domingo, 25 de junho de 2017

O teu bem faz-me tão mal!*

  Nunca, até olhar nos olhos do Pedro, se tinha permitido sentir borboletas na barriga. Daquelas à séria, que põem as pessoas a imaginar tontices (próprias de filmes de domingo à tarde) e quase fazem o coração sair pela boca. Mas durou pouco a Primavera…  Já o tinha ouvido, no bar, a insurgir-se contra a desregulação na alta finança. E, pior, para além da boémia (que conciliava bem com as sebentas) e do estilo alternativo, o Pedro andava nas manifestações, de megafone na mão, a gritar contra as propinas.
 Depressa as insónias tomaram conta das noites da Constança. Repetiam-se as vezes em que acordava, assustada, com a imagem do pai (secundado pelo acenar de cabeça da mãe) a dizer-lhe, com uma calma desconcertante: “A Universidade está cheia desses maltrapilhos. Vê lá o que arranjas para dar o nome aos teus filhos!” Deixou de ir ao bar e começou a evitar todo e qualquer espaço onde fosse provável dar de caras com o Pedro. Tinha de se concentrar nas sebentas. Afinal de contas, há muito que todos haviam decidido que ia ser uma advogada brilhante. Custou-lhe, ao início, mas foi-se habituando. Afinal, habituar-se ao que esperavam de si era o que fazia desde que se lembra. Foram-se os pesadelos, mas ficaram as insónias e, com elas, um olhar cada vez mais apagado.
  As notas brilhantes e os contactos familiares valeram-lhe um estágio, e depois um emprego num grande escritório de advogados. Acabou por casar com o filho de um amigo da família. Não que alguma vez, ao pé do marido, o coração lhe tenha querido saltar pela boca, como acontecera, há muitos anos, nos corredores da velhinha Faculdade de Direito.  Mas estava já em idade de casar e ter filhos…
  O ritmo frenético no trabalho, um casamento morno (funcional na aparência, mas sem vida nem rasgo) e a preocupação com os filhos foram-lhe preenchendo o tempo (e camuflando os vazios). Até que todo o longo e doloroso processo da doença do pai e, depois, a sua morte, precipitaram uma espécie de terramoto na estrutura que, durante anos e anos, se alicerçou na adaptação (quase sem falhas) ao que esperavam de si. “Como é que eu posso fazer o luto de alguém de quem eu nunca discordei? Como é que eu posso fazer o luto de alguém com quem nunca me zanguei?”, viria a perguntar-me (a perguntar-se, para ser mais exato), anos mais tarde.

  Precisamos de quem nos sonhe e nos invista de expectativas, para que, a partir delas, possamos, na diferença (e no conflito) que a relação implica, sonhar e empreender autonomamente a nossa vida. Já ter quem, invariavelmente, nos engula nos seus sonhos e nos seus ritmos, poderá deixar-nos reféns numa espécie de sequestro da subjetividade e da autonomia (próximos daquilo a que Winnicott chamou de falso self). Esta hiperadaptação funcional, ensina-nos Sami-Ali, faz-se acompanhar de um recalcamento da função do imaginário (posso sonhar-me se há quem, invariavelmente, me engula nos seus sonhos?) e de uma depressão caracterial (uma espécie de depressão contida, vazia de sintomas…e de vida), numa constelação que (como chamam a atenção a psicossomática de inspiração psicanalítica e a psiconeuroendocrinoimunologia), à medida que desvitaliza a vida mental parece fragilizar os equilíbrios biológicos do corpo.


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 4 de junho de 2017

E se eu não passar de ano?

  O teste de Português fê-lo suar mais do que a partida de futebol contra o 5º B, no intervalo grande. Como, de resto, o de Ciências, História e Inglês. Vinha de uma Escola pequenina, mesmo ao lado do infantário onde entrara com 3 anos. Os primeiros tempos não foram muito fáceis. Os pavilhões pareciam-lhe muito grandes e a fila para a cantina cheia de miúdos mais velhos, a lembrar-lhe que, à falta de melhor argumento, a idade (e a envergadura física) pode ser um posto. Reservado, integrou-se, ainda assim, relativamente bem na nova turma. As habilidades que saiam do seu pé esquerdo deram uma ajuda, vindo a garantir-lhe mesmo alguma popularidade lá para os lados do campo de futebol da Escola. Já na sala de aula, está a (muitas) léguas de se sentir um Ronaldo. A tensão com que enfrenta cada aula parece provocar-lhe dores de pernas mais intensas do que todas as correrias de um jogo de futebol, no intervalo de almoço. Entre o medo de, a qualquer momento, ser chamado ao quadro e o fantasma de ser realmente incapaz em matérias escolares, é difícil para o Carlos concentrar-se nas explicações da Professora de História ou de Ciências. Se a isso acrescentarmos a fúria que sente em silêncio sempre que a Professora elogia a inteligência e empenho da sua prima Mónica (aluna brilhante, pois claro!), fica difícil, para o Carlos, libertar espaço mental para se focar na aprendizagem. Em casa, perante a insistência constante dos pais para que estude (não resistindo a dar, uma ou outra vez, a prima Mónica ou a irmã mais velha como exemplo), deixou cair, entre lágrimas, um sofrido: “oh mãe, tu sabes que eu não dou para a Escola!”, expressão que, meses antes, ouvira, acidentalmente, numa conversa entre a avó e a mãe, a respeito do seu rendimento escolar.

  Se aprendemos com Bruner que a aprendizagem tem de ser enquadrada no contexto sociocultural (ligando conceitos teóricos com a realidade sociocultural e pessoal das crianças);  com João dos Santos que muito dificilmente há dificuldades de aprendizagem sem dificuldades emocionais;  com Bion (Gibello e tantos outros) que o desenvolvimento cognitivo nunca se faz à margem do desenvolvimento afetivo; se o relatório do Programa Nacional de Saúde Escolar(relativo ao ano letivo de 2014/2015) parece reconhecer a relação estreita entre sofrimento emocional e insucesso e indisciplina escolar, talvez faça sentido olharmos para os resultados escolares menos como uma espécie de decorrência direta do potencial cognitivo da criança (que, em muitas circunstâncias, parece não se traduzir nas performances que poderia alavancar) e mais como um aferidor do papel da Escola e da família na promoção da saúde (mental) e, com ela, da curiosidade e do conhecimento. A ser assim, talvez o Carlos precise tanto de estratégias pedagógicas (fundamentais, naturalmente), como de quem se sintonize com ele e o ajude a pensar tudo aquilo que vai sentindo mais ou menos em silêncio - do medo de ser incapaz que o parece bloquear, ao fantasma de desiludir pais e professores, passando pela fúria contida ao imaginar que, aos olhos dos professores, mas principalmente dos pais e da avó, nunca vai chegar aos calcanhares da prima ou da irmã – para, a partir daí, retirar contrapartidas práticas que o façam ir à luta na sala de aula como nunca deixa de ir no campo de futebol.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.