Isso é tudo muito bonito, mas
como é que um psicólogo pode ajudar? Pergunta a Marta, num tom provocatório,
mas apelativo, de quem puxa para a relação.
Talvez o imaginário coletivo esteja,
ainda, em alguns aspetos, demasiado dominado por uma ideia positivista de
ciência. Talvez a ideia de saúde mental esteja, no imaginário coletivo, ainda muito
associada a um modelo biomédico de causalidade linear, em que um sofrimento
mental ou uma característica de personalidade só podem ser determinados, de
forma direta e inequívoca, por umas quantas reações bioquímicas que acontecem no cérebro, de
forma disfuncional. Talvez haja, ainda, demasiado a ideia de que estes
desequilíbrios nos circuitos cerebrais só poderão dever-se a um fardo genético,
impossível de contornar. A ser assim, a única via para corrigir “desequilíbrios
cerebrais” e suster o sofrimento seria a medicação.
Mas felizmente, somos um bocadinho
mais complexos do que isso! Felizmente, poucas serão as características humanas
(as referentes ao funcionamento mental, muito em especial) que se explicam por
uma genética Mendeliana, de transmissão direta. Vimos, felizmente, equipados de
base com um código genético que, naturalmente, baliza, em muitos aspetos, o
nosso desenvolvimento. Mas estará longe de o determinar por si só. Como me
parece decorrer de alguns estudos, muito mais do que um veículo determinista de
transmissão direta de características, a genética imbricar-se-á numa teia
complexa de relações com o meio, as oportunidades educativas e o calor afetivo
e relacional, para condicionar o desenvolvimento. Há mesmo estudos que sugerem que a experiência pode alterar a expressão e, porventura, até alguns aspetos da própria organização do ADN de algumas células.
Parece, de algum modo, funcionar do
mesmo modo, se tomarmos como lente as Neurociências. Naturalmente, a atividade
cerebral determina, em larga medida, a nossa experiência. Mas, contrariando a
causalidade linear do modelo biomédico, parece haver um mínimo consenso comum em vários estudos das Neurociências: a experiência e as relações humanas
influenciam, elas próprias, aspetos muito importantes do funcionamento cerebral
!!! É o que parece, por exemplo, decorrer de um estudo recente, em que pacientes deprimidos pareciam, ao fim de um punhado de meses de psicoterapia dinâmica, não só melhorar significativamente os sintomas depressivos, como normalizar o funcionamento do sistema límbico (muito associado ao processamento das emoções).
Quero, com isto, dizer que a herança
genética ou a biologia cerebral não são muito relevantes no desenrolar da vida
mental, ou que a medicação não pode ser muito útil para suster o sofrimento
mental, nas mais variadas circunstâncias? De modo nenhum! Acho é que a
complexidade humana não se coaduna com uma lógica de causalidade linear. Há mais
de 100 anos aprendíamos com Freud que a nossa vida é mais condicionada por
emoções que fazemos por não pensar do que o que aquilo que possa parecer. Com
Spitz e Bowlby, por exemplo, aprendíamos, há várias décadas, que as falhas
relacionais graves têm um efeito devastador no desenvolvimento humano. Com os
cognitivistas, fomos aprendendo, entre outras coisas, que as experiências de
vida podem moldar o modo como aprendemos a pensar em diversas situações. Os
modelos sistémicos trouxeram-nos, entre tantas outras coisas, a ideia de
comunicação, complexidade e causalidade circular, mostrando-nos que tudo está
ligado com tudo. Com Bion e tantos outros psicanalistas, aprendemos o lugar
central da relação na construção da saúde mental, mas também do sofrimento,
ideias permanentemente recriadas, aprofundadas e enriquecidas por tantos outros,
nos nossos dias (demonstrando, por exemplo, a importância da relação na vida
intra-uterina).
A ser assim, se tentarmos intersetar
várias portas de entrada, talvez possamos dizer que, em muitas circunstâncias,
a angústia, a ansiedade, a insegurança, o medo ou os sintomas depressivos, por exemplo,
decorrerão tanto de equívocos e desencontros continuados na relação com o outro
e com a verdade do que se sente (ou de experiências mais ou menos traumáticas) como
de desequilíbrios bioquímicos (que, muitas das vezes, mais do que causa, serão,
porventura, o correlato biológico do sofrimento). É aqui que, a meu ver, entra
a utilidade de diversos modelos e técnicas de acompanhamento psicológico. Não
só como um espaço em que as pessoas podem genuinamente ser ouvidas e escutadas.
Mas (talvez o aspeto mais diferenciador), enquanto espaço criativo em que a
pessoa pode viver “na pele” a experiência de haver alguém ao pé de quem é
possível sentir, sem claudicar, as angústias de que vai procurando fugir (por
as sentir insuportáveis ou demasiado dolorosas, por exemplo), ao mesmo tempo
que se compreendem, legendam e ligam com os aspetos essenciais da sua vida. Esta nova relação, ao desconstruir alguns aspetos dos
padrões com que há muito a pessoa se vai colocando nas relações (e que, em boa
medida, para o bem e para o mal, a trouxeram até ao ponto onde se encontra),
funcionará, assim, como uma espécie de tubo de ensaio para uma relação mais
clara e genuína com aquilo que sente (procurando pensar as emoções em vez de,
continuadamente, as tentar silenciar), o que não deixará de se traduzir nas
relações da “vida real” (tornando-as mais confiantes e confiáveis, mais
criativas, assertivas e próximas) com as pessoas, o trabalho, as desilusões, a
esperança ou o desejo…
(Este
texto resulta, em boa media, do revisitar, com uma nova roupagem, de um texto que
escrevi há um punhado de meses: AQUI)