segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A diferença faz bem à saúde!


Precisamos (todos!) do que nos ligue. Precisamos (todos!) de nos sentir parte de algo maior. Talvez seja um bocadinho isso que acontece quando, num estádio de futebol efervescente, num concerto, ou numa manifestação política ou religiosa, por exemplo, a intensidade ou a comoção parecem ligar pessoas tão diferentes entre si. Talvez precisemos, todos, desta espécie de sentimento tribal. E ainda bem! Afinal de contas, sempre foi a capacidade de nos ligarmos, apesar das diferenças, que foi tornando mais humana a humanidade. Não será, por isso, de estranhar, que gostemos (todos!) de privar com quem comungue connosco gostos, interesses, visões do mundo, ilusões, ideias e sonhos. E ainda bem! Ou não fosse a experiência de sentir que não sentimos sozinhos tão humanizante. Mas talvez não haja ligação – efetiva e profunda - sem diferença! Fecharmo-nos numa espécie de relação especular com o igual, anulando as diferenças será, em certo sentido, a negação da relação… e do outro. Um outro que, amputado da sua autonomia, surgirá mais como uma espécie de prolongamento narcísico ou de caixa de ressonância (ao bom jeito dos yes man) do que como um outro autónomo… e diferente!
   A ser assim, talvez não haja muito como haver crescimento (efetivo e profundo) à margem da diversidade e do conflito (franco, aberto e leal). Será a diferença que traz o novo, qual semente de entusiasmo onde antes havia (apenas) medo do desconhecido. Afinal de contas, de duas ideias milimetricamente iguais não resulta nada de novo. Do confronto de duas ideias diferentes poderão decorrer, pelo menos, três ideias: as duas iniciais e a que resulta da sua síntese e integração. A ser assim, o igual impele para a repetição. Já o diferente instiga para o conhecimento e para a integração (re)criadora. E estimula o pensamento e a transparência. Ou não precisássemos de digerir melhor as ideias, tornando-as mais e mais claras, de cada vez que nos queremos fazer entender perante o outro…diferente.

   A ser assim, tudo o que procure anular as diferenças - sejam os fantasmas mais pomposos do racismo ou da xenofobia ou as discriminações menos sonantes (quando a Escola cai na tentação de tomar a hierarquização das notas como primeiro critério na hora de organizar turmas, por exemplo) - não só passará ao largo de critérios éticos, como será mais amigo da repetição especular do que da curiosidade, do conhecimento, da relação e da saúde!

segunda-feira, 22 de outubro de 2018

Os adultos também crescem?

 Fala da família com a alma toda. Da avó com o coração do tamanho do mundo, aos irmãos (mais velhos) com quem aprendeu a conciliar rivalidade com abraços cúmplices; passando, claro, pelos pais que lhe foram dando (com todos os defeitos que os pais bondosos também têm) o colo e a autonomia para crescer bem. Talvez por isso, a Bárbara, mulher com mundo, brilho no olhar e sangue na guelra, se venha a sentir crescentemente desconfortável com aquilo que sente ser o ressuscitar do controlo dos pais. Desde que regressou de uma experiência profissional no estrangeiro e assumiu, pela primeira vez, uma “relação séria”, que os sente a intensificar recomendações e comentários acerca do seu visual, da forma como decora e arranja a casa, dos investimentos financeiros que devia ou não fazer, etc., etc. Sem conseguir, ainda, interpelar os pais acerca do seu mal-estar, acaba por se deixar enredar num clima mais impaciente e quezilento. Diz-me, revoltada: “às vezes parece que só conseguem dizer que sou preciosa na vida deles e que têm muito orgulho em mim quando vivo a 2000 km de distância. Desde que cheguei de Londres nunca mais me disseram! É só reparos e recomendações e reparos e recomendações e reparos e recomendações! Aos olhos deles, parece que voltei a ter 16 anos, que não me sei orientar e que faço tudo ao contrário! Eu quero entender-me com eles. Eu preciso muito deles! Mas não desta maneira! Já não sou uma teenager à deriva”.
           
  Talvez o medo de que a filha deixe de precisar deles (como se os filhos alguma vez deixassem de precisar dos pais!!!) esteja a enevoar o entusiasmo e o orgulho que os pais da Bárbara sentirão no seu crescimento. Talvez estejam só, numa fórmula encriptada, a dizer, cada um à sua maneira: “És preciosa na minha vida. Tanto, que morro de medo que, à medida que vais crescendo, deixes de precisar de mim. E se deixares de precisar, o que vai ser de mim?” Afinal, ser-se capaz de ligar o complicómetro para comunicar numa espécie de código Morse, colocando no off a capacidade de dar luz ao que sentimos, é uma “incompetência” que (todos) vamos treinando vezes de mais.
  Talvez a Bárbara esteja, ainda, a pensar, dentro de si como pode ser tão clara quanto é capaz, com os pais. E a ganhar fôlego para, de uma assentada, lhes dizer que nunca a filha mais nova (como os irmãos) vai deixar de precisar muito, muito dos pais. Não para controlarem os seus passos (como quando era pequena), mas para a empurrarem para o melhor dos seus recursos. Não para desdenharem as suas escolhas (por mais pequeninas que sejam), mas para nunca deixarem de estar atentos e lhe porem o dedo no nariz se alguma vez a sentirem a desistir do melhor de si própria. E que, na volta, um és preciosa na minha vida; um tenho tanto orgulho em ti ou um gosto tanto de ti é tão mais eficaz na hora de mostrarmos às pessoas o quão são fundamentais na nossa vida do que um: este sofá não fica bem aqui; tenho de ir contigo comprar os candeeiros e o serviço de loiça que tu não tens jeitinho nenhum! E que, já agora, estará na hora de (re)descobrirem o sonho, o projeto e o futuro porque têm o direito (e já agora o dever! porque, seja aos 5, aos 16 ou aos 40, aprende-se muito mais por bons exemplos do que por bons conselhos) de serem muito mais do que pais da mais nova, da mais velha e dos do meio.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

quarta-feira, 25 de julho de 2018

Quem disse que não existem (caça) fantasmas?

  Há muito que não ia a um Festival de Verão. Não que tivesse deixado de gostar de música. Mas o último tinha sido tão dolorosamente inesquecível que, nos anos seguintes, só os outdoors a anunciar as bandas a deixavam de cabelos em pé. Passaram cincos anos desde que se desunhou para surpreender o João com dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. Se a reação frouxa João não deixou de intensificar umas quantas luzes de alerta que, há muito, vinham crescendo dentro da Maria, o pior estava para vir. Toda a gente parecia envolvida pela atmosfera intensa do concerto. Toda a gente menos a Maria e o João. Ele já não disfarçava o enfado. Mas a Maria não desarmava. Abraçou-o. Deu-lhe a mão. Mas nada encaixava. Há muito que pareciam dois corpos estranhos. Nessa mesma noite, o João já não dormira em casa.
   Já a viver um amor terno e intenso com o Carlos, a Maria estava prestes a voltar ao festival que selara o fim da sua relação com o João. O Carlos tinha movido montanhas para conseguir dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. De gesto em gesto, o Carlos arrebatava a Maria como o João nunca fora capaz de fazer. E ela andava tão de bem com a vida que não mais se lembrara do João. Não até ao dia do concerto, em que, sem saber bem porquê, acordou a pensar nele. A leveza tinha dado lugar a uma angústia difusa, que não mais a largou nesse dia. Estava implicativa com o Carlos: em casa, no caminho para o festival, no concerto. Mas ele não desarmou. Puxou-a para si, abraçou-a e perguntou-lhe o que é que se passava. Mas a Maria, que costumava sentir o abraço do Carlos como o lugar mais seguro do mundo, estava assustadiça. E esquivou-se com um seco: não se passa nada. O que é que se havia de passar, refugiando-se, de novo, na implicância. Vezes e vezes sem conta até, já em casa, o Carlos ter rebentado numa discussão acesa (na sequência da qual viriam a sentir-se ainda mais próximos).
   Tudo parecia passar-se como se, de repente, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse, por momentos, deixado de ser o poço de charme por quem se mantém profundamente apaixonada, para ser uma espécie de fiel depositário de algumas das suas dores e medos mais recônditos. Tudo parecia passar-se como se, por momentos, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse deixado de ser o homem profundamente apaixonado e apaixonante para se tornar abandonante.

  Talvez não haja muito como (para o bem e para o mal) não projetarmos no outro significativo os aspetos essenciais da nossa história relacional. Esta aparente inevitabilidade (que, grosso modo, Freud cunhou como transferência), quando massiva, pode aproximar-nos do risco de reduzir o outro a uma espécie de prolongamento do nosso mundo interno. Mas é também ela, ao atualizar feridas antigas em novas (e velhas) relações, que abre a porta para a reparação, para a criatividade, para o pensamento e para a vida. Não desistamos nós de encontrar quem faça diferente! Não desistamos nós de encontrar quem faça melhor! Não desistamos nós de ver o outro (na sua diferença e autonomia) para lá dos holofotes da nossa projeção. Não desista o outro de fazer diferente! Não desista o outro de fazer melhor! Por mais que, mesmo sem querer, às vezes o “empurremos” (na secreta esperança de que não o faça!) para a repetição de alguns dos aspetos mais dolorosos da nossa história!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 2 de julho de 2018

"Eu nasci assim"! Posso ser outra coisa?

  Vamos, de uma forma mais ou menos batoteira, olhando para o feitio como um facto consumado, mais ou menos inevitável.  Da mesma forma que nascemos loiros ou morenos, tudo se passaria como se a genética determinasse, por si só, se somos mais reservados ou mais expansivos; mais medrosos ou mais afoitos; mais frios ou mais afetuosos; mais autónomos ou mais dependentes; mais ou menos inteligentes, etc., etc. E, quanto a isso, não haveria muito a fazer. Afinal de contas, como diria a Gabriela: “eu nasci assim, eu cresci assim…”.
  Esta visão determinista até pode servir para tentar encaixar toda a nossa humanidade numa regra de três simples. Mas não servirá – parece-me - para tentar entender a sua complexidade.  Não que a herança genética não seja relevante. Claro que é! Mas funcionará, para a maioria das características humanas, de uma forma substancialmente mais complexa e interativa do que aquela que Mendel observou nas ervilhas.  A ser assim, muitas das nossas características (a que fomos chamando feitio) vão sendo forjadas nas dinâmicas relacionais em que, dia após dia, nos vamos construindo.

  A ser assim, guardarmos dentro de nós quem (seja quem for) respeita os nossos ritmos e se sintoniza com os nossos gestos mais espontâneos, contribuirá para que nos sintamos mais competentes na hora de expressar ideias, angústias, necessidades ou desejos. A ser assim, guardarmos dentro de nós quem (seja quem for) nos ajuda a transformar em palavras e atos a complexidade do que sentimos, deixar-nos-á mais próximos de sermos capazes de ligar afeto, palavra e gesto. A ser assim, guardarmos dentro de nós quem (seja quem for) nos ajude a despertar a curiosidade e o espanto perante a beleza e o conhecimento, deixar-nos-á mais próximos da criatividade e do prazer de conhecer e brincar com os conceitos e os pensamentos. A ser assim, guardarmos dentro de nós quem (seja quem for) nos incita a explorar o mundo, ao mesmo tempo que nos vai assegurando (muito mais por gestos do que por palavras) nunca deixar de ser um porto forte e seguro a que poderemos sempre voltar, tornar-nos-á mais aptos para a audácia e para a autonomia.

   A ser assim, a relação será (sempre!) aquilo que veste a herança genética, aproximando-nos (ou afastando-nos) do melhor de nós!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Apelo e indiferença!

  A cada nova discussão, o Bernardo corre para o escritório lá de casa, alegando que a Maria está muito exaltada para poderem conversar. É assim quando a Maria dá um murro na mesa e puxa pelo melhor dos seus agudos. É assim a cada apelo sereno da Maria para conversarem de forma franca e aberta sobre tudo o que os aproxima e os tem separado… devagarinho!
   Por mais que sejam já mais as noites em que o Bernardo acaba por adormecer, entre processos, no sofá do escritório; por mais que há muito não consigam falar se não sobre funcionalidades do quotidiano, a cada apelo – mais exuberante ou mais sereno – da Maria, o Bernardo responde com: “hoje não é bom dia para falarmos”. Não é muito diferente quando a Maria o irrita ou magoa: barrica-se no escritório a trabalhar. Afinal de contas, não gosta de conflitos nem de discussões.

  Ao escutar o Bernardo não pude deixar de me lembrar dos estudos clássicos do Spitz e do Bowlby, a propósito da vinculação. Grosso modo, ambos parecem convergir na ideia de que quando o bebé é separado da mãe tende, num primeiro momento, a reclamar efusivamente (chora, grita, esperneia) na expectativa de ter de volta o seu objeto de amor. Se as suas expectativas relacionais continuarem a ser violentamente goradas ao longo do tempo, o bebé vai desistindo progressivamente até, no limite, se fechar sobre si próprio.
  Talvez seja sempre um bocadinho assim vida fora. Sempre que engolimos o que nos magoa (mas também o que nos entusiasma ou arrebata!), talvez estejamos a desistir um bocadinho mais da relação. Afinal de contas, tudo parece passar-se, nestas circunstâncias, como se esperássemos que o outro não pudesse acolher e entender aquilo que sentimos! Já quando fazemos por ser claros nas reclamações, nas birras e nos apelos estaremos a puxar o outro bem para o pé de nós, reivindicando, a uma só voz, não só a sua capacidade para reparar a dor que nos provocou, como a sua firmeza na hora de nos parar os exageros. A ser assim, talvez as relações definhem muito mais à conta da inércia e indiferença (hostil), do que à boleia de conflitos abertos e discussões francas!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 22 de abril de 2018

Ladrões da alegria!

 Já tinha feito várias comunicações, para os mais diversos públicos. Mas desta vez era diferente. Ia falar com alguns dos colegas que mais admirava sentados bem na primeira fila da plateia. Se ficou muito orgulhosa com o convite, a verdade é que a ideia de falhar perante os seus Mestres a atemorizava. Começou tensa, com a voz levemente trémula, mas rapidamente ganhou confiança, começando a discorrer, com alma e saber, sobre os assuntos que a apaixonam.
 Estava radiante, no final. E orgulhosa, muito orgulhosa. Pelos elogios sentidos dos pares e dos Mestres. Mas, principalmente, por se ter conseguido soltar ao pé deles. Estava radiante. E orgulhosa, muito orgulhosa. Por mais uma importante vitória na construção do seu percurso profissional. Mas, principalmente, por sentir que tinha vencido, de vez, o fantasma de que, na hora H, acabava sempre por falhar. Estava radiante. E orgulhosa, muito orgulhosa. Até que o Bernardo lhe deu um abraço mortiço e lhe segreda ao ouvido um seco: disseste muitas vezes: digamos assim. Tens de ter atenção a essas muletas. Sem mais. 
 E, num ápice, a Maria sentiu a alegria a esvair-se entre os dedos. Sem apelo nem agravo. Podia ter sido um laivo de inveja de um colega que não tolera o sucesso alheio. Ou até um tique narcísico de um Mestre empertigado. Mas não foi! Foi o Bernardo. O Bernardo a quem a Maria não desistiu, ainda, de acordar com um beijo. Podia ter posto o Bernardo no sítio. Mas, como fazia sempre, respirou fundo e pensou para si: Ele é assim. É assim em tudo. Mas lá no fundo gosta de mim. E estará orgulhoso à sua maneira. Só que não consegue demonstrar. O que é que hei-de fazer?

Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se, entre o dar e o receber, não sentíssemos uma distância colossal que magoa?
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se tivéssemos, invariavelmente, de engolir a dor? 
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se não nos pudéssemos revoltar com o que nos magoa?
Porque é que mesmo sendo sensíveis, inteligentes, afetuosos e atentos insistimos, tantas vezes, vezes de mais, em nos comportarmos como se um Amor inteiro, vivo e recíproco ficasse sempre bem nos romances, mas nunca pudesse ser um desejo de vida, pelo qual se luta com unhas e dentes?

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 16 de abril de 2018

Orgulha-te de mim!

  Os bebés nascem muito antes do parto!
  Ganham vida, no coração dos pais, de cada vez que lhes sonham as feições, as manhas, as qualidades ou as birras. Dão puladas de gigante de cada vez que, entre o medo e o entusiasmo, lhes adivinham a bondade, as conquistas, a inteligência ou a beleza. Este bebé imaginário (como lhe chamou Soulé) encontrará o bebé real no parto e com ele seguirá vida fora, como que lembrando aos pais a beleza da diferença e da autonomia.
  Este sentimento de ter quem nos sonhe e se orgulhe de nós, antes mesmo da nossa capacidade de sonhar, será indispensável para robustecer a indelével capacidade humana de sonhar... e de partir do desejo e do imaginário para criar.  Termos quem nos invista de afeto e expectativa será fundamental para tonificar a autoestima, sem a qual dificilmente agarraremos os desafios com vivacidade e brilho nos olhos. Termos quem, vida fora, nos imagine impulsionará a nossa capacidade de transformar os sonhos em projetos, e os projetos em ação intencional.
  Se termos quem, vida fora, nos instigue à autonomia de sonharmos o nosso caminho sem nunca deixar de nos fazer viver nos seus sonhos, nos faz dar puladas de meter inveja a qualquer suplemento alimentar, já termos quem nos aprisione nos sonhos e medos que nos delegou não deixará, nunca, de atrofiar o melhor das nossas qualidades. Talvez seja sempre um bocadinho assim, quando a alegria e serenidade de darmos o melhor de nós pelos nossos sonhos é contaminada pelo travo doloroso de não sentirmos o orgulho das pessoas fundamentais para nós. Com fórmulas mais ou menos mortiças do tipo: “já sabes como ele é!”, lá vamos fingindo que não nos importamos, deixando o melhor de quem nos é fundamental morrer um nadinha mais! Como se não fossemos capazes de, com o melhor de nós, puxar o melhor do outro, num qualquer grito genuíno do género: Sou diferente de ti! Faço escolhas diferentes daquelas que farias por mim. Algumas serão erradas, mas são as minhas. Ajudas-me a fazer melhor sem me aprisionares no fazeres por mim? Como fui aprendendo contigo – mais por bons exemplos do que por bons conselhos – o mais importante é não desistirmos de desbravar o nosso caminho, com a cabeça completamente nas nuvens e os dois pés bem assentes no chão. E lutar, lutar de coração cheio! E sim, preciso, e quero, quero muito (!) que te orgulhes de mim por eu não desistir! E que mo digas! Que mo digas com a alegria com que desconfio que dizes às minhas tias ou aos teus amigos na minha ausência.

domingo, 18 de março de 2018

Em nome do Pai!

O “olha que eu digo ao teu pai e ele diz-tas” foi condensando, por demasiado tempo, um modelo de parentalidade (e de relação entre homens e mulheres e entre estes e as crianças) mais ou menos clivado: a mãe protegia, cuidava e dava colo. O pai punha o pão na mesa e era o rosto da Lei e da ordem familiar. A mãe era dócil, afetuosa e tinha um colo do tamanho do mundo. O pai era duro, distante e nunca se comovia. Afinal, “homem que é homem não chora” e emoções, se as tinha, era sua obrigação escondê-las atrás de um ar grave e sisudo.
  A Psicologia e a Psicanálise Clássicas abriram avenidas na compreensão das relações humanas, da parentalidade e das relações familiares. Mas, por mais que, em tantos e tantos aspetos, tenham estado à frente do seu tempo (dando um empurrão ao mundo criativo que pula e avança), não deixaram (inevitavelmente!) de também beber influências de uma ideia clivada de família, organizada em torno de um “polícia bom” que protegia e cuidava, e de um “polícia mau” e distante que garantia a Lei. Talvez por isso, o pai foi sendo conceptualizado como o terceiro, que abria a relação (mais ou menos fusional) mãe-filho à diferença e à realidade. Não sendo avanço pequeno na ciência nem função pouco importante a do pai, não deixava, ainda assim, de secundarizar o seu papel no desabrochar das extraordinárias competências do bebé…
Mas, num mundo que pula e avança, há muito que vários modelos da Psicologia e da Psicanálise Contemporâneas (com conceitos como o de “tríade originária” de Chbani e Perez-Sanchez, por exemplo) me parecem sugerir que modelos integrados de família (e de sociedade) são mais amigos da saúde e do crescimento.

  Num mundo que pula e avança, felizmente as mulheres conquistaram as universidades e o mundo do trabalho e exigem (exigimos todos!!!) a justíssima igualdade de direitos. Num mundo que pula e avança, felizmente, os homens exigem o direito de cuidar, de se comoverem e de serem sensíveis, próximos e afetuosos (lembrando, aos mais distraídos, que o seu coração também bate do lado esquerdo, ou que a condição masculina não é sinónimo de menos competências parentais). Neste contexto (como em muitos outros), menos clivagem significará mais saúde. Nesta lógica, tal como o colo, o mimo e a abertura à diferença e à realidade deve ser a multiplicar por cada um dos pais, também a Lei Familiar deverá – parece-me - resultar de um consenso mínimo entre eles, tendo, evidentemente, os dois a obrigação de a fazer aplicar.

  A ser assim, quanto mais acarinharmos e integrarmos a diferença, com a consciência de que todos temos um coração a bater do lado esquerdo, mais inclusiva, integradora e amiga da saúde e do crescimento será a família (na sua composição "tradicional" ou nas “novas” composições que resultam do crescente  e indispensável (!) respeito pelas escolhas das pessoas).

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

As emoções são perigosas?

   Vamos, em algumas circunstâncias, olhando para as emoções como se, de repente, sem mais nem para quê, se pudessem transformar num qualquer material perigoso, que nos tolda o bom senso e nos domina a razão. Talvez por isso, vamos usando máximas como: “pensar com a razão e não com o coração”, presumindo, como Déscartes, que as pessoas se podem partir ao meio: razão (e cabeça) para um lado, emoção (e corpo) para outro. Como se, de repente, o pensamento racional e as emoções não fossem processadas no mesmo cérebro e no mesmo corpo, em circuitos e estruturas intimamente ligadas entre si.
   Se, numa ou noutra circunstância particular, todos vamos procurando camuflar o que sentimos, varrendo para debaixo do tapete emoções como o medo, a raiva ou a tristeza, quando estes movimentos calcificam, tornando regra a contenção emocional, tudo parece passar-se como se procurássemos, invariavelmente, contrariar a natureza humana (e a biologia nervosa!) … não sentindo! Tenderemos, nestas circunstâncias, a ficar mais alexitimicos (menos atentos e capazes de ler e interpretar a emoção no outro e em nós próprios), menos flexíveis, mais impulsivos (a prazo) e menos sintonizados com a saúde… e com a relação.
  
   A ser assim, talvez a questão nunca possa ser: como conseguir não sentir (a raiva, o medo ou a tristeza). Mas antes (como Bion há muito chamou a atenção) como é que podemos construir os espaços relacionais que nos ajudem a pensar as emoções (vestindo-as de palavras e enredos simbólicos que as possam ligar e interpretar), a geri-las e a comunica-las de forma clara.
   A ser assim, as únicas emoções perigosas (seja por via da inibição, seja por via da impulsividade e do agir destrutivo) talvez sejam aquelas que nunca podem ver a luz do dia no espaço criativo de uma relação que as acolha e lhes dê um sentido. A ser assim, muito mais do que matéria potencialmente perigosa, as emoções serão um extraordinário manancial de sabedoria à espera de ser pensado… para aproximar as pessoas! 

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Os movimentos independentistas fazem bem à saúde das relações?

  A Maria foi crescendo com a ideia, mais ou menos difusa, de que gostar muito de alguém – e pior, poder dizê-lo olhos nos olhos – é expor-se a uma vulnerabilidade a que uma mulher (ou um homem) do séc. XXI não se pode dar ao luxo. Foi sendo assim com os amigos, com os pais e com os amores. Não se lembra de, alguma vez, na adolescência, ter sido muito expressiva com a melhor amiga na hora de lhe dizer que aquela amizade era importante para ela ou de, numa formulação simples e clara, ter manifestado gratidão pelos inúmeros movimentos bondosos da amiga… como se os implícitos não precisassem da palavra e do ato para verem a luz do dia.
  Nas poucas vezes em que terá sido capaz de, numa formulação clara, dizer aos pais ou aos irmãos o quão fundamentais são na sua vida, sentiu-se tão exposta, tão ridícula, tão frágil que, nos meses seguintes, (quase) nada a fazia largar a máscara de durona.  
   Nos amores, habituou-se a fazer-se de difícil (quantas vezes… para lá do razoável!). Quantas vezes foi dizendo que não, na esperança secreta de que aquele homem tivesse superpoderes na arte de interpretar mensagens encriptadas ao ponto de perceber que aquele não queria afinal dizer: sim, a todo o vapor!
   Muito dona de si (no ar, pelo menos), morria de medo de ser dependente. Talvez por isso tivesse adotado o extraordinário verso do Jorge Palma: "a dependência é uma besta que dá cabo do desejo/a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo”. Não tanto para pensar aquilo que ia sentindo (afirmando a sua autonomia), mas mais para racionalizar, não pensando (!), o seu medo da dependência. Como se a liberdade não emanasse da relação com o outro. Como se o medo paralisante de nos confiarmos na relação (a que a Psicanálise, em algumas circunstâncias, foi chamando angústia de separação)… não nos deixasse, a todos (!), mais dependentes… do medo de nos diluirmos ou, por outra, de nos partirmos em mil pedaços se a relação soçobrar. Como se o mundo só pudesse ser visto a preto e branco: ou não se confia (para se proteger) ou perde-se o sentido de si na relação, diluindo-se a identidade numa relação dependente, que adoece muito mais do que dá vida. Como se não nos tornássemos mais livres à medida que podemos confiar… apesar de todos os riscos! Como se a relação (que dá vida!), ao assumir a interdependência, não fosse, antes de mais, um exercício de autonomia e liberdade que nos ajuda a crescer com a diferença do outro significativo.
 
   A ser assim, talvez só a relação (seja ela amorosa, familiar, de amizade ou psicoterapêutica) próxima, transparente e autónoma (com espaço para o conflito e a diferença) possa reparar, devolvendo à vida, as dores (profundas, tantas vezes) abertas pelos desencontros e equívocos relacionais. Afinal de contas, muito mais do que um extra que podemos desligar com a facilidade com que se coloca no off uma app do smartphone… a relação não andará longe de ser uma feliz inevitabilidade humana! Talvez por isso, tal como a Maria, ainda que por razões diferentes, acho extraordinário o verso do Jorge Palma: a dependência é uma besta que dá cabo do desejo/a liberdade é uma maluca que sabe quanto vale um beijo”.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal

domingo, 28 de janeiro de 2018

Insónias e canções de embalar!

   Às 7h da manhã já se sentou em frente da máquina, que manobra com mestria. Será assim até às 16h, numa azáfama que o conforta. Ao toque de saída do turno, esperam-no os biscates com que, há muito, compõe as poupanças para acautelar o futuro. Termina o dia quase sempre depois das 21h00, numa correria para chegar a casa a tempo de ainda aconchegar o cobertor aos filhos. A mulher queria-o em casa mais cedo. As contas são apertadas, e sem os biscates talvez não houvesse lugar para poupanças, mas não há dinheiro que pague poder-se jantar em família, argumenta. O Luís sabe disso, mas acaba sempre por adiar o descanso, como se a ele não tivesse direito. Quando finalmente cai na cama, exausto, não consegue descansar. Tudo parece passar-se como se as angústias que, à custa de uma hiperatividade funcional (como lhe chamou Sami Ali), vai varrendo para debaixo do tapete, durante o dia, surgissem em catadupa quando apaga a luz. Quanto mais faz por dormir, mais o pensamento vai saltando de inquietação em inquietação. Tudo lhe parece vir à cabeça: do planeamento meticuloso do dia de trabalho ou da gestão financeira das suas poupanças, ao toque de culpa por, quase nunca, estar em casa a horas de brincar com os miúdos ou de lhes supervisionar os TPC. Quanto mais faz por dormir, mais se sente dominado pela angústia, dando por si a tomar como certo que, tarde ou cedo, os filhos o culparão pelas ausências; que, tarde ou cedo, a mulher se fartará de si e da sua dificuldade em parar… para desfrutar da vida. Quando já não aguenta mais o galopar da espiral ansiosa, levanta-se, vai direito à caixa dos medicamentos e, sucumbe ao comprimido que, contra a recomendação da sua médica assistente, acaba por tomar noite após noite.

   À semelhança do que parece acontecer em tantos outros contextos, também à boleia dos distúrbios de sono parece haver um consumo excessivo de medicação psicotrópica. Não que, evidentemente, a terapêutica medicamentosa não possa, mediante avaliação médica, ser útil em muitos casos. Mas talvez seja importante assumirmos que, em tantas e tantas circunstâncias, os Luíses e as Luísas precisam de espaços relacionais (psicoterapêuticos, porventura) que lhes permitam pensar e metabolizar a angústia que, dia após dia, lhes vai sugando o prazer e o descanso. Afinal de contas, talvez não deixemos nunca (!!!) de precisar de quem (ao nosso lado e dentro de nós) nos acolha a angústia sem soçobrar, nos ajude a configurá-la em palavras, a integrá-la em histórias que lhe deem um sentido na nossa história. A ser assim, talvez só nos vamos reconciliando verdadeiramente com o sono, à medida que formos sendo capazes de puxar para nós quem (ao nosso lado e dentro de nós!) nos aconchegue o sono e nos acarinhe o sonho… com histórias e cantigas de embalar!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 21 de janeiro de 2018

E as birras 4.0?

   Fecha a porta do escritório com a sensação de quem fechou um dia intenso de trabalho, para abrir umas quantas mais correrias. É preciso apanhar o Martim no ATL, ir comprar tecido para o vestido que a Madalena usará na peça da escola, deixar o Martim no treino, atravessar a cidade para ir buscar a Madalena ao ballet e, na volta, passar no supermercado. A Maria, quase sempre, se vai organizando, com eficácia e prazer, nas correrias familiares do dia-a-dia. Mas o internamento de urgência da sogra e a indisponibilidade do Pedro para a rotina familiar que isso desencadeou, para além, claro, da preocupação de todos, está a tornar a semana particularmente difícil.
 Aquilo que a Maria imaginou que seria uma visita supersónica ao supermercado para comprar leite e fruta para os miúdos, rapidamente se transformou no palco do melhor que o Martim sabe fazer em matéria de birras! Bem em frente ao videojogo (que, um par de dias antes, tinha concordado preterir em favor da bicicleta nova), começou por puxar do seu melhor olhar sedutor para tentar convencer a mãe a levar o jogo. Gorada a primeira ronda negocial foi endurecendo a luta: choramingando primeiro e, rebolando-se no chão, ao mesmo tempo que esperneava e gritava a plenos pulmões, depois.  

  As crianças saudáveis também fazem birras! Especialmente quando, por um ou outro motivo, estão mais inseguras ou, circunstancialmente, sentem os pais mais fragilizados ou indisponíveis. E – tenho para mim – não há mal nenhum nisso…desde que, naturalmente, os pais não deixem de exercer a autoridade que a educação também implica. De cada vez que os Martins ou as Franciscas conseguem, invariavelmente, fazer das birras uma estratégia negocial de sucesso garantido, até podem, num primeiro momento, sentir-se vaidosos – por conseguirem o chocolate ou o videojogo pelo qual lutaram – mas, tenho para mim, não deixarão de se sentir um bocadinho inseguros e inquietos. Afinal de contas, não é difícil imaginar que poderão, porventura, sentir, também o lado B da birra, numa lógica de: “se os meus pais, que são os meus pais, não têm a firmeza e a segurança necessária para me pararem nos meus caprichos e exageros, quem é que vai ter a força necessária para me segurar quando me sentir a cair?” Tudo parece passar-se como se, ao apelo ruidoso pelo brinquedo, pelo chocolate ou pelo videojogo, correspondesse um outro, mais profundo, por constância, firmeza, afeto e segurança. A ser assim, o sentimento de que os pais (independentemente da exuberância das birras) farão cumprir um conjunto de regras base, claras e coerentes, não deixará de contribuir, de forma muito significativa, para que se cresça melhor.
   A ser assim, talvez cresçamos melhor sempre que temos quem nos ajude a construir a tolerância à frustração. A ser assim, talvez cresçamos melhor sempre que temos quem nos assegure – muito mais por atos do que por palavras – ter a segurança necessária para, com afeto e firmeza, nos pôr no sítio sempre que exageramos nos caprichos.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.