quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Isso é tudo muito bonito, mas como é que um psicólogo pode ajudar?

   Isso é tudo muito bonito, mas como é que um psicólogo pode ajudar? Pergunta a Marta, num tom provocatório, mas apelativo, de quem puxa para a relação.

 Talvez o imaginário coletivo esteja, ainda, em alguns aspetos, demasiado dominado por uma ideia positivista de ciência. Talvez a ideia de saúde mental esteja, no imaginário coletivo, ainda muito associada a um modelo biomédico de causalidade linear, em que um sofrimento mental ou uma característica de personalidade só podem ser determinados, de forma direta e inequívoca, por umas quantas reações bioquímicas que acontecem no cérebro, de forma disfuncional. Talvez haja, ainda, demasiado a ideia de que estes desequilíbrios nos circuitos cerebrais só poderão dever-se a um fardo genético, impossível de contornar. A ser assim, a única via para corrigir “desequilíbrios cerebrais” e suster o sofrimento seria a medicação.
  Mas felizmente, somos um bocadinho mais complexos do que isso! Felizmente, poucas serão as características humanas (as referentes ao funcionamento mental, muito em especial) que se explicam por uma genética Mendeliana, de transmissão direta. Vimos, felizmente, equipados de base com um código genético que, naturalmente, baliza, em muitos aspetos, o nosso desenvolvimento. Mas estará longe de o determinar por si só. Como me parece decorrer de alguns estudos, muito mais do que um veículo determinista de transmissão direta de características, a genética imbricar-se-á numa teia complexa de relações com o meio, as oportunidades educativas e o calor afetivo e relacional, para condicionar o desenvolvimento. Há mesmo estudos que sugerem que a experiência pode alterar a expressão e, porventura, até alguns aspetos da própria organização do ADN de algumas células.
  Parece, de algum modo, funcionar do mesmo modo, se tomarmos como lente as Neurociências. Naturalmente, a atividade cerebral determina, em larga medida, a nossa experiência. Mas, contrariando a causalidade linear do modelo biomédico, parece haver um mínimo consenso comum em vários estudos das Neurociências: a experiência e as relações humanas influenciam, elas próprias, aspetos muito importantes do funcionamento cerebral !!! É o que parece, por exemplo, decorrer de um estudo recente, em que pacientes deprimidos pareciam, ao fim de um punhado de meses de psicoterapia dinâmica, não só melhorar significativamente os sintomas depressivos, como normalizar o funcionamento do sistema límbico (muito associado ao processamento das emoções).

  Quero, com isto, dizer que a herança genética ou a biologia cerebral não são muito relevantes no desenrolar da vida mental, ou que a medicação não pode ser muito útil para suster o sofrimento mental, nas mais variadas circunstâncias? De modo nenhum! Acho é que a complexidade humana não se coaduna com uma lógica de causalidade linear. Há mais de 100 anos aprendíamos com Freud que a nossa vida é mais condicionada por emoções que fazemos por não pensar do que o que aquilo que possa parecer. Com Spitz e Bowlby, por exemplo, aprendíamos, há várias décadas, que as falhas relacionais graves têm um efeito devastador no desenvolvimento humano. Com os cognitivistas, fomos aprendendo, entre outras coisas, que as experiências de vida podem moldar o modo como aprendemos a pensar em diversas situações. Os modelos sistémicos trouxeram-nos, entre tantas outras coisas, a ideia de comunicação, complexidade e causalidade circular, mostrando-nos que tudo está ligado com tudo. Com Bion e tantos outros psicanalistas, aprendemos o lugar central da relação na construção da saúde mental, mas também do sofrimento, ideias permanentemente recriadas, aprofundadas e enriquecidas por tantos outros, nos nossos dias (demonstrando, por exemplo, a importância da relação na vida intra-uterina).

  A ser assim, se tentarmos intersetar várias portas de entrada, talvez possamos dizer que, em muitas circunstâncias, a angústia, a ansiedade, a insegurança, o medo ou os sintomas depressivos, por exemplo, decorrerão tanto de equívocos e desencontros continuados na relação com o outro e com a verdade do que se sente (ou de experiências mais ou menos traumáticas) como de desequilíbrios bioquímicos (que, muitas das vezes, mais do que causa, serão, porventura, o correlato biológico do sofrimento). É aqui que, a meu ver, entra a utilidade de diversos modelos e técnicas de acompanhamento psicológico. Não só como um espaço em que as pessoas podem genuinamente ser ouvidas e escutadas. Mas (talvez o aspeto mais diferenciador), enquanto espaço criativo em que a pessoa pode viver “na pele” a experiência de haver alguém ao pé de quem é possível sentir, sem claudicar, as angústias de que vai procurando fugir (por as sentir insuportáveis ou demasiado dolorosas, por exemplo), ao mesmo tempo que se compreendem, legendam e ligam com os aspetos essenciais da sua vida. Esta nova relação, ao desconstruir alguns aspetos dos padrões com que há muito a pessoa se vai colocando nas relações (e que, em boa medida, para o bem e para o mal, a trouxeram até ao ponto onde se encontra), funcionará, assim, como uma espécie de tubo de ensaio para uma relação mais clara e genuína com aquilo que sente (procurando pensar as emoções em vez de, continuadamente, as tentar silenciar), o que não deixará de se traduzir nas relações da “vida real” (tornando-as mais confiantes e confiáveis, mais criativas, assertivas e próximas) com as pessoas, o trabalho, as desilusões, a esperança ou o desejo…

(Este texto resulta, em boa media, do revisitar, com uma nova roupagem, de um texto que escrevi há um punhado de meses: AQUI)   


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

(des)Amor e outros perigos!

Tinha 16 anos e muito menos desenvoltura do que hoje. Bem no canto mal-afamado das traseiras do pavilhão B, muito a medo, a Maria beijou, pela primeira vez, o Ricardo. Ele estava longe de ser um poço de ternura ou de ter um décimo do charme dos galãs dos filmes que consumia vorazmente. Mas tinha um estilo de fora da lei que a puxava. Era uma espécie de atração fatal. “Para uma menina demasiado certinha como eu, mas com a cabeça cheia de fantasmas, acho que o Ricardo era a oportunidade de desalinhar, da menina exemplar mandar à fava a pressão e sentir a adrenalina do perigo nas veias. Era uma maneira de pecar, de passar ao ato uma pequeníssima parte dos pecados que me passavam pela cabeça. Mas talvez fosse, também, uma maneira de me penitenciar, de me punir por isso. Talvez por isso lhe tenha aturado tanto, durante tanto tempo. Ele tratava-me mal. Humilhava-me…”. Quando terminou com ele, muitas zangas e recomeços depois, já no 4º ano da Faculdade, jurara a si mesma: “nunca mais me meto com um tipo assim”. O Bernardo veio mais de dois anos depois, já a Maria tinha iniciado carreira na Consultora. Era um tipo muito mais polido e atencioso, no início. Tem mais mundo e parecem ter, de facto, um ou outro ponto em comum. Mas, o príncipe foi virando sapo (talvez seja sempre um bocadinho assim quando o ressentimento vai tomando o lugar dos beijos e abraços apaixonados): “Não me maltrata ou humilha tão abertamente como o Ricardo, mas a cascata de elogios e romantismos dos primeiros tempos, depressa se tornou num rol de críticas: críticas à minha postura ao pé dos pais, dos amigos, do empregado de café lá do bairro. Críticas à minha comida, à roupa, ao cabelo novo, à organização da casa. Aos meus 5 Kgs a mais. A tudo! E sabe, o que é mais irónico é que eu acabo sempre a insultá-lo por dentro… e a pedir-lhe desculpa por fora. A seguir fico tão atordoada que me sinto híper-culpada … Não sei se por medo de o perder, por culpa ou lá pelo raio que é… acabo a mimá-lo mais e mais. Para o compensar dos insultos que não lhe disse. Ele aproveita para me fazer pedir desculpa mais 10 vezes pela minha postura com ele, com os pais dele, os amigos dele, o homem do café, e o raio que o parta! Tudo, tudo, se repete! De uma forma mais refinada e nem um bocadinho “fora-da-lei”, mas continuo a sentir-me a menina humilhada do canto mal-afamado das traseiras do pavilhão B. Sempre entre a fúria que escondo, a culpa de ficar furiosa, a solidão de me sentir um lixo e o amor. Eu sei lá se é amor! Se fosse amor eu não chorava todos os dias, dia após dia! Eu sei lá o que é o amor! Eu já não sei nada! Porque é que a minha vida é tão complicada?!”
   Reencontrara, no Verão passado, o Nuno. (de quem a Maria se tinha afastado, assustada, com os seus movimentos encantadores de fazer babar qualquer mulher). “Continua bonitão e cuidadoso. Um verdadeiro gentleman. Mas os olhos dele brilham mais. Está mais confiante. Mais gingão. Mais homem. Desde esse dia que me vem à cabeça de quando em vez. Bem, na verdade, mais do que de quando em vez. Na verdade, na verdade, muito mais do que de quando em vez. Até já sonhei com ele. Várias vezes!”

   Talvez o que a Maria esteja a querer dizer é que, no fundo, talvez saiba o que é o amor e que, por isso, pediu ajuda para se (re)encontrar, dentro de si, com a transparência e a coragem que precisa para perseguir uma vida cheia. Ora mais simples, ora mais dura, mas cheia!
  Talvez o que a Maria esteja a querer dizer, ainda, é que está muito magoada com os Ricardos e os Bernardos da sua vida, mas que também está muito amargurada consigo própria. Por repetir, de formas diferentes, a batota de fingir acreditar que o amor é, na melhor das hipóteses, uma bebedeira de adrenalina (a que se segue, invariavelmente, a ressaca) ou, quando muito, o prémio de consolação (de uma castração constante de quase tudo o que é) ser preferível ao vazio de estar sozinha. Talvez o Nuno, qual estrela guia, tenha (re)aparecido (de dentro de si) naquela noite de Verão (e nos sonhos de Outono que se lhe seguiram) para lhe recordar o que ela há muito já sabe: que, no amor, a adrenalina não vem do perigo, e muito menos da culpa, da humilhação ou da dor; que o amor obriga a pormo-nos em causa e a repararmos erros, mas nunca a carregarmos às costas o peso do mundo e da violência velada de se tentar ser alguém que se não é. Talvez o Nuno, qual estrela guia, tenha (re)aparecido (de dentro de si) naquela noite de Verão (e nos sonhos de Outono que se lhe seguiram) para lhe recordar que sempre que duas pessoas fazem da relação o lugar seguro onde os dois podem, a uma só voz, serem iguais a si próprios - compatibilizando, numa só relação, colo e desejo, cuidado e exigência, adrenalina e quietude - talvez se esteja muito mais próximo de viver um grande amor! 
   
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.