domingo, 29 de janeiro de 2017

Maria (já não) vai com as outras: adolescer entre o medo e o entusiasmo

   Uma infeção respiratória não tornou muito fáceis os primeiros meses da Maria. Primeira filha e primeira neta, merecia as atenções preocupadas de todos. O primo que se lhe seguiu, 9 meses mais novo, viria, anos mais tarde, a fazer furor no infantário, que isto de começar a ler aos 4 anos não é para todos. A Maria não lia, ainda. Brincava! Brincava muito! E crescia bem: com o olhar vivo e a sensibilidade apurada, o imaginário a expandir e o corpo a mexer (É para isto que deve servir o jardim de infância, não é?). Da infeção respiratória sobrava apenas, lá ao longe, uma espécie de fantasma parental de que talvez a Maria precisasse de mais “bengalas” do que os outros. Talvez um bocadinho por isso; talvez um bocadinho para “compensar” a distância nas competências académicas para o primo leitor precoce (que, com o passar dos anos, não existia de todo na realidade dos factos, mas parecia bem viva no medo dos pais), a mãe da Maria sempre fez por estudar com (por) ela.
  Aos 14 anos, a Maria é uma adolescente viva, inteligente e afetuosa. Autónoma nas opiniões e na gestão das amizades, continua, apesar das boas notas, a ter na mãe a bengala para o estudo, sem a qual se vai imaginando mais ou menos incapaz. A época de testes é vivida como uma espécie de tortura. Na semana anterior já não consegue dormir bem. Agitada, muda, constantemente, o “centro de estudos” do quarto para a sala, da sala para o escritório do pai, voltando ao quarto para recomeçar o ciclo. Nenhum lugar lhe parece aconchegar o medo. Pior do que os testes, só mesmo as apresentações de Inglês. Por mais que treine, vezes sem conta, cada vírgula da apresentação custa-lhe horrores não ter a pronúncia “british” que vai, de forma muito, muito exagerada, reconhecendo em cada um dos seus colegas. Pior do que isso, só mesmo, a sensação de quase rebentar de tão vermelha que fica, ou o quão se sente ridícula quando a voz teima em embargar. Como se tudo isto não bastasse, as dores de barriga e os nós na garganta são, também, um habitué destas andanças.

  Mas porque é que uma adolescente viva, inteligente e cheia de qualidades parece desconfiar tanto das suas competências?

  A Maria começou a estudar sozinha. Muito a medo (tal como aconteceu com os seus pais, viriam a confessar mais tarde), ou não fosse a primeira vez que enfrentavam o “fantasma” de que o seu esforço e competências talvez não fossem suficientes para garantir boas notas. 
 A Maria morria de medo de, finalmente, comprovar, por A+B, que era incapaz e de, com isso, desiludir todos aqueles de quem gostava. Os pais morriam de medo de, feitas as contas, ter gerado uma filha com bom coração, mas “sem rasgo para a aprendizagem”. 
 As notas baixaram, de facto, num primeiro momento. Mas, à medida que a Maria ia sentindo que quem mais importa começava a acreditar verdadeiramente em si, ao mesmo tempo que começou a discorrer sobre os medos, a encontrar espaço relacional para eles, a compreendê-los e pensá-los (vestindo-os de palavras, na sua história), foram-se esbatendo as insónias, a tensão e as dores de barriga, ao mesmo tempo que ganhavam espaço a confiança e a “adrenalina” das apresentações, o gozo da criatividade e do conhecimento. E, com eles, os resultados escolares começaram a aparecer, depressa superando as performances da “Maria da bengala”.  

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez as competências em bruto (que todos temos!) nunca sejam suficientes por si só. À semelhança daquele célebre (e muito, muito bonito) vídeo do Europeu de Futebol em que o Ronaldo “obriga” o Moutinho a marcar o penálti, enfatizando que se falhar "que se lixe" (numa linguagem um bocadinho mais carregada de “alma”), talvez precisemos – sempre (!) – de quem (na nossa vinda interior e no mundo lá fora) acredite em nós, ajudando-nos a sintonizar com as nossas qualidades e a tirar partido delas, ao mesmo tempo que nos assegura que se falharmos ... “que se lixe”!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Inveja, gratidão* e outros abraços!

  Todos esperavam que seguisse Medicina. O percurso brilhante no Secundário permitia-o. A tradição familiar deixava-o antever. O pai, homem arejado e afável, sempre lhe disse que devia seguir o que o fizesse feliz. Ainda assim, não deixava, de quando em quando, de lhe enviar para o e-mail uns artigos de Harvard, não fosse o Miguel esquecer-se que cresceu numa família com pergaminhos na Medicina. Talvez por isso o 12º ano tenha sido tão difícil para ele. Não tanto pela pressão da média, mas mais por se sentir dividido entre a paixão pela Economia e o que sentia ser uma espécie de obrigação implícita de receber do pai o estetoscópio que, por sua vez, tinha herdado do avô. Cheio de dúvidas e angústias, num sopro de vida, agarrou a Economia com unhas e dentes! Afinal de contas (como lhe dizia o avô vezes sem conta): “nunca podemos deixar fugir uma paixão!”
  Poucos meses depois de terminar o Curso, abre-se-lhe, agora, a janela de oportunidade que tanto queria agarrar: a possibilidade de um doutoramento em Inglaterra, com um economista inovador, que muito admirava. Teria, no entanto, de competir pela vaga com o seu melhor amigo da Faculdade! O amigo com quem partilhava discussões sobre macroeconomia e desigualdades sociais, mas também sonhos e inseguranças, histórias de amores e desamores. Com tanto de inteligente e arrebatado, como de medroso, continuava a ser difícil para o Miguel competir de igual para igual. Mais a mais com alguém de quem gosta com o coração cheio.
   A publicação dos resultados não enganava. O Miguel tinha conseguido a vaga. O seu grande amigo não tinha ido além de um honroso 2º lugar. Feliz com a conquista, mas receoso do impacto que poderia ter numa relação tão preciosa, apressou-se a marcar um jantar com o amigo. Diz-me, emocionado: “Sabe, acho que não foi muito diferente de quando escolhi o curso. Aí tinha medo de estar a “trair” o meu pai e o meu avô. Agora tinha medo de estar a “trair” o Bernardo. Mas sabe, quando o Bernardo chegou ao pé de mim, deu-me um grande abraço e disse-me: - meu sacana, estou com uma inveja tua! E aquilo que podia muito bem ter sido um momento fraturante na nossa amizade, aproximou-nos ainda mais. E eu ser-lhe-ei eternamente grato por isso. Por isso e por me ter mostrado, num passe de alquimia, como se pode fazer da inveja um sentimento que aproxima muito mais do que destrói! Por isso, e por me ter mostrado, de uma forma ainda mais clara que o meu pai ou o meu avô foram capazes de fazer, que eu tenho o direito (e o dever!) de lutar sempre (!) por uma paixão. De forma franca e leal, mas com unhas e dentes, à homem!”

   Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez o que afaste as pessoas não seja tanto a natureza do que possam verdadeiramente sentir, mas mais a forma como o procuram esconder (do outro e de si), branqueando-o ou expressando-o, em bruto, de forma impulsiva e retorcida. Talvez o grande desafio seja mesmo pensar as emoções, vesti-las de palavras e histórias, comunicando-as com toda a clareza e afeto que formos capazes (naquilo a que Bion chamou função α). Nesta leitura, talvez as únicas emoções “negativas” (que afastam…) sejam as que ficam por pensar e comunicar, encontrando no agir impulsivo (violento e destrutivo, no limite) a única forma de expressão.

*Título inspirado no título do artigo: “Inveja e gratidão”, de Mélanie Klein (1957)

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.