domingo, 21 de julho de 2019

Ataco com fúria para me proteger!

   Foi crescendo com a ideia de que não era bom a fazer amigos. Nem no futebol, no basquete, ou na relação com a escola, a aprendizagem e os professores. Muito menos a fazer os pais sentirem-se orgulhosos das conquistas que, invariavelmente, pensava nunca estarem ao seu alcance. Por mais que tivesse um conjunto de competências de base para a relação ou para a aprendizagem, era difícil para o Francisco não se sentir uma espécie do patinho feio da família, da escola ou das atividades extracurriculares. Por mais que tivesse um conjunto de competências de base para se chegar aos outros, era difícil para o Francisco não assumir que a generalidade dos colegas e professores não morriam de amores por si. Por mais que tivesse um conjunto de competências de base merecedoras de orgulho, era difícil para o Francisco escapar à ideia de que era uma espécie de desilusão oficial para os pais. Não admira, portanto, que na hora de se misturar com os colegas, no recreio, as suas competências relacionais fossem ofuscadas pelo medo de se sentir rejeitado e humilhado. E que, em função disso, camuflasse o medo numa postura ora mais distante e altiva, ora mais arrogante e desafiadora. Com os professores não parecia ser muito diferente. Especialmente com aqueles que sentia gostarem menos de si. Entrava em escaladas de conflito que nem as sucessivas chamadas à direção pareciam conseguir parar. O registo antes quebrar que torcer parecia pautar, também, muitos aspetos da relação com a mãe. O desafio constante (para lá de todos os limites razoáveis) parecia aumentar de forma proporcional aos castigos com que o procurava disciplinar. Já com o pai, era mais difícil para o Francisco não quebrar. Não que o pai fosse particularmente austero. Mas, ao pé dele, o seu ar de durão rapidamente dava lugar a uma expressão abertamente triste, que acabava por rebentar num choro sofrido, mas já no quarto, para onde fugia para chorar sozinho, durante horas.

   Talvez o Francisco precise, de facto, de chorar durante horas. Mas não sozinho! Precisará, parece-me, de quem lhe páre os exageros (metendo-lhe o dedo no nariz com tanta convicção quanto a que for necessária) ao mesmo que acolhe as suas dores e medos, e os ajuda a compreender. Precisará, parece-me, de quem o ajude a perceber que, ao contrário do que foi imaginando, não tem nenhum defeito de fabrico que o impeça de se chegar aos outros. Que sente bem as injustiças e que tem o direito (e o dever!) de se revoltar contra elas. Mas que, quando estamos muito assustados, às vezes atacamos, com fúria, para nos protegermos. E que isso até pode afastar quem nos magoa mas, muitas vezes, é também um chega para lá monumental a todos aqueles que gostam de nós e que, com o seu amor, nos podem ajudar a metabolizar a dor. E que o grande desafio, nestas circunstâncias, é dar um chega para cá a quem não nos deixa ser arrogantes e altivos, ao mesmo tempo que nos ajuda a traduzir em palavras, em histórias e em gestos, os sinais de fumo  (da arrogância ao desafio) com que vamos comunicando a dor. Se assim for, estaremos todos mais aptos para reconhecer, em nós, as competências que nos tornam “gostáveis”. E, por isso, mais aptos para reclamar, com clareza, o amor, o cuidado e o orgulho de todos quantos são fundamentais para nós.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 8 de julho de 2019

O que não nos liga não nos torna mais fortes!


A Maria foi crescendo muito metida consigo, com a ideia difusa de possuir um qualquer irreparável defeito de fabrico. Só isso explicaria que as notas ficassem sempre aquém das da irmã e das primas. Só isso explicaria que, em toda a infância e adolescência, nunca se tenha sentido verdadeiramente acolhida em nenhum grupo. Só isso explicaria que se fosse sentindo vezes demais uma espécie de corpo estranho, que ninguém conseguia decifrar.
 Conta-me, num choro sentido, a história de uma personagem de banda desenhada que a acompanhou durante toda a adolescência: a Kate era uma adolescente introvertida, sozinha e muito, muito triste. Em pequena teria sido assolada por uma espécie de maldição, em função da qual não podia olhar o mundo lá fora para lá do pôr do sol, sob pena de ter uma visão catastrófica, de cegar logo depois e de morrer, por fim. As cortinas de sua casa eram, por isso, fechadas, uma a uma, mal começava a cair a tarde.  
  
   Talvez o que a Maria quisesse dizer fosse que, ao contrário do que a maldição da Kate dava a entender, o conhecimento (do mundo lá fora e, sobretudo, do mundo que pulula dentro de nós) é vida! Pode assustar ou doer muito, num ou noutro momento. Mas é vida. E relação. Ou não precisássemos todos de quem (dentro de nós e no mundo lá fora), acolhendo o medo do desconhecido e acreditando no melhor de nós, nos ajude a desbravar avenidas no pensamento.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.