Não se lembra de uma única chamada de atenção
dos Professores, em criança. Todos – professores, funcionários, pais dos colegas
– lhe elogiavam a delicadeza, o bom trato, a inteligência, o foco nas tarefas
escolares, o modo como ignorava olimpicamente as provocações dos colegas ou
como geria conflitos no recreio com a maturidade de uma adulta muito bem
resolvida. Com os pais não era muito diferente. Em toda a sua infância, não
recorda mais do que duas ou três chamadas de atenção mais vigorosas.
Recorda-lhes o motivo, mas principalmente a culpa avassaladora e o medo a
perder de vista com que as viveu. A imagem, a roçar a perfeição, que se foi
habituando a vestir trazia-lhe inúmeros ganhos: do ar babado dos pais e avós, à
admiração de professores e funcionários. Mas, ao mesmo tempo, que se sentia
profundamente valorizada por tudo o que fazia bem, foi crescendo, dentro de si,
o medo de não haver espaço para o deslize: na sua performance escolar, familiar
e social, mas também em relação a tudo o que sentia. E, à medida que as vestes
de “menina perfeita” se lhe agarravam à pele, crescia a culpa de cada vez que
não conseguia controlar milimetricamente o que sentia, pensava ou fazia e lhe
saíam um ato mais irrefletido, uma fantasia mais vincada ou uma performance aquém
da perfeição. Estas poucas vezes em que, num rasgo de vida, se distraía eram, invariavelmente,
seguidas por uma culpa imensa, uma tristeza a perder de vista, um medo
avassalador da perda e, claro, por um reforço de todos os instrumentos que a
ajudassem a ser mais certinha ainda! Afinal de contas, se estava claro para a
Maria que todos admiravam a sua imagem de “boa menina”, ia galopando sobre os seus recursos saudáveis o medo difuso de que
todos a deixassem cair no dia em que suspeitassem que também tem um lado lunar.
Diz-me, num choro zangado: “mas tem ideia do
que é crescer a não me poder zangar com ninguém? Com o estúpido do Tomás, que dia
sim dia não me chamava betinha da Professora. Tem ideia do que é evitar jogar à
sueca no liceu, porque quando perdia só me apetecia virar a mesa e mandar com
as cartas à cara da minha colega que não jogava um caracol? E, apesar disso,
acabar, mais uma vez, a fazer de boa samaritana: a tolerar as suas críticas à
forma como eu jogava e ainda a confortá-la por cima, porque eu nunca podia ser
outra coisa que não a Maria querida? Tem ideia do que é? E os meus pais? Como é
que a minha mãe nunca deu conta que eu era tudo menos uma menina feliz? Como é
que nunca deu conta que, por detrás, daquele doce de adolescente, estava uma menina
às voltas com um vendaval de medos? Porque é que eu namorei, anos a fio, com
palermas que só me faziam sentir inferior e mal-amada e eu, para variar, lá
estava a fazer de boa samaritana compreensiva? E porquê que ainda hoje me custa
tanto pôr as pessoas no sítio? Porque é que, por mais razão que tenha, ainda me
sinto culpada se meto o dedo no nariz de alguém?
Talvez seja sempre um bocadinho assim.
Talvez as emoções e os sentimentos (da tristeza à raiva, passando pelo medo,
pelo encantamento, pela alegria ou pela desilusão) sejam, em certo sentido, “pensamentos
à procura de um pensador” (recordando Bion) que, sempre que não
encontram espaço relacional para se exprimirem, vão criando ruído e entraves ao
crescimento… e à relação. Já quando encontram quem os acolha (não
se assustando, ao mesmo tempo que sinaliza limites) e ajude a pensar (ajudando
a vesti-los de palavras e a liga-los com aspetos essenciais da sua história)
serão uma espécie de força motriz de vida, que impulsiona o crescimento… e
aproxima o Outro!
Nota:
Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou
noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma
descrição literal.