contraste, os rasgos de felicidade, se resumiriam a neurotransmissores e circuitos neuronais. Foram, porém, os avanços nas neurociências que vieram ajudar a demonstrar que, felizmente, somos muito mais do que picos de dopamina ou serotonina: as relações humanas (também as psicoterapêuticas, em algumas circunstâncias) serão essenciais na reparação das feridas que outras relações foram abrindo de forma mais insidiosa ou mais abrupta. É, parece que um sistema que acarinha a saúde mental tem um espaço (muito mais do que marginal) para as psicoterapias.


(Inspiração: http://www.bbc.com/news/health-30150746)




Pode o smartphone substituir a poltrona do consultório?

As novas tecnologias são uma bênção. Democratizaram o acesso à informação. Permitem-nos contactar, de forma fácil e barata, com pessoas do outro lado do mundo, etc., etc. Não há, por isso, nenhuma razão para não pensar que não possam ser úteis em saúde mental (como uma medida, muito circunstancial, de 1ª linha, por exemplo).
Mas (como muito bem lembrava uma cervejeira, num anúncio muito bem conseguido, a propósito da amizade), em nenhuma circunstância, as novas tecnologias substituem o contacto olhos nos olhos. É assim nas relações pessoais. Acho, por maioria de razão, que é assim nas relações terapêuticas.
Perspetivar o tratamento da depressão (ou de qualquer outro sofrimento condensado num quadro clínico) essencialmente em torno de uma plataforma online é dar de barato que basta um quadro diretivo de indicações e monitorizações para a tratar. E eu acho, convictamente, que está muito, muito longe de bastar!
Perspetivar o tratamento da depressão (ou de qualquer outro sofrimento condensado num quadro clínico) essencialmente em torno de uma plataforma online é passar por cima daquilo que me parece uma evidência: fomos feitos para olharmos dentro dos olhos uns dos outros!

Parece-me que ninguém deprime à margem de experiências e relações muito marcadas por mal entendidos que, por um ou outro motivo, fazem as pessoas sentir-se mais ou menos abandonados, mais ou menos incompreendidos e mal-amados, mais ou menos medrosas, mais ou menos incapazes…

A ser assim, parece-me que não há tratamento sólido e efetivo que possa passar à margem de um espaço – olhos nos olhos - que permita, ao olhar para dentro, reconstruir padrões de relação mais saudáveis (que, rapidamente, se reflitam na relação consigo e com os outros significativos, com o trabalho, o sonho, a esperança e o entusiasmo…). Dito de outro modo, acho que não há nenhum programa online, por mais bem desenhado que esteja, que possa substituir a relação inerente a uma psicoterapia ou acompanhamento psicológico. 

quarta-feira, 29 de julho de 2015

O otimismo faz bem à saúde! Mas...

O otimismo faz bem à saúde! Mas, por mais que todos gostássemos que assim fosse, o tão na moda “pensar positivo” não acontece por decreto. E, por paradoxal que possa parecer, tenho para mim que será tanto mais verdadeiro (ou, dito de outro modo, um verdadeiro sucedâneo da esperança) quando mais abre espaço para a tristeza se manifestar – não para passar a vida a choramingar num registo vitimizado, mas para “chorar” à séria as perdas com que, mais tarde ou mais cedo, todos nos vamos confrontando. Não deixando de ser importante nas mais variadas circunstâncias, a dada altura temo que todo o discurso, muito em voga, sobre otimismo possa dar a ideia de que “chorar” as perdas é quase um sinal de fraqueza! E é tudo menos isso: 1) será, antes de mais, um selo de qualidade das relações interpessoais (ou não precisássemos todos de um “colo” de qualidade certificada para nos deixarmos ir abaixo); 2) talvez seja condição necessária para, partindo da elaboração das perdas, fazer crescer, dentro de nós, um grito genuíno de “faz-te à vida” (… o motor do empreendedorismo). 

Empreendedorismo sim! Mas...

Fui-me habituando a estudar em alguns artigos e manuais, primeiro, e a ver com a ponta dos dedos mais tarde, na minha vida quotidiana e, principalmente, no meu trabalho clínico que parece haver uma espécie de dinâmica interna que nos ajuda a amortecer os choques do mundo exterior e nos instiga a fazermo-nos à vida, mesmo nas circunstâncias mais adversas.
A este processo foi-se chamando, em algumas circunstâncias, resiliência. Fui-o imaginando como uma espécie de almofada que condensa a memória de todos os aqueles momentos ímpares em que nos sentimos rigorosamente no mesmo comprimento de onda de alguém, numa lógica de: “com abraços firmes como este para me abrigar a cada tempestade, podem chover picaretas que ninguém me pára!” Esta espécie de certeza interior inquebrantável, que nos instiga a mover montanhas e a enfrentar dragões, é fundamental!
Neste contexto, talvez faça sentido pôr uma tónica especial no discurso do empreendedorismo. Afinal de contas, em nenhuma circunstância, as pessoas deixam de ser corresponsáveis pelo seu percurso de vida. Mas, ao contrário do que um certo discurso às vezes parece querer dar a entender, o “fazer-se à vida”, sendo essencial, pode não ser suficiente para as coisas correrem bem. Quando abusamos da narrativa do empreendedorismo, talvez estejamos, todos, a construir um discurso excessivamente culpabilizante, muito pouco promotor da saúde mental e, paradoxalmente, muito pouco amigo do empreendedorismo, ferindo-o de morte, por overdose.
É, evidentemente, essencial “bater punho”, com alma e engenho, para ter sucesso. Mas, não creio que a fórmula simplista: “se não consegues emprego/sucesso é porque não tentas suficientemente” (que, no limite, poderá decorrer de certos discursos mais ou menos fundamentalistas), ao colocar o alfa e o ómega da responsabilidade exclusivamente no individuo, promova o empreendedorismo seja de quem for. E, mais importante: talvez esteja muito longe de se sintonizar com a humanidade das pessoas… a maneira mais efetiva (se não a única) de puxar verdadeiramente pelas suas competências.

(Inspiração: http://www.bbc.com/news/uk-30803492)