segunda-feira, 20 de julho de 2020

Desconfinar o medo

  Ei-la a destruir vida social e económica; a disseminar doença e sofrimento; a expor, como há muito não se via, a insuportável chaga da pobreza, ou a escavacar as fissuras da saúde mental, que estariam antes (um bocadinho) menos expostas. A pandemia de covid-19 é, porventura, o maior e mais global desafio da Humanidade em muitas décadas.

  Perante a incerteza e a magnitude da calamidade, talvez não haja muito como não pairarem nuvens negras de um medo mais ou menos omnipresente: medo de contaminar e ser contaminado (ou, numa formulação mais crua, medo de matar ou morrer), de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis, de perder o emprego e os rendimentos; medo do presente e, sobretudo, medo do futuro.

 Ao mesmo tempo que Freud nos ensinava que os determinantes do comportamento humano vão muito para além da racionalidade, trazia humanidade à forma como olhamos a saúde mental, lembrando-nos que o normal e o patológico são, no essencial, quantidades diferentes das mesmas qualidades humanas. Mais de 100 anos volvidos, é assim que parece funcionar com o medo ou com a raiva, por exemplo. Emoções como o medo e a raiva são saudáveis! Serão uma espécie de primeira linha de defesas (como nos lembra o Professor Eduardo Sá) ou de marcadores somáticos (como lhes chama o neurocientista António Damásio), a indicar-nos o caminho para podermos reagir à adversidade. Neste sentido, será graças ao medo a que, felizmente, vamos sendo capazes de acrescentar sentido comunitário, que cumprimos, com responsabilidade, as recomendações das autoridades de saúde. Será graças à revolta que assumimos o risco ponderado de lutarmos pela normalidade possível, não permitindo que o vírus limite a nossa vida (pessoal, familiar, profissional e comunitária) para lá do estritamente necessário.

 Haverá, todavia, muitas circunstâncias, em que o medo ou a raiva não encontrarão acolhimento relacional (nos planos pessoal, familiar, laboral, social e comunitário) para se expressarem abertamente, e transformarem em palavras, em enredos e em gestos intencionais. Será neste contexto que – tenho para mim - aumentará exponencialmente a probabilidade do medo atrapalhar muito mais do que aquilo que protege; seja pela recusa em assumir qualquer risco, por mais ponderado que seja; seja pelo desafio constante ao perigo, numa espécie de denegação (mais ou menos maníaca) dos riscos (e do próprio medo!). Não será tão diferente assim com a raiva. Na impossibilidade de, na relação (pessoal, familiar, laboral, social e comunitária), se transformar numa revolta proactiva, subsidiária da esperança e da coragem na reação, a raiva (assim como o medo) parece ficar à solta, em bruto, à mercê dos mais variados discursos populistas que a captem e a catapultem para a projeção em diferentes grupos sociais e/ou teorias da conspiração. 

  

  Se não há como, num passe de mágica, apagarmos a devastação que a pandemia arrasta, a verdade é que podemos reagir-lhe! Assim saibamos acarinhar o papel protetor do medo e da raiva, vestindo-os de relação e sentido comunitário.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

O que não nos liga não nos torna mais fortes!

A Maria foi crescendo muito metida consigo, com a ideia difusa de possuir um qualquer irreparável defeito de fabrico. Só isso explicaria que as notas ficassem sempre aquém das da irmã e das primas. Só isso explicaria que, em toda a infância e adolescência, nunca se tenha sentido verdadeiramente acolhida em nenhum grupo. Só isso explicaria que se fosse sentindo vezes demais uma espécie de corpo estranho, que ninguém conseguia decifrar.
 Conta-me, num choro sentido, a história de uma personagem de banda desenhada que a acompanhou durante toda a adolescência: a Kate era uma adolescente introvertida, sozinha e muito, muito triste. Em pequena teria sido assolada por uma espécie de maldição, em função da qual não podia olhar o mundo lá fora para lá do pôr do sol, sob pena de ter uma visão catastrófica, de cegar logo depois e de morrer, por fim. As cortinas de sua casa eram, por isso, fechadas, uma a uma, mal começava a cair a tarde.  
  
   Talvez o que a Maria quisesse dizer fosse que, ao contrário do que a maldição da Kate dava a entender, o que mata (devagarinho) serão os movimentos que nos levam a fecharmo-nos sobre nós próprios, cerrando as cortinas da curiosidade e da relação. Já o conhecimento (do mundo lá fora e, sobretudo, do mundo que pulula dentro de nós) é vida! Até pode assustar ou doer muito, num ou noutro momento, mas é vida! E relação! Ou não precisássemos todos de quem (dentro de nós e no mundo lá fora) nos acolha a angústia do desconhecido e o medo de conhecer (também o que já se pressente), para sermos mais curiosos, mais vivos, mais afoitos... e mais inteligentes!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.