A Sara entrou na copa e com
aquele olhar brilhante só dela pergunta-me, do nada: “acreditas em milagres?”.
Na altura, os milagres eram, para mim, quando muito uma espécie de bruma de um
passado que não volta. Entre as saudades imensas de uma grande paixão que
acabou (muito contra a minha vontade) com a transparência cristalina com que
começara, e o namoro com a Francisca que, valha a verdade, começou a morrer mesmo
antes de nascer, aquilo que mais se aproximava de um milagre na minha vida, por
aqueles dias, eram os longos cafés com a Sara, superados só, claro, pelos
intermináveis, mas cada vez mais raros, telefonemas com a Inês (a grande paixão
que terminou muito contra a minha vontade, com a transparência cristalina com
que começara). Ainda assim, servindo-me descaradamente do filme do
Kusturika, que tinha visto uns meses antes, atirei, com o meu ar mais sedutor (se
é que se pode ser sedutor sem acreditar em milagres): A vida é um milagre! Se
eu, na altura, fosse tão transparente como a Inês me mostrou, de uma forma
visceral, que era possível ser (ser-lhe-ei eternamente grato por isso) não me
teria acanhado quando, a caminho da praia, para mais um café de fim de tarde
com a Sara, passou no rádio do carro aquela música extraordinária do Martinho
da Vila com a Kátia Guerreiro, dando o mote para uma proximidade impossível de
disfarçar. Se eu não tivesse, na altura, tanto medo de milagres… Sabe, acho que
vinham daí as minhas insónias, a minha tristeza, a minha insegurança… acho que
vinham do raio do medo de ir além dos meios milagres. Mas sabe, eu agora acho
que já acredito mais vezes em milagres. E então agora que é desta que parece
que nos deixámos de tretas e me entendi de vez com a Rita. Sabe, acho que ela é
uma espécie de síntese para melhor de tudo o que de bom tinham as minhas outras
namoradas. Pode parecer estúpido, mas percebi isso quando ela se sentou ao meu
lado, no sofá do hotel, bem agarradinha a mim, a ver o jogo de futebol comigo,
com aqueles olhos grandes a brilhar, a brilhar. E esta semana, no sábado,
fez-me uma à filme: pediu-me para ir buscar o vinho à dispensa enquanto ela nos
servia o jantar. Quando cheguei, pronto a fazer um brinde, tinha no meu prato os bilhetes de avião e dois bilhetes para o Nick Cave em Londres, enquanto ela
trauteava o Into my arms. Com uma
mulher destas posso lá eu não acreditar em milagres?!
Lá no Banco é que eu acho que
não vão muito em milagres e as rescisões vão mesmo avançar! Fiquei com uma
fúria! Andei estes anos a virar-me em masters e pós-graduações, a dar couro e
cabelo por aquele banco e agora o melhor que mereço é a azeda oficial dos
recursos humanos a dizer-me: tem sorte enquanto vai ter indemnização e subsídio
de desemprego! Entre partir-lhe a cara e ir, de vez, fazer a viagem dos meus
sonhos com a Rita… é desta que vamos à Argentina. Comprámos os voos ontem, via
Barcelona. Ficamos cinco dias em Buenos Aires. Eu sempre quis dançar tango em
Buenos Aires! E depois descemos de autocarro para a Patagónia, Estreito de
Magalhães, Terra do Fogo… desde que vi um documentário com o meu pai que sempre
fui dizendo… um dia, um dia. Pois hoje é o dia!
Uns meses
depois, tinha, na caixa de correio do consultório, uma carta com remetente de San Martin
de los Andes (uma cidadezinha da Patagónia Argentina, soube, depois de pesquisar no google). Era um postal do Luís que dizia: “Depois de tudo, começar a arriscar desarrumar a minha vida ajudou-me a deixar-me de meios milagres.
Vista dos Andes, a vida é (ora mais simples, ora mais dura) mesmo um milagre!”.
Meses mais tarde, agora por e-mail, o Luís conta-me, orgulhoso, que conseguiu
um bom emprego numa consultora financeira, em Londres, e a Rita um lugar bem pago, num hospital a meia-hora da cidade.
Acho que o
Luís, ao me ter dado o privilégio de assistir, ao vivo e a cores, à construção
lenta (com muitas dúvidas e dor à mistura) do seu milagre, me ajudou a acreditar
mais vezes em milagres! Fico-lhe muito grato por isso!
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está
muito longe de corresponder a uma descrição literal.