terça-feira, 27 de outubro de 2020

Para que serve a inveja?

  Estava entusiasmada. Mas nervosa. Afinal ia defender, perante uma plateia que admirava muito, o trabalho em que mergulhara com alma nos últimos anos. Começou a medo, com a voz trémula e o coração acelerado. Mas, com o passar dos minutos, foi-se soltando e explanando o trabalho com consistência, entusiasmo e qualidade, muita qualidade. Correu-lhe manifestamente bem e, no final, não cabia em si de contente. Até que a colega, com quem partilhara parte do projeto, a decidiu congratular com um sorridente: disseste tantos portantos. Atordoada com o golpe num primeiro momento, depressa pensou: és tão invejosa! Se pensas que me vais roubar o momento estás muito enganada! Mas a verdade é que o comentário da colega ficou a ecoar-lhe no pensamento. O suficiente para lhe esmorecer o orgulho, nota a Maria, ao mesmo tempo que evoca as vezes em que das suas conquistas resultaram reparos e mas a mais e Parabéns! abertos e rasgados a menos. Ou, pior, todas as vezes em que silenciou os seus sucessos (e o prazer deles decorrente) por intuir que não teria quem consigo os celebrasse, de peito aberto e abraço grande. Ou, ainda, todas as vezes em que os viveu numa espécie de culpa e vergonha, como se, com eles, pudesse atropelar algumas das pessoas de quem mais gosta. Em jeito de síntese, a Maria recupera o refrão de uma canção dos Deolinda para dizer que, às vezes, uma ou outra pessoa importante para si lhe fazia sentir, de forma mais velada ou mais aberta: o teu bem faz-me tão mal! Recorda, mais tarde, uma colega com quem trabalhara há muitos anos e com quem praticamente não falava desde então. Até ao dia em que, do nada, recebeu uma mensagem sua, a dar-lhe os Parabéns pela altíssima qualidade dos seus relatórios técnicos. Pontua com um enfático: Foi de uma bondade, não lhe sei explicar! Acho que a Marta não tem a noção do quão foi importante para mim aquela manifestação espontânea e desinteressada! A Marta é, de facto, uma pessoa muito especial! No início das nossas carreiras, quando trabalhámos juntas, concorremos as duas a um prémio para jovens profissionais. Eu tive a sorte de ganhar! E ela ficou em segundo. Mal saíram os resultados ela ligou-me e disse, palavra por palavra: sacana, ganhaste tu! Ai que inveja! Parabéns! Agora, por castigo e celebração, vá tudo junto, tens de pagar o jantar! Eu ganhei-lhe e ela foi capaz de celebrar comigo! Acho que é isso que eu ando à procura: de quem celebre comigo!

   Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez o que magoe e afaste não seja bem a natureza do que se sente (quem nunca sentiu inveja que atire a primeira pedra!) , mas muito mais a forma como se procura esconder (do outro e de si!), branqueando-o ou expressando-o, em bruto, de forma retorcida e impulsiva. A ser assim, talvez as únicas emoções “negativas” (que afastam e amachucam) sejam mesmo as que ficam por pensar e comunicar e que, por isso, encontram no agir impulsivo (violento e destrutivo, muitas vezes) a única forma de expressão. A ser assim, talvez o grande desafio seja mesmo o de pensarmos as emoções, de as vestirmos de palavras, histórias e relação (naquilo a que Bion chamou função α), para as podermos comunicar com toda a clareza e afeto de que formos capazes. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.


domingo, 11 de outubro de 2020

Um admirável mundo novo... em tempos de pandemia!

  Desde que, há uns anos, foi ver o cortejo académico do primo que sonhava com a vida de universitário, com as festas e as noitadas, com a autonomia e o mar de pessoas e oportunidades que a Faculdade lhe iria trazer. Depois de um ano de ansiedade miudinha, de exames e de estudo empenhado, o João entrou, finalmente, no curso e na Universidade que sonhara. Mas a pandemia trocara-lhe as voltas. Fora duro o 12º ano. Como é que pode não ser difícil gerir o medo de uma pandemia, as aulas online, primeiro, e o medo do regresso, depois? Como é que pode não ser difícil gerir o conflito entre o impulso (saudável!) para estar com o grupo de amigos, e o medo dos riscos e a culpabilidade que isso pode representar? 

   Nos últimos dias antes da partida para a cidade que escolhera para estudar, eram mil e uma as apreensões que lhe esmagavam o entusiasmo: como é que ia conseguir fazer amigos nestes tempos de distanciamento físico? Como é que se iria integrar se não existem festas, nem copos, nem noitadas? Como é que iria tropeçar no amor (como tantas vezes sonhara) se a máscara esconde as covinhas que faz quando sorri genuinamente? E se tivesse de ficar de quarentena, sozinho, num quarto que ainda está longe de sentir como seu? Pior, e se ficasse infetado e infetasse todos à volta? Como iriam ser as aulas? Como é que os mil e um medos lhe iriam permitir concentrar-se em aprender tudo o que tinha que saber (modelos de aulas, espaços físicos e virtuais, horários, etc.) para se organizar?
   Comoviam-no, por estes dias, os conselhos e gestos protetores dos pais. Mas, tão depressa, corria para o seu colo como, a seguir, não lhe saía muito mais do que um: “que melgas, eu já sou crescido!”. No dia em que, finalmente, os pais o levaram ao quarto que tinha alugado a dois passos da Universidade, não parece ter sido tão diferente assim (com uma intensidade ampliada pela proximidade do futuro). Ao almoço, manteve, por fora, a postura de “homem crescido sem medos”. Com mais custo, mas aguentou-se, depois, enquanto a mãe lhe fazia as mil e uma recomendações acerca dos cuidados com a COVID-19, da roupa, da comida e das saídas à noite, e o pai lhe falava, entre o entusiasmado e o assustado, da necessidade de conciliar responsabilidade académica e sanitária, com integração social. Talvez o João quisesse dizer: “eu sei, eu sei que há muito que sonhava com isto. Eu sei, eu sei, que isto vai ser bom para mim, mas estou com tanto medo! Tenho tanto medo de não estar à altura das matérias, de me acharem ridículo na Faculdade, de não ser tão fácil fazer amigos como sempre imaginei que iria ser... E depois há a COVID-19. Como é que se lida com a COVID-19 longe de vocês?”. Talvez o João quisesse dizer: “Vai correr bem, não vai?”, ao mesmo tempo que corria para os braços dos pais e lhes dizia: “vão cá estar sempre para me segurar quando não correr bem, não vão? Mesmo quando eu, inflamado e um bocadinho arrogante, disser que sou um homem crescido, e que não tenho medo de nada?”… Mas só lhe saiu um: “Mãe!!! Eu já tenho 18 anos! Dah, isto foi o que eu sempre quis!”. Depois de uma despedida tão calorosa quanto esta postura sobranceiro-assustada permitiu, assim que os pais fecharam a porta da sua nova casa, o João deitou-se sobre a sua nova cama (como lhe parecia estranha a textura do edredão, o cheiro e as esquinas da nova casa) e chorou. Chorou desalmadamente. De medo (do que aí vinha). De raiva (por não ter procurado a segurança que alavanca o entusiasmo no colo dos pais). Até que o telefone tocou. Enxugou as lágrimas, mas não conseguiu disfarçar a voz triste e arrastada. Eram os pais, em uníssono, a dizer: “Hei, João, a primeira noite é um bocadinho assustadora. A 2ª, a 3ª e a 4ª também ainda podem ser um bocadinho. Mas vai, evidentemente, correr bem!”. Desta vez o João chorou com os pais. Nem a distância que o telefone impõe o impediu de sentir o colo dos pais, bem ali, para si, forte e seguro, para o que desse e viesse. E o medo, pouco a pouco, foi-se tornando menos avassalador, abrindo-se, agora, espaço para que pudesse conviver com o entusiasmo de quem estava prestes a agarrar um admirável mundo novo.  

   Nunca percebi muito bem o slogan “não há ano como o de caloiro”, que se vai perpetuando em muitos meios académicos. A entrada no Ensino Superior é, de facto, uma fantástica janela para o mundo; um mar de oportunidade de abertura ao conhecimento e à diferença (de pessoas, percursos de vida, ideias, etc.). Mas, um slogan como este parece dar a entender que a adaptação a um admirável mundo novo (que implica, as mais das vezes, a saída de casa dos pais) tem de ser fácil e rápida. E quase nunca é! E não se fará à margem de um conflito interno entre o entusiasmo de se deixar encantar com as oportunidades (pessoais, sociais, amorosas, intelectuais, etc.) e o medo do desconhecido. Talvez, por isso, se aproxime mais da publicidade enganosa do que de uma fórmula capaz de legendar o que os jovens sentem, nestas circunstâncias. 
   A ser assim, talvez lhes possamos dizer que dificilmente há adaptações sem alguma turbulência interna (de convivência entre o entusiasmo e o medo); e que os medos tendem a tornar-se muito menos assustadores (deixando de tolher o melhor de nós), sempre que somos capazes de os confiar aos colos que nos ajudam a transformá-los (numa espécie de grito: vou com medo, mas vou!)
   A ser assim, talvez possamos dizer aos seus pais que, se não há autonomia sem vinculação, os filhos continuam a precisar muito deles – quer para os encorajarem a voar, quer para lhes assegurar - por palavras e gestos – que, por maior que possa ser a tempestade, serão sempre (!) o seu porto seguro!

*Título de um romance de Auldous Huxley

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.