domingo, 22 de maio de 2016

Porque eu só estou bem aonde eu não estou!*

  Sempre foi bom a Física e a Matemática (ainda que a História nunca tivesse deixado de ser uma espécie de paixão platónica). Nos anos do Curso, numa área de interseção entre a Engenharia e as Novas Tecnologias (o sonho de qualquer mãe, portanto), foi conseguindo conciliar algoritmos com noitadas a saltitar entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré. “Bebia-se muito. E estava-se bem. Quer dizer…”. O Pedro sentia, na altura como hoje, uma ansiedade de fundo, ora mais miudinha ora mais ruidosa, mas sempre à espreita. À boa maneira da canção do António Variações, só parecia estar bem onde não estava, saltitando de bar em bar, à procura sabe-se lá do quê. Acabava por não se divertir tanto assim. Estava sempre em grupo, como se precisasse disso para se perder nos seus pensamentos e inseguranças. Bebia. Bebia muito. Não tanto por prazer. Menos ainda para celebrar a alegria de estarem juntos. Na verdade, tanta vodka, parecia não ser muito mais do que uma forma de calar uma ansiedade difusa, mas omnipresente, ao mesmo tempo que lhe dava a desinibição que precisava para se aproximar das turistas nórdicas. Turistas, sempre turistas. Ou, quando muito, estudantes Erasmus. Desde que a Maria, no 3º ano de Faculdade, o deixou de coração partido, não mais se permitiu aproximar de ninguém que pudesse percorrer as ruas da mesma cidade no mês seguinte.
  Com o fim do curso, uma oportunidade de emprego trouxe-o de volta à cidade que o viu crescer. Deixou para trás as noitadas de estudo no Técnico e as deambulações desenfreadas no Bairro Alto. O trabalho intenso fazia, agora, as vezes da Faculdade. Os bares novos as vezes dos velhos. Mas faltava dimensão (e disponibilidade) ao grupo, que isto de se terem reuniões importantes logo pela manhã tem que se lhe diga. A ansiedade, essa parecia ser cada vez menos miudinha. Teimava, agora, em impor-se de rompante nas situações mais inconvenientes, acelerando a respiração e fazendo o coração querer saltar pela boca.

  Talvez, às vezes, façamos todos um bocadinho de Pedro. Talvez, às vezes, as pessoas sejam todas um bocadinho especialistas em (de fuga para a frente em fuga para a frente) tentar camuflar a angústia. Mas se isso até pode, numa ou noutra circunstância muito particular, ser útil num primeiro momento, tenho para mim que, quando cristaliza em movimentos mais enquistados, deixa as pessoas mais distantes dos seus recursos saudáveis e, por isso, mais sozinhas e com menos armas para fazerem face a uma angústia crescente. Talvez seja só quando as pessoas se começam a reencontrar com as histórias e as pessoas que moram bem dentro da sua história, ao mesmo tempo que puxam para si quem lhes faz bem, que a esperança e a vitalidade ganham (verdadeira e decisivamente) o protagonismo à angústia e ao desamparo.

*Título inspirado na música do António Variações

 Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 8 de maio de 2016

Agora não que me dói a cabeça!*

  Começou por não querer ir às visitas de estudo. Porque os meninos cantam canções foleiras no autocarro, explica. Deixou, depois, de querer ir ao intervalo. Porque os meninos são muito brutos a jogar à bola e podem magoá-lo, justifica. Depressa deixou de querer ir à Escola. Mas, como seria de esperar, o argumento básico do “não gosto” não colheu junto dos pais. Tentou, por isso, aprimorá-lo com um sedutor: “podia ir contigo para o escritório, mamã”. Por mais que a mãe se tivesse, secretamente, sentido um bocadinho vaidosa, o argumento continuou, naturalmente, a não colher. Só havia uma solução: endurecer a luta! Vieram as dores de barriga e de cabeça (chegando, mesmo, a fazer febres ligeiras num ou noutro dia), os episódios de angústia e as crises de choro à saída de casa e à porta da Escola.
  Talvez o que o João estivesse a querer dizer com a sua escalada de “efeitos especiais” não fosse tanto que não gosta da Escola, mas mais que não sabe o que fazer ao medo! Talvez o que mais o assuste nas visitas de estudo não seja bem a qualidade das canções, mas mais o medo de sentir a discrepância incómoda entre a descontração divertida dos colegas e a contração tensa de quem não sabe muito bem como fazer para se chegar aos outros. Talvez o que o assuste mais no futebol não sejam bem as caneladas. Talvez seja mais o medo de não saber bem como é que se pode competir, de igual para igual (de forma leal, franca e aberta), sem se ser atropelado pela dor da derrota (potencial). Talvez o que o assuste mais na Escola não sejam tanto as idas ao quadro ou os testes, mas mais a ideia de que pode soçobrar perante o insucesso (seja ele na matemática, no futebol, nas canções ou na relação com os colegas).

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez alguns movimentos altivos e sobranceiros (à boa maneira da parábola da raposa e das uvas) e a cristalização de alguns evitamentos fóbicos não sejam muito mais do que uma forma que crianças e adultos utilizam para fugir (não indo, invariavelmente, a jogo) do fantasma de poderem ser engolidos pela dor da derrota. Mas se, muito circunstancialmente, movimentos desta natureza até nos podem proteger de um ou outro “perigo” potencial, quando se tornam sistemáticos, tenho para mim, que da única coisa que nos protegem é do melhor de nós próprios! 

* título inspirado no Movimento Perpétuo Associativo dos Deolinada

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.