Desde muito cedo que ouvia, com
insistência, que era super-inteligente. Diziam-no a Educadora e a Professora do
1º ciclo. Dizia-o a avó, dando-o como exemplo para os outros netos. Repetiam-no
as tias, a cada almoço de família. Mais discretos os pais não conseguiam, ainda
assim, resistir à tentação de o exaltar sempre que a vizinha da frente batia à
porta para, à boleia de uma qualquer desculpa, se vangloriar da bolsa no
estrangeiro que o seu filho mais velho havia conseguido. Exageros à parte, o Bernardo
sempre foi, de facto, um rapaz inteligente. Talvez isso o tenha ajudado a
desenvolver um gosto apurado na música, na literatura e no cinema. Talvez isso
o tenha ajudado a construir o seu interesse pela Filosofia, pela Ciência ou
pela História de Arte. Mas nem sempre o terá conseguido reverter a seu favor na hora de se
aproximar dos outros… e do melhor de si! A forma sobranceira como se foi
colocando perante os colegas, no Básico e no Secundário, raramente foi
permitindo estabelecer relações de verdadeiro companheirismo. Afinal que
importância tinha debater o Sporting vs Benfica da véspera, se os prémios Nobel
ainda estavam fresquinhos? Mas, se no Ensino Secundário, a postura
excessivamente intelectualizada lhe foi valendo um certo estatuto entre os
colegas, que iam oscilando entre olhá-lo com admiração e suportá-lo com
irritação, a integração não estava fácil na Faculdade! Vários colegas seus também sabiam de cinema, de música e de literatura, de filosofia e de
ciência; o que por si só já não era nada confortável para o Bernardo, mais
habituado que estava à postura professoral do que à partilha e à discussão entre
iguais. De tão habituado que estava a compartimentar o mundo, mais estranho se
sentia ao perceber que alguns colegas, tão depressa falavam de cinema islandês
como seguiam entusiasticamente cada jogo da Liga dos Campeões. Que tão depressa
poupavam dinheiro para ir ver um concerto de jazz como pulavam ao som das Doce (“Uma
da manhã, ei!”) numa qualquer festa académica! Como se isso não bastasse,
pareciam misturar-se e gostar de colegas com percursos, gostos e interesses
diferentes. E, pasme-se, não bastando sentirem-se à vontade no contacto com as
colegas (mesmo aquelas que se estavam nas tintas para a música alternativa ou
para o cinema francês), caíam mesmo de amores por algumas delas!
Este
choque de frente com a diversidade podia ser o empurrão que faltava ao Bernardo
para se abrir ao mundo, à diferença e ao outro. Mas, apesar de todos os apelos
dos colegas, parecia fechar-se a cada dia que passava. A ideia de se relacionar
de igual para igual era, para si, demasiado assustadora. Enquanto o assunto era
meramente intelectual, podia sempre puxar dos galões do alto do seu púlpito. Já
olhar nos olhos uma colega bonita, descer do púlpito e discutir de igual para
igual, libertar-se numa qualquer festa ou falar do que o comove ou lhe mete
medo, eram terrenos demasiado movediços para quem se sentia tão sozinho e assustado
para lá das luzes do palco.
Talvez
seja sempre um bocadinho assim. Talvez a sobranceria seja, tantas e tantas
vezes, uma espécie de defesa contra o medo e o desamparo. Mas se, por um lado
os ilude (tornando-os mais suportáveis), parece alimentá-los (!), por outro, ao
afastar-nos do outro… e do melhor de nós! Talvez a integração da diferença, da
diversidade e do conflito sejam mesmo essenciais para, com o outro (diferente!),
nos irmos encontrando com o melhor de nós próprios!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.