domingo, 23 de outubro de 2016

Espelho meu, espelho meu, há alguém mais sabichão do que eu?

  Desde muito cedo que ouvia, com insistência, que era super-inteligente. Diziam-no a Educadora e a Professora do 1º ciclo. Dizia-o a avó, dando-o como exemplo para os outros netos. Repetiam-no as tias, a cada almoço de família. Mais discretos os pais não conseguiam, ainda assim, resistir à tentação de o exaltar sempre que a vizinha da frente batia à porta para, à boleia de uma qualquer desculpa, se vangloriar da bolsa no estrangeiro que o seu filho mais velho havia conseguido. Exageros à parte, o Bernardo sempre foi, de facto, um rapaz inteligente. Talvez isso o tenha ajudado a desenvolver um gosto apurado na música, na literatura e no cinema. Talvez isso o tenha ajudado a construir o seu interesse pela Filosofia, pela Ciência ou pela História de Arte. Mas nem sempre o terá conseguido reverter a seu favor na hora de se aproximar dos outros… e do melhor de si! A forma sobranceira como se foi colocando perante os colegas, no Básico e no Secundário, raramente foi permitindo estabelecer relações de verdadeiro companheirismo. Afinal que importância tinha debater o Sporting vs Benfica da véspera, se os prémios Nobel ainda estavam fresquinhos? Mas, se no Ensino Secundário, a postura excessivamente intelectualizada lhe foi valendo um certo estatuto entre os colegas, que iam oscilando entre olhá-lo com admiração e suportá-lo com irritação, a integração não estava fácil na Faculdade! Vários colegas seus também sabiam de cinema, de música e de literatura, de filosofia e de ciência; o que por si só já não era nada confortável para o Bernardo, mais habituado que estava à postura professoral do que à partilha e à discussão entre iguais. De tão habituado que estava a compartimentar o mundo, mais estranho se sentia ao perceber que alguns colegas, tão depressa falavam de cinema islandês como seguiam entusiasticamente cada jogo da Liga dos Campeões. Que tão depressa poupavam dinheiro para ir ver um concerto de jazz como pulavam ao som das Doce (“Uma da manhã, ei!”) numa qualquer festa académica! Como se isso não bastasse, pareciam misturar-se e gostar de colegas com percursos, gostos e interesses diferentes. E, pasme-se, não bastando sentirem-se à vontade no contacto com as colegas (mesmo aquelas que se estavam nas tintas para a música alternativa ou para o cinema francês), caíam mesmo de amores por algumas delas!
   Este choque de frente com a diversidade podia ser o empurrão que faltava ao Bernardo para se abrir ao mundo, à diferença e ao outro. Mas, apesar de todos os apelos dos colegas, parecia fechar-se a cada dia que passava. A ideia de se relacionar de igual para igual era, para si, demasiado assustadora. Enquanto o assunto era meramente intelectual, podia sempre puxar dos galões do alto do seu púlpito. Já olhar nos olhos uma colega bonita, descer do púlpito e discutir de igual para igual, libertar-se numa qualquer festa ou falar do que o comove ou lhe mete medo, eram terrenos demasiado movediços para quem se sentia tão sozinho e assustado para lá das luzes do palco.

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez a sobranceria seja, tantas e tantas vezes, uma espécie de defesa contra o medo e o desamparo. Mas se, por um lado os ilude (tornando-os mais suportáveis), parece alimentá-los (!), por outro, ao afastar-nos do outro… e do melhor de nós! Talvez a integração da diferença, da diversidade e do conflito sejam mesmo essenciais para, com o outro (diferente!), nos irmos encontrando com o melhor de nós próprios!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.