terça-feira, 26 de abril de 2016

E se brincar fosse uma coisa muito séria?

  A Maria tem 9 anos e (quase) nunca menos de 95 % nas provas da Escola. Nas raras vezes em que ousa distrair-se um bocadinho e cometer a veleidade de ter só 85 % chora baba e ranho como se o mundo fosse acabar. É exemplar no ballet e na música. Nunca teve queixas na caderneta e a Professora, a catequista, as Professora do ballet e da música dizem, a uma só voz, que é um amor, que mais que uma menina parece uma mulher feita, de tão bem comportada. Um exemplo para os colegas, de tão sossegadinha que é, acrescenta a auxiliar que supervisiona o recreio.
  Mas se nas coisas de graúda a Maria vai pontuando quase sempre 100 %, vê-se aflita na hora de se misturar com as outras crianças, no recreio. A maioria das vezes tenta não se afastar da Professora ou da auxiliar. Os outros meninos jogam à bola ou à apanhada. À Maria assusta-a a forma sôfrega e atabalhoada como o fazem. Às vezes brincam às princesas ou às artistas de músicas infantis. Aí, a Maria lá se chega a medo, mas acaba por nunca encontrar o seu espaço no jogo. O mesmo se passa quando fazem construções na areia ou castelos com pedrinhas.
  Vai-se sentindo confortável com as coisas de adulto, com os testes e os trabalhos, as pautas e os passos de ballet treinados exaustivamente. Mas parece sempre tensa. Como se estivesse, permanentemente, a segundos de entrar para a entrevista do seu 1º emprego. Quase nunca faz um sorriso rasgado. Quase nada a parece divertir. Nem os jogos do tablet, aos quais se agarra intervalo após intervalo. Nem os bolos que faz com a mãe, nas tardes de sábado. Nem as atividades da catequese ou da música, que prepara meticulosamente.  Quase nada lhe parece dar o direito de brincar… pelo simples gozo de brincar.
 Se esta postura sisuda foi valendo alguns ganhos secundários à Maria, a verdade é que nunca deixou de preocupar a Professora. Tantas gerações de crianças a quem foi dando tanto colo quanto ralhetes, foram-lhe ensinando que é pelo menos tão importante o entusiasmo e o brilho nos olhos na hora de brincar, quanto uma letra redondinha e testes irrepreensíveis. Talvez tivesse razão a Professora: depressa o lado certinho da Maria começou a não ser suficiente para a segurar. Primeiro veio o evitamento de qualquer visita de estudo ou atividade fora da escola. Depois o medo de cães (de todos os tamanhos e feitios), de dormir e estar sozinha, de fazer audições públicas na música, etc., etc. . Depois as dores de cabeça antes de ir ao intervalo, primeiro, e ao acordar, depois. Multiplicavam-se os medos à medida que se encolhia, ainda mais, o seu entusiasmo e autonomia.

  Há um punhado de anos ouvi, num Congresso, uma extraordinária contadora de histórias (Cristina Taquelim) falar de um menino que queria ser “brincador” quando crescesse. É fascinante esta ideia de se ser “brincador”, não é?
 Parece que nos preocupamos todos muito (e bem, a meu ver) quando se sucedem os recados na caderneta, as queixas de comportamento ou os desencontros com as boas notas. Mas talvez nos preocupemos de menos com as crianças (e com os adultos) que, sem dar nas vistas, parecem ter muitas dificuldades em soltar o seu lado “brincador”: entusiasmado, curioso, ousado, atabalhoado às vezes, mas mexido e vivo. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 12 de abril de 2016

A quanto perigo preciso de me expor para me sentir vivo?

   Com apenas 18 anos de vida, o João já leva muito que contar. Está a repetir o 12º ano, depois de já ter repetido o 9º. A relação com os Professores é tensa. Com todos menos com o Professor de Matemática que, com a sua constância, afeto e firmeza, está a conseguir pôr o João no sítio, para espanto de toda a comunidade escolar. Apesar das explicações que se multiplicam (e, às quais, falta quase tanto como às aulas), as notas oscilam entre o medíocre e o satisfatório. Mas, por mais que a escola lhe doa (e dói, muito!), estará longe de ser o principal problema do João. Nos últimos meses foi parar 3 vezes ao Hospital, em estado quase comatoso, depois de beber shots em quantidades industriais. Fuma charros todos os dias e, de quando em vez, faz umas festas de experimentação de novas drogas com os amigos. Dantes comprava-as nas smartshops. Agora pela internet ou ao dealer lá da Escola. A grande prenda do seu 18º aniversário foi uma mota 125, que destruiu toda num acidente contra uma árvore e que lhe valeu umas quantas fraturas e um par de semanas no Hospital. Depois disso, já espatifou a mota do amigo contra uma barreira (desta vez sem danos físicos de maior). Vai acumulando, com os seus amigos, lutas violentas com grupos rivais que, de quando em vez terminam no hospital (para tratar escoriações) ou na esquadra (onde já foi parar, também, por posse de haxixe e pastilhas de ecstasy). A relação com os pais é distante e tensa. Não que não gostem dele. Não que não estejam preocupados. Mas tão depressa parecem desvalorizar com um “é da idade” comportamentos de claro perigo, como se excedem a propósito de um qualquer pormenor. Parecem conhecer mal o filho. Ter muita dificuldade em sintonizar-se com ele. Tanto que a sua principal preocupação, neste contexto mais ou menos explosivo, parecem ser as notas e a média para entrar na Faculdade! Já ao João nada o parece preocupar, vincando-o repetidas vezes, até rebentar num: “Eu não tenho sentimentos!” mais ou menos ameaçador!


   De facto, há jovens (e adultos!) que parecem sentir-se tão desvitalizados, tão desencontrados do espaço redentor da relação, da esperança, dos sonhos e dos projetos, que um contínuo desafio ao perigo (seja ele consubstanciado na condução de uma mota invariavelmente como se se estivesse a jogar um videojogo, no brincar ao Fight Club fim-de-semana sim fim-de-semana não, ou no anestesiar-se repetidamente com um cocktail de drogas e álcool, etc, etc.) parece ser a única forma de se sentirem vivos… de sentirem a adrenalina a correr nas veias! Esta sucessão vertiginosa de fugas para a frente (denegando os perigos) parece ser a única forma (disfuncional, mas ainda assim a única forma) que estão a encontrar para, ainda que apenas por momentos, aliviarem uma angústia avassaladora que os parece perseguir para onde quer que vão. A ser assim, para além de formar e informar sobre os riscos e os perigos (passo importante, naturalmente), será essencial dar a estes jovens o espaço relacional contentor (familiar, comunitário, escolar, psicoterapêutico…) que, ao mesmo tempo, que lhes bloqueia quaisquer exposições excessivas ao perigo, acolhe e os ajuda a legendar e pensar a angústia avassaladora que parecem carregar dentro de si (autêntico combustível dos comportamentos de risco, parece-me). 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.