domingo, 26 de junho de 2016

Um admirável mundo novo*!

   Depois de um ano de ansiedade miudinha, exames e estudo empenhado, o João entrou, finalmente, no curso que sonhara. Desde que, há uns anos, foi ver o cortejo académico do primo que sonhava com a vida de universitário, com as festas e as noitadas, com a autonomia e o mar de pessoas e oportunidades que a Faculdade lhe ia trazer. Nos últimos dias antes da partida para a cidade que escolhera, sentia-se mais apreensivo. Comoviam-no os conselhos e gestos protetores dos pais, mas não lhe saía muito mais do que um: “que melgas, eu já sou crescido!”, como que não querendo dar parte de fraco. O mesmo aconteceu (com uma intensidade ampliada pela proximidade do futuro) no dia em que, finalmente, os pais o levaram ao quarto que tinha alugado a dois passos da Universidade e do centro da cidade. Ao almoço, manteve, por fora, a postura de “homem crescido sem medos”. Com mais custo, mas aguentou-se, depois, enquanto a mãe lhe fazia 1001 recomendações acerca da roupa, da comida e das saídas à noite, e o pai lhe falava, entre o entusiasmado e o assustado, da necessidade de conciliar responsabilidade com boémia. Talvez o João quisesse dizer: “eu sei, eu sei que há muito que sonhava com isto. Eu sei, eu sei, que isto vai ser bom para mim, mas estou com tanto medo! Tenho tanto medo das praxes, de me acharem ridículo na Faculdade, de não estar à altura das matérias, de não ser tão fácil fazer amigos como sempre imaginei que era, etc, etc”. Talvez o João quisesse sossegar-se com um: “Vai correr bem, não vai?”, ao mesmo tempo que corria para os braços dos pais e lhes perguntava: “vão cá estar sempre para me segurar quando não correr bem, não vão? Mesmo quando eu, inflamado e um bocadinho arrogante, disser que sou um homem crescido, e que não tenho medo de nada?”… Mas só lhe saiu um: “Mãe!!! Eu já tenho 18 anos! Dah, isto foi o que eu sempre quis!”. Depois de uma despedida tão calorosa quanto esta postura sobranceiro-assustada permitiu, assim que os pais fecharam a porta da sua nova casa, o João deitou-se sobre a sua nova cama (como lhe pareciam estranhos a almofada, o cheiro e as esquinas da nova casa) e chorou. Chorou desalmadamente. De medo (do que aí vinha). De raiva (por não ter conseguido ser claro na hora de procurar, no colo dos pais,  a segurança que o poderia sossegar). Até que o telefone tocou. Enxugou as lágrimas, mas não conseguiu disfarçar a voz triste e arrastada. Eram os pais, em uníssono, a dizer: “Hei, João, a primeira noite é um bocadinho difícil. A 2ª e a 3ª talvez também ainda possam ser um bocadinho. Mas vai, evidentemente, correr bem!”. Desta vez o João não se conteve... e chorou. Nem a distância que o telefone impõe o impediu de sentir o colo dos pais, bem ali, para si, forte e seguro, para o que desse e viesse. E o medo avassalador transformou-se numa espécie de nervoso miudinho que, pouco a pouco, começou a abrir brechas para o encantamento de quem está prestes a agarrar um admirável mundo novo.

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez os medos se tornem bem menos assustadores sempre que somos capazes de os confiar a quem os acolhe e nos ajuda a transformá-los, abrindo espaço para o entusiasmo de quem quer agarrar o futuro com as duas mãos!

*Título de um romance de Auldous Huxley

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 12 de junho de 2016

Pode alguém ser quem não é*?!

  A Maria é Professora vai para mais de 10 anos. Foi por gosto que escolheu ensinar Português. Mas isso era dantes. Há muito que a paixão pela literatura (em que se foi “refugiando” desde muito nova) perdeu terreno para a angústia miudinha que toma conta de si a cada viagem para a Escola. Sente-se desrespeitada, atacada, desvalorizada pelos alunos. Está tão inflamada que sente a mínima interpelação provocatória como mais um atestado de incompetência. Sente-se incapaz de dar um murro na mesa e de mostrar quem é o Professor, quanto mais de pôr no bolso os 2 ou 3 alunos que parecem ter um gostinho especial em “picar” a Professora. Sente-se incapaz de se encantar com as obras que outrora a faziam sonhar, quanto mais de entusiasmar os alunos, ajudando-os a mergulhar nas histórias. Tentar falar com os colegas, pedir a sua ajuda, abrir aí um espaço de reflexão, está completamente fora de questão. Ou não entrasse em cada reunião dominada pela ideia aterrorizadora: “é desta que vão descobrir que sou uma absoluta incompetente e me vão encostar à parede”! Apesar de estar deslocada de casa, raramente entra nos jantares e noites de esplanada dos colegas. Fica tensa ao pé deles, sempre a medir as palavras. A Maria é uma mulher inteligente. Mas, ao pé dos colegas, de voz trémula, vai alternando as opiniões à medida do que imagina serem as suas expectativas. Se o Tomás - o Professor de Educação Física com quem fantasia noite após noite – está por perto, fica ainda mais calada do que o costume. Ao contrário do que muitas vezes imagina, a maioria dos colegas gostam dela (tanto que, apesar das suas desculpas recorrentes, não desistem de a convidar para os seus programas sociais). As opiniões camaleónicas (ao sabor do que imagina serem as expectativas dos outros) não deixam de ser irritantes, mas o olhar assustado e com um je ne sais quoi de bondoso e abandonado aproximam. Num desses jantares, depois de ter bebido 2 cervejas por pressão do grupo, não se aguentou e acabou a chorar com a Filipa, uma colega afetuosa que lhe elogiou as qualidades e lhe disse, de forma convicta, que uma mulher com as suas competências tinha que ser mais assertiva: com os alunos, a Direção da Escola, os colegas e o Amor. No dia seguinte, a Maria sentia-se dividida entre a vergonha de ter partilhado alguns dos seus “medos tontos” (como lhes chama), o medo de que a Filipa não os soubesse guardar, espalhando-os por toda a sala de Professores, e a esperança que brotou de se ter confiado um bocadinho a um “colo” afetuoso. Talvez tenha sido este o mote para pedir ajuda “para deixar de tentar ser quem não sou; para deixar de ter tanto medo de ser eu, como me dizia a Filipa”.
           
  Mas porque é que algumas pessoas parecem gastar tanta energia a tentar ser quem não são? Pode alguém ser quem não é?
Fomos aprendendo (com Winnicott e Sami-Ali, passando por Bion e tantos, tantos outros) que sermos mais iguais a nós próprios nos dá um sentido de coerência ao caminho, nos aproxima de quem puxa pelo melhor de nós e nos faz, mais vezes, felizes! Mas fomos aprendendo, também, que a assertividade, a autodeterminação e a autonomia se alimentam, desde muito cedo nas nossas vidas, de relações verdadeiras que, nunca deixando de nos mostrar os limites e de nos pôr no lugar, abrem espaço para o que somos, respeitando-nos os ritmos, validando-nos e ajudando-nos a legendar a intensidade do que sentimos, e nunca, nunca desistindo de puxar pelo melhor de nós. Em certo sentido, acho que nunca deve este deixar de ser, também, um dos pilares de uma relação terapêutica.


*Título de uma música do Sérgio Godinho

Nota: Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.