A Maria tem 9 anos e (quase) nunca menos de 95 % nas provas da Escola.
Nas raras vezes em que ousa distrair-se um bocadinho e cometer a veleidade de
ter só 85 % chora baba e ranho como se o mundo fosse acabar. É exemplar no
ballet e na música. Nunca teve queixas na caderneta e a Professora, a
catequista, as Professora do ballet e da música dizem, a uma só voz, que é um
amor, que mais que uma menina parece uma mulher feita, de tão bem comportada. Um
exemplo para os colegas, de tão sossegadinha que é, acrescenta a auxiliar que
supervisiona o recreio.
Mas se nas coisas
de graúda a Maria vai pontuando quase sempre 100 %, vê-se aflita na hora de se
misturar com as outras crianças, no recreio. A maioria das vezes tenta não se afastar
da Professora ou da auxiliar. Os outros meninos jogam à bola ou à apanhada. À Maria
assusta-a a forma sôfrega e atabalhoada como o fazem. Às vezes brincam às
princesas ou às artistas de músicas infantis. Aí, a Maria lá se chega a medo,
mas acaba por nunca encontrar o seu espaço no jogo. O mesmo se passa
quando fazem construções na areia ou castelos com pedrinhas.
Vai-se sentindo
confortável com as coisas de adulto, com os testes e os trabalhos, as pautas e os
passos de ballet treinados exaustivamente. Mas parece sempre tensa. Como se
estivesse, permanentemente, a segundos de entrar para a entrevista do seu 1º
emprego. Quase nunca faz um sorriso rasgado. Quase nada a parece divertir. Nem os
jogos do tablet, aos quais se agarra intervalo após intervalo. Nem os bolos que
faz com a mãe, nas tardes de sábado. Nem as atividades da catequese ou da
música, que prepara meticulosamente. Quase
nada lhe parece dar o direito de brincar… pelo simples gozo de brincar.
Se esta postura
sisuda foi valendo alguns ganhos secundários à Maria, a verdade é que nunca
deixou de preocupar a Professora. Tantas gerações de crianças a quem foi dando tanto
colo quanto ralhetes, foram-lhe ensinando que é pelo menos tão importante o entusiasmo
e o brilho nos olhos na hora de brincar, quanto uma letra redondinha e testes
irrepreensíveis. Talvez tivesse razão a Professora: depressa o lado certinho da
Maria começou a não ser suficiente para a segurar. Primeiro veio o evitamento
de qualquer visita de estudo ou atividade fora da escola. Depois o medo de cães
(de todos os tamanhos e feitios), de dormir e estar sozinha, de fazer audições
públicas na música, etc., etc. . Depois as dores de cabeça antes de ir ao intervalo,
primeiro, e ao acordar, depois. Multiplicavam-se os medos à medida que se
encolhia, ainda mais, o seu entusiasmo e autonomia.
Há um punhado de anos ouvi, num Congresso, uma
extraordinária contadora de histórias (Cristina Taquelim) falar de um menino
que queria ser “brincador” quando crescesse. É fascinante esta ideia de se ser “brincador”,
não é?
Parece que nos preocupamos todos muito (e bem, a
meu ver) quando se sucedem os recados na caderneta, as queixas de comportamento
ou os desencontros com as boas notas. Mas talvez nos preocupemos de menos com
as crianças (e com os adultos) que, sem dar nas vistas, parecem ter muitas
dificuldades em soltar o seu lado “brincador”: entusiasmado, curioso, ousado,
atabalhoado às vezes, mas mexido e vivo.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe
de corresponder a uma descrição literal.