domingo, 28 de fevereiro de 2016

As vidas têm pessoas dentro!

   Fomos aprendendo (muito em especial com os psicanalistas das relações de objeto) que o que somos deriva, em boa medida, da forma – ora mais serena, ora mais turbulenta – como dialoga a complexa rede de pessoas diferentes que guardamos dentro de nós.
Umas fazem de figurantes com mais ou menos pinta; outras de estrela polar ou de farol; umas fazem de pirilampo, outras de papão; umas fazem de assombração ou alma penada. Umas fazem-nos sentir, na melhor das hipóteses, entre o purgatório e o inferno. Outras mostram-nos o caminho para o céu. Outras, (melhor ainda!) fazem-no acontecer.
Acho que algures dentro de nós há um sítio, uma espécie de praça enorme e cosmopolita, onde convive toda esta gente. Umas nas filas da frente, outras no meio da multidão, outras ainda com o rosto desfocado já. Mas estão lá todas.
Moram lá as pessoas que, quais pirilampos, tão depressa nos tratam com uma gentileza desconcertante, como a seguir conseguem ser de uma frieza gélida. Moram lá as pessoas ao pé das quais, invariavelmente, nos fomos sentindo pequeninos, presos, medrosos… bem longe do melhor de nós, portanto. Moram lá as pessoas que, em tempos, nos fizeram brilhar os olhos ao indicarem-nos, à distância, o caminho para o céu, mas que se perderam pelo caminho. Moram lá as pessoas que foram tão visceralmente transparentes connosco, mesmo em circunstâncias muito difíceis (ligando, com uma humanidade à prova de bala, aquilo a que Bion chama os vínculos do amor e do conhecimento), que – mesmo tendo bifurcado caminhos - nos acompanham (por dentro) vida fora, qual estrela guia, para nos lembrarem que o céu existe mesmo. Moram lá as pessoas cujo brilho nos olhos não ia muito além do reflexo do brilho do nosso encantamento por elas (muito ao jeito do retrato de Dorian Gray, mas ao contrário). Moram lá as pessoas que, tendo sido muito importantes para nós, acabaram, por um ou outro motivo, por nos decepcionar profundamente. Às vezes, insistem, ainda assim, em pairar sobre (quase) tudo, qual fantasma mais ou menos omnipresente. Outras, felizmente, vão direitinhas das primeiras filas para uma espécie de despensa, de onde reaparecem de vez em quando, ora para nos lembrarem (qual sinal de STOP) tudo o que não queremos para nós, ora para nos recordarem (qual sinal de avançar a todo o vapor) todos os aspetos que admirávamos em si. 
 Moram lá as pessoas que, de descuido em descuido, são despromovidas devagarinho até se tornarem numa espécie de figurantes com rosto desfocado. Moram lá as pessoas que, de gesto de bondade em gesto de bondade, sobem a pulso das distritais até à Champions das nossas vidas. Moram lá as pessoas que, com o seu amor e admiração, nos fazem sentir o "special one", ao mesmo tempo que, de cada vez que abusamos na vaidade, nos põem no lugar e nos lembram que somos só um em milhões com o coração no sítio e os neurónios a funcionar. Moram lá as pessoas que foram tendo inúmeros atos generosos para connosco, dos quais não soubemos, à época, estar à altura e, por isso, só sossegámos dentro de nós, quando fomos capazes de um pedido de desculpas sentido, honesto, transparente. Moram lá as pessoas que, já estando na linha da frente, ainda têm a capacidade de nos surpreender com a sua transparência e bondade, saltando das 1ª filas para o centro do palco, com todos os holofotes sobre si. Moram lá as pessoas que, lendo-nos até às entranhas, nos puxam para si com tal amor que fazem brilhar o nosso olhar no delas, mostrando-nos que o céu, muito mais do que uma questão de fé, somos nós, juntos.


 Acho que somos decisivamente influenciados por esta espécie de globalização que acontece, a cada momento, dentro de nós. Talvez seja a forma como permitimos que este diálogo cosmopolita se torne cada vez mais fluído, inclusivo e transparente - pondo todas as personagens (tão diferentes entre si) do nosso mundo interior (e exterior) à discussão – que faz realmente a diferença nas nossas vidas. Talvez seja isso que nos faz correr para quem nos ajuda a encontrar e a construir o caminho para o céu, e nos afasta de quem, na melhor das hipóteses, nos deixa às portas do purgatório. Talvez seja isso que nos afasta da saudade depressiva do: “o melhor da vida já lá vai” e nos empurra para a ânsia de viver aqui e agora, com saudades do futuro. Afinal, o melhor da vida está mesmo ali, ao fundo da avenida. Mais coisa, menos coisa. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

E se falássemos do medo?

  A Maria tem medo. O Manuel, o Francisco e o vizinho da frente também. Mas a Maria parece tolhida, dominada por ele. Tem medo de perder o emprego. Apesar de ter uma situação contratual estável, de ser uma profissional competente e de ser um quadro valioso para a empresa, tem medo que o novo chefe lhe faça a folha. Tem medo do terrorismo. Por isso, com uma culpabilidade do tamanho do mundo, não conseguiu ficar feliz quando o marido colocou no tabuleiro, em que lhe levou o pequeno-almoço à cama, bem entre os croissants e a meia de leite, dois bilhetes para Paris. O medo de andar de avião transformou-se em pânico. Por isso, trocou a viagem à Capadócia que o marido tinha ganho como prémio de produtividade, por uns dias na aldeia onde crescera. O gozo que lhe dava aproveitar a lareira e o abraço do marido, enquanto a chuva batia violenta nas vidraças, transformou-se numa espécie de estado de alerta permanente, que a faz acordar, assustada, a cada rajada de vento mais forte. O prazer (que misturava serenidade com cabelos em pé) de ser mãe tem-se vindo, paulatinamente, a transformar em culpa e em medo: medo de falhar, de não ser suficiente, de ser ausente, de não ser capaz. O gozo de fazer compras no centro comercial ou na Baixa da cidade já foi, também ele, tomado pelo enorme desconforto que começou a sentir no meio das multidões.
 “O medo está-me a roubar a vida! Tenho medo de tudo!” sintetiza a Maria.

  O medo é um recurso inestimável. Graças a ele, a Humanidade foi, desde sempre, escapando aos mais variados perigos (dos animais da selva aos grupos de bandidos que atacavam em lugares ermos). Graças a ele, poupamos, todos os dias, uma série de disparates. Mas, se o medo pode ser protetor nas mais variadas circunstâncias, tornar-se-á paralisante sempre que mina, por dentro, o entusiasmo, a iniciativa e a esperança. Lembro-me sempre, a este propósito, de uma cena muito bonita de O Talentoso Mr. Ripley : uma pianista prodigiosa e muito aclamada senta-se ao piano para dar início a um concerto muito importante. Ao perceber que o companheiro não está na plateia fica profundamente triste e muito, muito insegura. Minutos depois, quando ele chega, já atrasado, ganha uma “nova alma”, e volta a ser a pianista talentosa, criativa, segura e entusiasmada que a faz ter admiradores por todo o mundo. Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez a questão nem sempre deva ser: como é que se pode deixar de ter medo? Talvez faça sentido pararmos para perguntar: como é que nos podemos (re)encontrar com as histórias que moram dentro de nós, a ponto de percebermos ao pé de quem (dentro de nós) é que nos sentimos suficientemente seguros para, apesar do medo, das dúvidas e das inseguranças, avançarmos com bravura?

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O balão do João: coragem e outros medos!

  O João tem uma mão cheia de Kgs a mais e é demasiado preso de movimentos para ser bom a jogar à bola. Nas aulas, o rubor toma conta de todo o seu rosto só de imaginar que um Professor o pode interpelar para ler um texto em voz alta, ou para ir ao quadro resolver um exercício. O Manuel e o Francisco, intuindo o pouco à vontade do João, não perderam tempo. Começaram a ridiculariza-lo, levando consigo uma parte muito significativa da turma. Chamavam-no vermelhão, a princípio. Depressa recuperaram o hit da Fafá de Belém, cantando em coro: “vermelho, vermelhusco, vermelhão” de cada vez que o João passava. Estenderam, depois, os mimos à pouca destreza física que o João expressava nas aulas de Educação Física e, daí, à forma atrapalhada como se relacionava com as raparigas.
  A cada dia que passava, mais o caminho para a Escola parecia uma espécie de via verde para a “tortura”. O João ia procurando ocupar o menos espaço possível (quem lhe dera ser invisível), mantendo o seu sofrimento em segredo. Tinha vergonha. Muita vergonha. A sua autoestima andava, por aqueles dias, pelas ruas da amargura. Até as notas que, apesar de tudo, a iam alimentando começariam a ressentir-se em breve. Temia, porventura, sentir-se mais ridículo, fraco e desamparado ainda, se procurasse ajuda nos pais ou num ou noutro Professor. Sentia-se uma fraude, “um fraco”, “um pilinhas”. Tudo o que queria era ser um vencedor aos olhos dos pais. E da Joana, do canto da sala que, por mais que uma vez, ousou defendê-lo contra as investidas de boa parte dos colegas.
 Para além disso tudo, inevitavelmente, alimentava um “odiozinho” de estimação silencioso para com o Manuel e o Francisco, dois franzinotes com ar de rufias.
           
  O João precisa de ajuda. Precisa de quem o proteja, em primeiro lugar, pondo no lugar quem usa e abusa das fragilidades do João para esconder e acalmar as suas. Precisa de quem, ao ajudá-lo a descodificar o que sente, o ajude a perceber que só se é verdadeiramente um vencedor para alguém quando há, na relação, um lugar para expor e olhar de frente as fragilidades. Precisa de quem o ajude a perceber que, sem esse espaço de intimidade, até se pode fingir bem, mas talvez nunca se seja verdadeiramente seguro de si. Precisa de quem, ao ajudá-lo a descodificar o que sente e a passar daí às ações intencionais, o ajude a perceber que, mesmo com todas as fragilidades e medos do mundo, tem mais do que qualidades para ser o vencedor junto dos pais, das Joanas que lhe aparecerão vida fora e de todas as pessoas que se vão deixar encantar pelas suas qualidades e fragilidades. Precisa de quem, ao ajudá-lo a encontrar-se no que sente e a daí retirar contrapartidas práticas, o ajude a usar as suas qualidades para aprender a pôr no lugar os Manéis e os Franciscos da sua vida. Precisa de quem o ajude a puxar pelas suas competências, percebendo, por exemplo, que até pode não ser um Messi dos recreios, mas que o porte físico considerável e a velocidade não desprezável podem ser uma grande vantagem competitiva no rugby ou em muitos outros desportos. Estará assim, creio, muito mais perto de se sentir (entre o medo e a audácia, as vitórias e as deceções) capaz de, com entusiasmo, nunca desistir de (re)encontrar o caminho para se sentir o vencedor no coração de todos aqueles que mais importam.


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.