Os
pais do João acabam de chegar da reunião com a Diretora de turma. Apesar dele
nunca ter tido notas tão exemplares quanto a irmã mais velha, sempre se foi
safando com alguma facilidade. Ainda que o seu lado irreverente lhe tenha,
sempre, barrado o acesso ao epíteto de exemplo para a turma (que a irmã foi colecionando
ano após ano) nunca, no seu percurso escolar, os pais tinham ouvido queixas
graves acerca do seu comportamento. Agora no 11º ano, “quando devia estar
preocupado com a média” nota o pai, acumulam-se as faltas. E as negativas. E os
repentes impetuosos com a Professora de Educação Física ou o Professor de
Química. A juntar a um clima de grande crispação com a mãe e de distância tensa
com o pai.
Os pais estão muito zangados com o João: “Nunca
a irmã (já no 1º ano da Faculdade) nos deu dores de cabeça assim” pontua o pai.
E muito preocupados: “ele só quer boa vida. Falta às aulas. À 5ª, 6ª e sábado à
noite não para em casa. Eu digo-lhe que é melhor ficar em casa a estudar, mas
quando dou conta ele já saiu. Eu sei lá com quem é que ele anda” nota a mãe.
Decidem, de imediato, que o João terá de
tirar o piercing que, orgulhosamente,
ostenta na sobrancelha. A discussão aquece muito para lá do razoável até que o
João corre para o quarto, deixando soltar as primeiras lágrimas só depois de
bater a porta com estrondo.
Na 6ª feira seguinte, enquanto o João ultimava, cuidadosamente, os pormenores do seu estilo milimetricamente “maltrapilho” (como, jocosamente, lhe chama o pai) a mãe diz, mais uma vez, ao João para não sair. Já ele tinha entrado na porta do elevador e ainda a mãe discursava acerca dos malefícios do sair à noite com tanta frequência, na sua idade. A história repetiu-se no sábado seguinte. E nas 5ª, 6ª e sábados que se lhe seguiram.
Na 6ª feira seguinte, enquanto o João ultimava, cuidadosamente, os pormenores do seu estilo milimetricamente “maltrapilho” (como, jocosamente, lhe chama o pai) a mãe diz, mais uma vez, ao João para não sair. Já ele tinha entrado na porta do elevador e ainda a mãe discursava acerca dos malefícios do sair à noite com tanta frequência, na sua idade. A história repetiu-se no sábado seguinte. E nas 5ª, 6ª e sábados que se lhe seguiram.
A relação entre o João e os pais parece, cada
vez mais, uma espécie de guerra fria. A tensão permanente no ar só
se materializa em conflito aberto quando o assunto é o piercing. E, aí, não
é difícil imaginar que ultrapassa todas as regras do bom senso.
Talvez
o João precise de ajuda para se encontrar no turbilhão de coisas que vai
sentindo dentro de si. Talvez os pais precisem de quem os ajude a
sintonizarem-se com o João. Falam do medo quanto ao futuro do João. Mas mantêm sob
silêncio (talvez na esperança de o fazer desaparecer) o fantasma de não serem
bons pais ou do João, verdadeiramente, não gostar deles.
Se o João conseguisse traduzir o que sente em
palavras tão bem como traduz as letras dos Muse e dos Pearl Jam para as suas
colegas, talvez pudesse dizer aos pais que, por mais que tenha 1,80 m e barba
de homem, precisa muito dos pais. Para lhe balizarem o crescimento com regras
claras e firmes, por um lado, e para o segurarem num abraço, por outro.
Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as tácticas em noite de Liga os Campeões, talvez pudesse dizer aos pais que morre de medo de, aos seus olhos, nunca chegar aos calcanhares da irmã. Que as suas negativas não são resultado de incapacidade ou de preguiça (como poderiam pensar os mais distraídos). Que acontecem muito mais em função de estar muito receoso relativamente ao seu próprio valor e que, nessas circunstâncias, às vezes, se adota uma postura sobranceira de: “se eu quisesse tirava boas notas, eu é que não estudo”, que é assim uma maneira de nunca se por à prova!
Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as tácticas em noite de Liga os Campeões, talvez pudesse dizer aos pais que morre de medo de, aos seus olhos, nunca chegar aos calcanhares da irmã. Que as suas negativas não são resultado de incapacidade ou de preguiça (como poderiam pensar os mais distraídos). Que acontecem muito mais em função de estar muito receoso relativamente ao seu próprio valor e que, nessas circunstâncias, às vezes, se adota uma postura sobranceira de: “se eu quisesse tirava boas notas, eu é que não estudo”, que é assim uma maneira de nunca se por à prova!
Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como faz a sua
guitarra soar os acordes das músicas dos The Cure, talvez pudesse dizer ao pai
que sente muita falta de quando iam ao estádio só os dois ou quando os jogos do
Porto na TV eram uma espécie de ritual sagrado vivido a dois. E que, de cada
vez que o pai não toma a iniciativa para esses programas a dois, outrora
invioláveis, se sente um bocadinho abandonado e com medo de não passar de uma
desilusão para o pai. E que chorou, sozinho no quarto – por se sentir
abandonado e desvalorizado de uma assentada - quando foi ignorado pelo pai, que
queria ver o debate na TV, quando, pela primeira vez, o interpelou para
discutir política. Vinha entusiasmado dos dias em que passou fora, com o primo mais
velho, na Queima das Fitas: para além dos concertos, da festa, e das cervejas à
beira rio, o grupo de amigos do primo discutia política como se fossem mudar o
mundo numa só noite.
Se
o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem quanto interpreta o
espírito do futebol amador quando se esfalfa num ou noutro jogo em casa, talvez
pudesse dizer à mãe que, por mais que proteste, se sente protegido e amado de
cada vez que ela é mãe galinha. Mas que, de cada vez que ela e o pai não o
impedem, com firmeza, de fazer o que não é melhor para si (como nas saídas à
noite em catadupa) - e, por mais que isso, num primeiro momento, até o possa fazer
sentir triunfante (à semelhança de uma criança que, repetidamente, leva a
sua avante com a birra de supermercado) - acaba sempre por o fazer sentir
sozinho e um bocadinho inseguro em relação ao amor dos pais, numa lógica de: “se
eles gostassem mesmo, mesmo de mim, não me deixavam (custasse o que custasse) fazer o que não é melhor para mim”! Se assim fosse, talvez pudesse falar
com os pais, com um primo ou com um amigo mais próximo da discrepância que
sente entre a popularidade que tem entre as raparigas e o medo imenso de se
chegar com convicção à Margarida do 11º C, por quem suspira intervalo após
intervalo e, com quem parece estar a perder terreno a olhos vistos para o
betinho do 12º A. Talvez pudesse dizer aos pais que, por tudo isto
e muito mais, carrega, dentro de si, um misto de medo, mágoa e raiva. E que este turbilhão - que só parece poder tornar-se mais ou menos manifesto à
boleia de um braço de ferro à volta de um piercing na sobrancelha - parece servir de pano de fundo a
todos os desencontros que tem vindo a acumular com a vida.
Tudo parece passar-se, com o João e os pais (e com tantos e tantos adolescentes,
adultos e crianças) como se, de repente, estivessem sentados no mesmo banco de
jardim, de costas uns para os outros, numa qualquer tarde solarenga de Outono. O que mais queriam era aproximarem-se,
sentarem-se lado a lado, frente a frente, entenderem-se de uma vez. Mas chegada
a hora da verdade, de tão destreinados que estão em falar claro (numa espécie
de ligação direta entre o que sentem e o que põem em palavras), os apelos
(toldados pelo medo e pela mágoa) teimassem em sair, invariavelmente, em forma
de chega para lá… como que à espera de um descodificador que lhes devolva a
simplicidade do falar claro.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.