domingo, 24 de setembro de 2017

Um estranho que conhecemos bem!

   O João acabara de sair de casa, para a Faculdade. Com a sua partida, e a dos dois irmãos mais velhos, que lhe precedera, a casa parecia, agora, grande demais para a Maria e para o Pedro. O crescimento dos filhos, os projetos profissionais e o buliço do dia-a-dia foram-lhes ocupando a vida. Já mal se lembravam do que é ter espaços a dois. Na verdade, nunca se sentiram no direito de deixar os filhos com os avós para tirarem para si um fim-de-semana que fosse, como se investir na relação de casal (e na realização pessoal) não fosse, ao mesmo tempo, investir na parentalidade. A princípio ainda saiam para jantar fora no aniversário de casamento. Mas, com o passar dos anos, até isso se foi perdendo. E agora, 25 anos depois do nascimento do primeiro filho, viam-se, novamente, a sós. As noites interrompidas pelo pesadelo do João, pela febre do Bernardo ou pela tosse do Lucas foram sendo substituídas, à medida que cresciam, pela azáfama de acordar três adolescentes birrentos pela manhã; pelas correrias para as atividades extracurriculares ou pelas chamadas de atenção (mais ou menos inflamadas) com o tempo que gastavam ao computador ou ao telemóvel. E agora, 25 anos depois, viam-se, de novo, a sós. Com tempo para irem ao cinema ou verem filmes enroscados no sofá; com a possibilidade de jantarem fora e até de reservarem um ou outro fim-de-semana romântico. Mas já nem a Maria nem o Pedro sabiam bem como se fazia. Há muito que o abraço não saía naturalmente. E, quando saía, parecia não encaixar, deixando-os, a ambos, mais desconfortáveis do que enternecidos. Tudo se ia passando como se, sem o buliço da gestão diária da educação dos filhos, se sentissem, a cada dia, um bocadinho mais uns estranhos que já se conheceram bem. Com mais espaço a sós, a verdade é que as conversas (cada vez mais raras) se cingiam às preocupações com os filhos e à gestão da vida financeira da família. Começaram por desencontrar ritmos de sono, com a Maria e o Pedro a ficarem, à vez, até tarde entre a tv e o computador para, rapidamente, o desencontro se estender até ao ponto de mal falarem e nunca dormirem juntos.

  Talvez as relações (todas as relações) sejam sempre um bocadinho assim. Morrem mais um pedaço, de cada vez que as omissões se tornam a regra que, aos poucos, vai transformando o outro num estranho que já conhecemos bem.
  Talvez as relações (todas as relações) sejam sempre um bocadinho assim. Expandem-se vários universos (tornando-se mais sólidas e próximas) sempre que não se poupa nas palavras e nos gestos para olhar bem dentro do outro (como, de forma muito bonita, nos lembra o Principezinho).

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 3 de setembro de 2017

Norma 4.0: o insustentável peso do dever!

  Sempre recaíram sobre si grandes expectativas e, em boa verdade, uma espécie de pressão alta para não manchar o bom nome da família. Talvez por isso, a Sofia foi crescendo mais habituada aos quadros de honra e aos elogios de professores e contínuos, do que às correrias do recreio. Não viriam a ser muito diferentes os tempos da Faculdade: dominava as sebentas e os apontamentos, mas sobre a organização do curso (contestada por muitos dos seus colegas), a subida das propinas ou o corte nas bolsas, que atirou alguns dos seus colegas para fora da Universidade, não tinha muito a dizer. Apesar de ser a distribuidora oficial de resumos impecavelmente organizados e, de com isso, ter aproximado muitos dos seus colegas (que, de resto, a olhavam com um certo respeito) parecia guardar sempre uma distância de segurança. Era agora (que estava longe dos pais), mais do que nunca, assolada por uma espécie de fantasma mais ou menos omnipresente: O que é que as pessoas iam dizer? Como se não se sentisse no direito de ir além, um bocadinho que fosse, do escrupuloso cumprimento das expectativas que, desde cedo, se habituou a seguir sem (aparentemente!) questionar.
  A conclusão do mestrado levou-a a uma empresa de renome. E a nunca menos de 12 horas de trabalho diário, mal remunerado (bem-vinda a este enorme “avanço” civilizacional em que se tem transformado o mercado de trabalho para jovens, no século XXI). Sempre disponível (muito mais do que qualquer um dos colegas com quem entrara na empresa) – para trabalhos (não remunerados) ao fim-de-semana, tarefas extra e telefonemas fora de horas, vivia exausta. Dava, ainda assim, por si a ser a primeira a oferecer-se para qualquer tarefa suplementar. E a zangar-se furiosamente (para dentro, claro está!), de cada vez que não sentia o seu esforço reconhecido. Toda esta ira, todavia, rapidamente se transformava num misto de contentamento e culpa (e em maior disponibilidade para o trabalho…), sempre que surgia um elogio das chefias; ou num sentimento de exaltação, sempre que os pais expunham, junto de tios e primos, o seu percurso académico e profissional sem mácula (ainda que, claro, não lhe pagasse as contas…). O ciclo (vicioso) ia-se renovando a cada ano, até que, o afastamento da Filipa (única amiga que ia mantendo por perto) a promoção da Carla (para a função que ela própria ambicionava) e a transferência do Francisco para a mesma função (bem remunerada, agora) numa empresa da concorrência, parecem ter ajudado a precipitar uma queda depressiva que a todos surpreendeu. A todos menos à Sofia que (fosse com as insónias; as constantes dores musculares e de cabeça que nenhuma condição médica, felizmente, justificara; o olhar cada vez mais mortiço; o distanciamento dos amigos e colegas; a hiperatividade laboral ou a ausência de fontes de prazer) há anos dela dava sinais mais ou menos encriptados. A todos menos à Sofia que (fosse com a distância de segurança que, ao deixá-la cada vez mais sozinha, em bom rigor, a foi expondo mais do que protegendo do sofrimento; fosse com o modo como foi pondo sempre o cumprimento da norma e da expectativa à frente da subjetividade e da autonomia, ou com a exaltação narcísica que retirava de cada elogio ao seu percurso certinho) há anos dela procurava fugir.

  Talvez seja sempre um bocadinho assim quando, invariavelmente, nos “protegemos” do que nos magoa e assusta com aquilo que, ao mesmo tempo, nos afasta do melhor das nossas competências. Esta espécie de patologia da adaptação (com que Sami-Ali enfatizou os perigos da substituição do imaginário e da subjetividade pela norma e pelo banal) ou de falso self (com que Winnicott enfatizou a força patogénica da adaptação excessiva à norma) até pode aportar, num primeiro momento, ganhos académicos e profissionais (e injeções de autoestima a eles associados). Mas parece, a prazo, desvitalizar a relação com o outro e com o mundo, deixando as pessoas mais à mercê do imenso e profundo vazio que este ciclo vicioso parece ir, paulatinamente, cavando (e que quaisquer circunstâncias dolorosas de vida acabarão, provavelmente, por desnudar). A ser assim, talvez só as relações que (re)criam mais do que repetem (a norma e a expectativa) possam preencher esse vazio com (inter)subjetividade, imaginário, espontaneidade, autonomia, conflito, diferença, desejo, esperança, projeto e ação intencional, preenchendo de vida (e de Amor!) as vidas!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.