domingo, 18 de outubro de 2015

Dores de crescimento

  Os pais do João acabam de chegar da reunião com a Diretora de turma. Apesar dele nunca ter tido notas tão exemplares quanto a irmã mais velha, sempre se foi safando com alguma facilidade. Ainda que o seu lado irreverente lhe tenha, sempre, barrado o acesso ao epíteto de exemplo para a turma (que a irmã foi colecionando ano após ano) nunca, no seu percurso escolar, os pais tinham ouvido queixas graves acerca do seu comportamento. Agora no 11º ano, “quando devia estar preocupado com a média” nota o pai, acumulam-se as faltas. E as negativas. E os repentes impetuosos com a Professora de Educação Física ou o Professor de Química. A juntar a um clima de grande crispação com a mãe e de distância tensa com o pai.
   Os pais estão muito zangados com o João: “Nunca a irmã (já no 1º ano da Faculdade) nos deu dores de cabeça assim” pontua o pai. E muito preocupados: “ele só quer boa vida. Falta às aulas. À 5ª, 6ª e sábado à noite não para em casa. Eu digo-lhe que é melhor ficar em casa a estudar, mas quando dou conta ele já saiu. Eu sei lá com quem é que ele anda” nota a mãe.
 Decidem, de imediato, que o João terá de tirar o piercing que, orgulhosamente, ostenta na sobrancelha. A discussão aquece muito para lá do razoável até que o João corre para o quarto, deixando soltar as primeiras lágrimas só depois de bater a porta com estrondo.
  Na 6ª feira seguinte, enquanto o João ultimava, cuidadosamente, os pormenores do seu estilo milimetricamente “maltrapilho” (como, jocosamente, lhe chama o pai) a mãe diz, mais uma vez, ao João para não sair. Já ele tinha entrado na porta do elevador e ainda a mãe discursava acerca dos malefícios do sair à noite com tanta frequência, na sua idade. A história repetiu-se no sábado seguinte. E nas 5ª, 6ª e sábados que se lhe seguiram.
   A relação entre o João e os pais parece, cada vez mais, uma espécie de guerra fria. A tensão permanente no ar só se materializa em conflito aberto quando o assunto é o piercing. E, aí, não é difícil imaginar que ultrapassa todas as regras do bom senso.
  Talvez o João precise de ajuda para se encontrar no turbilhão de coisas que vai sentindo dentro de si. Talvez os pais precisem de quem os ajude a sintonizarem-se com o João. Falam do medo quanto ao futuro do João. Mas mantêm sob silêncio (talvez na esperança de o fazer desaparecer) o fantasma de não serem bons pais ou do João, verdadeiramente, não gostar deles.
    Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as letras dos Muse e dos Pearl Jam para as suas colegas, talvez pudesse dizer aos pais que, por mais que tenha 1,80 m e barba de homem, precisa muito dos pais. Para lhe balizarem o crescimento com regras claras e firmes, por um lado, e para o segurarem num abraço, por outro.
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as tácticas em noite de Liga os Campeões, talvez pudesse dizer aos pais que morre de medo de, aos seus olhos, nunca chegar aos calcanhares da irmã. Que as suas negativas não são resultado de incapacidade ou de preguiça (como poderiam pensar os mais distraídos). Que acontecem muito mais em função de estar muito receoso relativamente ao seu próprio valor e que, nessas circunstâncias, às vezes, se adota uma postura sobranceira de: “se eu quisesse tirava boas notas, eu é que não estudo”, que é assim uma maneira de nunca se por à prova!
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como faz a sua guitarra soar os acordes das músicas dos The Cure, talvez pudesse dizer ao pai que sente muita falta de quando iam ao estádio só os dois ou quando os jogos do Porto na TV eram uma espécie de ritual sagrado vivido a dois. E que, de cada vez que o pai não toma a iniciativa para esses programas a dois, outrora invioláveis, se sente um bocadinho abandonado e com medo de não passar de uma desilusão para o pai. E que chorou, sozinho no quarto – por se sentir abandonado e desvalorizado de uma assentada - quando foi ignorado pelo pai, que queria ver o debate na TV, quando, pela primeira vez, o interpelou para discutir política. Vinha entusiasmado dos dias em que passou fora, com o primo mais velho, na Queima das Fitas: para além dos concertos, da festa, e das cervejas à beira rio, o grupo de amigos do primo discutia política como se fossem mudar o mundo numa só noite.
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem quanto interpreta o espírito do futebol amador quando se esfalfa num ou noutro jogo em casa, talvez pudesse dizer à mãe que, por mais que proteste, se sente protegido e amado de cada vez que ela é mãe galinha. Mas que, de cada vez que ela e o pai não o impedem, com firmeza, de fazer o que não é melhor para si (como nas saídas à noite em catadupa) - e, por mais que isso, num primeiro momento, até o possa fazer sentir triunfante (à semelhança de uma criança que, repetidamente, leva a sua avante com a birra de supermercado) - acaba sempre por o fazer sentir sozinho e um bocadinho inseguro em relação ao amor dos pais, numa lógica de: “se eles gostassem mesmo, mesmo de mim, não me deixavam (custasse o que custasse) fazer o que não é melhor para mim”! Se assim fosse, talvez pudesse falar com os pais, com um primo ou com um amigo mais próximo da discrepância que sente entre a popularidade que tem entre as raparigas e o medo imenso de se chegar com convicção à Margarida do 11º C, por quem suspira intervalo após intervalo e, com quem parece estar a perder terreno a olhos vistos para o betinho do 12º A. Talvez pudesse dizer aos pais que, por tudo isto e muito mais, carrega, dentro de si, um misto de medo, mágoa e raiva. E que este turbilhão - que só parece poder tornar-se mais ou menos manifesto à boleia de um braço de ferro à volta de um piercing na sobrancelha - parece servir de pano de fundo a todos os desencontros que tem vindo a acumular com a vida.

 Tudo parece passar-se, com o João e os pais (e com tantos e tantos adolescentes, adultos e crianças) como se, de repente, estivessem sentados no mesmo banco de jardim, de costas uns para os outros, numa qualquer tarde solarenga de Outono. O que mais queriam era aproximarem-se, sentarem-se lado a lado, frente a frente, entenderem-se de uma vez. Mas chegada a hora da verdade, de tão destreinados que estão em falar claro (numa espécie de ligação direta entre o que sentem e o que põem em palavras), os apelos (toldados pelo medo e pela mágoa) teimassem em sair, invariavelmente, em forma de chega para lá… como que à espera de um descodificador que lhes devolva a simplicidade do falar claro. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

(Não) quero tantas coisas que já (não) sei o que quero!

   O João está a conseguir, no 11º ano, manter a média bem acima dos 18. É barra a biologia, mas é a física e a matemática que mais o encantam. É neto de um médico diferenciado. Desde que começou a brincar com o estetoscópio do avô que todos lhe vaticinaram, mais ou menos em surdina, o futuro: seria nada mais nada menos que um médico brilhante. Essa sempre foi uma meta assumida por si. Sempre até há um par de meses, quando começaram a surgir as dúvidas. A paixão por aviões (não há modelo da Boeing ou da Airbus que não descreva com uma enorme naturalidade) e por máquinas em geral têm-no feito vacilar: a Engenharia Aeroespacial ou a Engenharia Mecânica têm, timidamente, vindo a surgir como hipóteses. Para além disso, diz o João: “eu até me via a investigar Biologia Molecular, por exemplo, mas ser médico mesmo, aquela vertente mais clínica de estar o dia todo a ouvir pessoas, levar com histórias desgraçadas, não sei se é para mim”.
  
  A Joana, da mesma turma, sente-se perdida. Foi, vagamente, alimentando a ideia de enveredar por Enfermagem ou, talvez, tentar Medicina em Espanha. Mas, tem vindo a descobrir que o estudo da biologia humana (que implicaria a Enfermagem ou a Medicina) não a encanta por aí além. Talvez o que mais a seduza num percurso muito ligado à saúde seja a dimensão de relação humana, a ideia de poder ajudar o outro, olhos nos olhos. Mas não morre de amores pelo frenesim de um Hospital ou de um Centro de Saúde. A psicóloga da Escola falou-lhe da área social (com Educação Social ou Serviço Social, por exemplo), como uma possibilidade para concretizar esta sua apetência para funções que possam implicar a relação como instrumento de trabalho.
            
  O percurso profissional é, ainda, fonte de sustento, como sempre foi. Mas é, cada vez mais, fonte de (in)satisfação e (não)realização pessoal. Tenho para mim, por isso, que quando se escolhe uma área profissional que compatibilize paixão e apetência, se estará mais próximo do trilho do sucesso e, mais importante, do caminho da realização e da satisfação profissional.
 Tenho, por isso, a ideia de que, em muitas circunstâncias, uma orientação vocacional cuidadosa e aprofundada é muito mais do que um capricho. Será, tenho para mim, uma ajuda valiosa para sustentar uma opção demasiado relevante para ser deixada ao acaso ou ao sabor de um impulso de momento. Sê-lo-á especialmente para todos aqueles para quem, no meio de tantas escolhas possíveis, não parece emergir, de dentro, uma convicção segura acerca do caminho a seguir. Será, tenho para mim, uma ajuda tão mais valiosa quanto mais puder cruzar interesses e apetências vocacionais com características de personalidade e variáveis cognitivas. Afinal de contas, é fácil imaginar que um arquiteto que case rigor com abstração espacial e criatividade estará mais perto de ser um bom arquiteto. Ou que um engenheiro que compatibilize raciocínio lógico, abstração espacial e raciocínio mecânico estará mais próximo de se poder destacar. Ou que um professor será muito mais facilmente um bom professor se, para além do domínio científico das matérias, tiver interesse e apetência para gerir relações interpessoais. Ou que um enfermeiro ou um médico, para além do domínio científico e de todo o raciocínio analítico complexo (que permite, por exemplo, chegar a um diagnóstico certeiro) tenderá a ser tão melhor médico ou enfermeiro quanto mais apetência tiver para gerir relações interpessoais e estabelecer relações de ajuda. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.