Nunca, até olhar nos olhos do Pedro, se tinha
permitido sentir borboletas na barriga. Daquelas à séria, que põem as pessoas a
imaginar tontices (próprias de filmes de domingo à tarde) e quase fazem o
coração sair pela boca. Mas durou pouco a Primavera… Já o tinha ouvido, no bar, a insurgir-se
contra a desregulação na alta finança. E, pior, para além da boémia (que
conciliava bem com as sebentas) e do estilo alternativo, o Pedro andava nas
manifestações, de megafone na mão, a gritar contra as propinas.
Depressa as insónias tomaram conta das noites da Constança. Repetiam-se as vezes em que acordava, assustada, com a imagem do pai (secundado pelo acenar de cabeça da mãe) a dizer-lhe, com uma calma desconcertante: “A Universidade está cheia desses maltrapilhos. Vê lá o que arranjas para dar o nome aos teus filhos!” Deixou de ir ao bar e começou a evitar todo e qualquer espaço onde fosse provável dar de caras com o Pedro. Tinha de se concentrar nas sebentas. Afinal de contas, há muito que todos haviam decidido que ia ser uma advogada brilhante. Custou-lhe, ao início, mas foi-se habituando. Afinal, habituar-se ao que esperavam de si era o que fazia desde que se lembra. Foram-se os pesadelos, mas ficaram as insónias e, com elas, um olhar cada vez mais apagado.
Depressa as insónias tomaram conta das noites da Constança. Repetiam-se as vezes em que acordava, assustada, com a imagem do pai (secundado pelo acenar de cabeça da mãe) a dizer-lhe, com uma calma desconcertante: “A Universidade está cheia desses maltrapilhos. Vê lá o que arranjas para dar o nome aos teus filhos!” Deixou de ir ao bar e começou a evitar todo e qualquer espaço onde fosse provável dar de caras com o Pedro. Tinha de se concentrar nas sebentas. Afinal de contas, há muito que todos haviam decidido que ia ser uma advogada brilhante. Custou-lhe, ao início, mas foi-se habituando. Afinal, habituar-se ao que esperavam de si era o que fazia desde que se lembra. Foram-se os pesadelos, mas ficaram as insónias e, com elas, um olhar cada vez mais apagado.
As notas brilhantes e os contactos familiares
valeram-lhe um estágio, e depois um emprego num grande escritório de advogados.
Acabou por casar com o filho de um amigo da família. Não que alguma vez, ao pé
do marido, o coração lhe tenha querido saltar pela boca, como acontecera, há
muitos anos, nos corredores da velhinha Faculdade de Direito. Mas estava já em idade de casar e ter filhos…
O ritmo frenético no trabalho, um casamento
morno (funcional na aparência, mas sem vida nem rasgo) e a preocupação com os
filhos foram-lhe preenchendo o tempo (e camuflando os vazios). Até que todo o
longo e doloroso processo da doença do pai e, depois, a sua morte, precipitaram
uma espécie de terramoto na estrutura que, durante anos e anos, se alicerçou na
adaptação (quase sem falhas) ao que esperavam de si. “Como é que eu posso fazer
o luto de alguém de quem eu nunca discordei? Como é que eu posso fazer o luto
de alguém com quem nunca me zanguei?”, viria a perguntar-me (a perguntar-se, para ser mais exato), anos mais tarde.
Precisamos de quem nos sonhe e nos invista de
expectativas, para que, a partir delas, possamos, na diferença (e no conflito) que
a relação implica, sonhar e empreender autonomamente a nossa vida. Já ter quem,
invariavelmente, nos engula nos seus sonhos e nos seus ritmos, poderá
deixar-nos reféns numa espécie de sequestro da subjetividade e da autonomia (próximos
daquilo a que Winnicott chamou de falso
self). Esta hiperadaptação funcional, ensina-nos Sami-Ali, faz-se
acompanhar de um recalcamento da função
do imaginário (posso sonhar-me se há quem, invariavelmente, me engula nos
seus sonhos?) e de uma depressão
caracterial (uma espécie de depressão contida, vazia de sintomas…e de vida),
numa constelação que (como chamam a atenção a psicossomática de inspiração
psicanalítica e a psiconeuroendocrinoimunologia), à medida que desvitaliza a
vida mental parece fragilizar os equilíbrios biológicos do corpo.
Nota: Atendendo
ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de
guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado
(de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os
textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de
histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.