segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O melhor de nós não chega?

 O Marco é um tipo de coração grande e abraço sentido. Para lá de muitas outras qualidades, talvez essas tenham sido determinantes para construir um amor vivo (mas excessivamente medroso, a espaços) com a Maria. Inteligente e sensato é um profissional muito diferenciado. Apesar do gosto pelo trabalho e das competências que indubitavelmente tem, está muito longe de gerir a vida profissional com o prazer e a serenidade que gostaria (e que, de resto, as suas qualidades justificariam). Tudo se passa como se se sentisse, permanentemente, num conflito entre o desejo de arriscar, intervir, inovar… e o medo de que tudo possa falhar rotundamente.
 De cada vez que ousa sobrepor o desejo ao medo, as suas competências acabam por sobressair, valendo-lhe ganhos profissionais muitos significativos. Mas não, sem antes, sentir o coração apertado, muito para lá do razoável. Não, sem antes, dar mil voltas à cabeça, para se certificar que cumpriu escrupulosamente tudo o que são normas, diretrizes e regulamentos. Não, sem primeiro, antever os mil e um cenários (que quase nunca se confirmam) em que as chefias o repreenderão abertamente ou, de forma disfarçada, o colocarão no lugar, lembrando-lhe que ainda tem que comer muitas rasas de sal, antes de poder ousar. Como lhe lembra a Maria, entre a firmeza e a ternura, tudo se parece passar como se sentisse na obrigação de estar, permanentemente, ora a pedir licença, ora a pedir desculpa… por ser bom!
    À boleia deste seu lado medroso, lembra vários episódios, mais ou menos longínquos, em que foi sentindo este seu lado criativo, audaz, consequente e corajoso… desvalorizado, apoucado, ridicularizado até. Recua ao campo pelado da sua infância, para falar da sua estreia em jogos oficiais. Não cabia em si de tão vaidoso que estava com as chuteiras que comprara de propósito para aquele dia, à custa das poupanças que conseguira com uma gestão muito apertada da semanada. Ao intervalo ainda estava 0-0 e o Marco, entre as parcas oportunidades e a pressão de fazer tudo bem e depressa, não tinha, ainda, conseguido destacar-se. O treinador tinha acabado de lhe aconselhar mais serenidade na hora de ter a bola no pé, mas tinha-lhe elogiado o espírito de luta. Nada de grave, portanto… até que o pai entra pelo balneário adentro e, sem mais, se abeira dele e o aconselha a dar o lugar a um colega, “que seja menos trapalhão. Já estás muito cansado. É melhor saíres”. Como se isso não bastasse para, num ápice, transformar o seu brilho nos olhos num olhar cabisbaixo e embaciado (de vergonha, desilusão e raiva contida), o pai continuou num tom jocoso: “ai achavas que eram as chuteiras que fazem os jogadores”? Escusado será dizer que, na 2ª parte, as inseguranças do Marco acerca das suas capacidades futebolísticas se multiplicaram por mil!
   Nada que o tenha feito sentir de modo tão diferente assim quando, uns bons anos mais tarde, tentava intervir - com a sua visão, porventura exagerada, mas atenta e interessada - nas tertúlias de política nacional em que algumas vezes se transformavam os jantares de família. Diz-me, comovido: “parece que ainda consigo ver o ar de desdém do meu pai, secundado pelo meu avô ou pela minha mãe. E aquele pfu, enquanto revirava os olhos, que antecedia o: tens muito que aprender. Cresce e aparece! que me deixava furioso! Sabe, eu acho que não queria ter razão. No fundo, acho que só queria mostrar que já era crescido, que me interessava pelos mesmos assuntos que eles, que pensava e tinha opinião sobre as coisas. No fundo, no fundo… acho que só queria que eles se orgulhassem de mim!”

     Talvez seja sempre um bocadinho assim. Quanto mais o caldo afetivo e as oportunidades educativas o potenciam, mais os recursos se vão tornando robustos com o crescimento. Mas quando, ao mesmo tempo, se vai crescendo com a ideia de que o desejo de ousar (mesmo que se tenha de falhar muitas vezes, para fazer cada vez melhor!), está mais próximo de valer reprovação (mais ou menos aberta) do que encorajamento, talvez as pessoas se tornem mais inseguras em relação às suas qualidades! Quando o melhor das suas competências, dos seus sonhos e do seu desejo de crescer parecem valer mais crítica e apoucamento do que manifestações claras de orgulho, talvez as pessoas se tornem (todas!) um bocadinho mais medrosas… na hora de fazer pela vida. 
   Talvez por isso seja tão importante quem possa de fazer de Maria nas nossas vidas para, de uma assentada, se orgulhar de nós e nos ajudar a elaborar esta espécie de angústia de castração (como lhe foi chamando a Psicanálise) que, tantas vezes, vezes de mais, teima em inibir o melhor das nossas competências… e do nosso entusiasmo!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 5 de novembro de 2017

Para onde vai a tristeza?

   "Vinha estrada fora, a chorar desalmadamente. Não havia trânsito e conduzia em piloto automático. Liguei à Carla, a contar-lhe que 20 minutos antes o Pedro tinha acabado com o nosso casamento, com uma frieza no olhar que nunca lhe vira! Sim, o Pedro que ainda no fim de semana tinha estado comigo a jantar na casa dela, como se nada se passasse! Precisava de falar com alguém! A Carla gosta muito de mim. Muito mesmo. Mas ficou muito atrapalhada por me sentir assim. Fica sempre, nestas coisas. Disse-me para ter calma. Não falámos mais de cinco minutos. A seguir liguei à Francisca. Ouviu-me. Ouviu-me em silêncio. E chorou comigo. Sentia-a a chorar do outro lado, sabe? Parecia que a conseguia ver a chorar. E ainda hoje lhe agradeço! Desapareceu-me a tristeza, e a raiva, e o desespero, e todo aquele sufoco de quem tinha acabado de perder o chão e já mal sabia o caminho para casa, quanto mais o que fazer à vida? Não, não desapareceu. Mas a Francisca aguentou a minha dor. Não se atrapalhou. Não me disse para ser forte nem para ter calma. Ficou ali, a ouvir-me e a chorar comigo! Sentiu comigo! Acho que lhe vou ser grata por isso, para sempre!"
  
   Mas porque é que damos tão pouco espaço à tristeza? Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um não penses mais nisso ou um tens de pensar positivo? Como se o otimismo florescesse por decreto; ou o que pensamos e sentimos pudesse, num passe de mágica, ser controlado por um qualquer botão on/off!
   Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um tens de ser forte, tens de reagir? Como se reagir não fosse, antes de mais, olhar o sofrimento nos olhos, equacionar a perda, senti-la, chorá-la, enraivecermo-nos com ela… para a podermos pensar. Como se este trabalho de luto não fosse crucial para alavancar os movimentos proativos que permitam ir transformando o sofrimento em desejo e esperança, primeiro, e em projeto e ação intencional, depois.
   A ser assim, a tristeza (como a revolta) será uma reação natural (e saudável!) à dor que, inevitavelmente, algumas circunstâncias de vida acabam por despertar. Já a falta de um espaço relacional contentor (ao pé de quem é que podemos ficar abertamente tristes? A quem é que posso confiar a minha dor?) que a permita acolher, sentir e pensar será o terreno fértil para a inibição das suas manifestações abertas. Nestas circunstâncias, sempre que, reiterada e repetidamente, bloqueamos a expressividade do que sentimos, podemos estar a acumular, dentro de nós, uma espécie de “resíduo tóxico” (em que se vão transformando as emoções que fazemos por não pensar) que, à falta de espaços relacionais que o possam revitalizar, tenderá a colonizar mais e mais recursos saudáveis, deixando-nos, por isso, mais expostos à (psico)patologia.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.