domingo, 28 de janeiro de 2018

Insónias e canções de embalar!

   Às 7h da manhã já se sentou em frente da máquina, que manobra com mestria. Será assim até às 16h, numa azáfama que o conforta. Ao toque de saída do turno, esperam-no os biscates com que, há muito, compõe as poupanças para acautelar o futuro. Termina o dia quase sempre depois das 21h00, numa correria para chegar a casa a tempo de ainda aconchegar o cobertor aos filhos. A mulher queria-o em casa mais cedo. As contas são apertadas, e sem os biscates talvez não houvesse lugar para poupanças, mas não há dinheiro que pague poder-se jantar em família, argumenta. O Luís sabe disso, mas acaba sempre por adiar o descanso, como se a ele não tivesse direito. Quando finalmente cai na cama, exausto, não consegue descansar. Tudo parece passar-se como se as angústias que, à custa de uma hiperatividade funcional (como lhe chamou Sami Ali), vai varrendo para debaixo do tapete, durante o dia, surgissem em catadupa quando apaga a luz. Quanto mais faz por dormir, mais o pensamento vai saltando de inquietação em inquietação. Tudo lhe parece vir à cabeça: do planeamento meticuloso do dia de trabalho ou da gestão financeira das suas poupanças, ao toque de culpa por, quase nunca, estar em casa a horas de brincar com os miúdos ou de lhes supervisionar os TPC. Quanto mais faz por dormir, mais se sente dominado pela angústia, dando por si a tomar como certo que, tarde ou cedo, os filhos o culparão pelas ausências; que, tarde ou cedo, a mulher se fartará de si e da sua dificuldade em parar… para desfrutar da vida. Quando já não aguenta mais o galopar da espiral ansiosa, levanta-se, vai direito à caixa dos medicamentos e, sucumbe ao comprimido que, contra a recomendação da sua médica assistente, acaba por tomar noite após noite.

   À semelhança do que parece acontecer em tantos outros contextos, também à boleia dos distúrbios de sono parece haver um consumo excessivo de medicação psicotrópica. Não que, evidentemente, a terapêutica medicamentosa não possa, mediante avaliação médica, ser útil em muitos casos. Mas talvez seja importante assumirmos que, em tantas e tantas circunstâncias, os Luíses e as Luísas precisam de espaços relacionais (psicoterapêuticos, porventura) que lhes permitam pensar e metabolizar a angústia que, dia após dia, lhes vai sugando o prazer e o descanso. Afinal de contas, talvez não deixemos nunca (!!!) de precisar de quem (ao nosso lado e dentro de nós) nos acolha a angústia sem soçobrar, nos ajude a configurá-la em palavras, a integrá-la em histórias que lhe deem um sentido na nossa história. A ser assim, talvez só nos vamos reconciliando verdadeiramente com o sono, à medida que formos sendo capazes de puxar para nós quem (ao nosso lado e dentro de nós!) nos aconchegue o sono e nos acarinhe o sonho… com histórias e cantigas de embalar!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 21 de janeiro de 2018

E as birras 4.0?

   Fecha a porta do escritório com a sensação de quem fechou um dia intenso de trabalho, para abrir umas quantas mais correrias. É preciso apanhar o Martim no ATL, ir comprar tecido para o vestido que a Madalena usará na peça da escola, deixar o Martim no treino, atravessar a cidade para ir buscar a Madalena ao ballet e, na volta, passar no supermercado. A Maria, quase sempre, se vai organizando, com eficácia e prazer, nas correrias familiares do dia-a-dia. Mas o internamento de urgência da sogra e a indisponibilidade do Pedro para a rotina familiar que isso desencadeou, para além, claro, da preocupação de todos, está a tornar a semana particularmente difícil.
 Aquilo que a Maria imaginou que seria uma visita supersónica ao supermercado para comprar leite e fruta para os miúdos, rapidamente se transformou no palco do melhor que o Martim sabe fazer em matéria de birras! Bem em frente ao videojogo (que, um par de dias antes, tinha concordado preterir em favor da bicicleta nova), começou por puxar do seu melhor olhar sedutor para tentar convencer a mãe a levar o jogo. Gorada a primeira ronda negocial foi endurecendo a luta: choramingando primeiro e, rebolando-se no chão, ao mesmo tempo que esperneava e gritava a plenos pulmões, depois.  

  As crianças saudáveis também fazem birras! Especialmente quando, por um ou outro motivo, estão mais inseguras ou, circunstancialmente, sentem os pais mais fragilizados ou indisponíveis. E – tenho para mim – não há mal nenhum nisso…desde que, naturalmente, os pais não deixem de exercer a autoridade que a educação também implica. De cada vez que os Martins ou as Franciscas conseguem, invariavelmente, fazer das birras uma estratégia negocial de sucesso garantido, até podem, num primeiro momento, sentir-se vaidosos – por conseguirem o chocolate ou o videojogo pelo qual lutaram – mas, tenho para mim, não deixarão de se sentir um bocadinho inseguros e inquietos. Afinal de contas, não é difícil imaginar que poderão, porventura, sentir, também o lado B da birra, numa lógica de: “se os meus pais, que são os meus pais, não têm a firmeza e a segurança necessária para me pararem nos meus caprichos e exageros, quem é que vai ter a força necessária para me segurar quando me sentir a cair?” Tudo parece passar-se como se, ao apelo ruidoso pelo brinquedo, pelo chocolate ou pelo videojogo, correspondesse um outro, mais profundo, por constância, firmeza, afeto e segurança. A ser assim, o sentimento de que os pais (independentemente da exuberância das birras) farão cumprir um conjunto de regras base, claras e coerentes, não deixará de contribuir, de forma muito significativa, para que se cresça melhor.
   A ser assim, talvez cresçamos melhor sempre que temos quem nos ajude a construir a tolerância à frustração. A ser assim, talvez cresçamos melhor sempre que temos quem nos assegure – muito mais por atos do que por palavras – ter a segurança necessária para, com afeto e firmeza, nos pôr no sítio sempre que exageramos nos caprichos.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.