domingo, 5 de novembro de 2017

Para onde vai a tristeza?

   "Vinha estrada fora, a chorar desalmadamente. Não havia trânsito e conduzia em piloto automático. Liguei à Carla, a contar-lhe que 20 minutos antes o Pedro tinha acabado com o nosso casamento, com uma frieza no olhar que nunca lhe vira! Sim, o Pedro que ainda no fim de semana tinha estado comigo a jantar na casa dela, como se nada se passasse! Precisava de falar com alguém! A Carla gosta muito de mim. Muito mesmo. Mas ficou muito atrapalhada por me sentir assim. Fica sempre, nestas coisas. Disse-me para ter calma. Não falámos mais de cinco minutos. A seguir liguei à Francisca. Ouviu-me. Ouviu-me em silêncio. E chorou comigo. Sentia-a a chorar do outro lado, sabe? Parecia que a conseguia ver a chorar. E ainda hoje lhe agradeço! Desapareceu-me a tristeza, e a raiva, e o desespero, e todo aquele sufoco de quem tinha acabado de perder o chão e já mal sabia o caminho para casa, quanto mais o que fazer à vida? Não, não desapareceu. Mas a Francisca aguentou a minha dor. Não se atrapalhou. Não me disse para ser forte nem para ter calma. Ficou ali, a ouvir-me e a chorar comigo! Sentiu comigo! Acho que lhe vou ser grata por isso, para sempre!"
  
   Mas porque é que damos tão pouco espaço à tristeza? Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um não penses mais nisso ou um tens de pensar positivo? Como se o otimismo florescesse por decreto; ou o que pensamos e sentimos pudesse, num passe de mágica, ser controlado por um qualquer botão on/off!
   Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um tens de ser forte, tens de reagir? Como se reagir não fosse, antes de mais, olhar o sofrimento nos olhos, equacionar a perda, senti-la, chorá-la, enraivecermo-nos com ela… para a podermos pensar. Como se este trabalho de luto não fosse crucial para alavancar os movimentos proativos que permitam ir transformando o sofrimento em desejo e esperança, primeiro, e em projeto e ação intencional, depois.
   A ser assim, a tristeza (como a revolta) será uma reação natural (e saudável!) à dor que, inevitavelmente, algumas circunstâncias de vida acabam por despertar. Já a falta de um espaço relacional contentor (ao pé de quem é que podemos ficar abertamente tristes? A quem é que posso confiar a minha dor?) que a permita acolher, sentir e pensar será o terreno fértil para a inibição das suas manifestações abertas. Nestas circunstâncias, sempre que, reiterada e repetidamente, bloqueamos a expressividade do que sentimos, podemos estar a acumular, dentro de nós, uma espécie de “resíduo tóxico” (em que se vão transformando as emoções que fazemos por não pensar) que, à falta de espaços relacionais que o possam revitalizar, tenderá a colonizar mais e mais recursos saudáveis, deixando-nos, por isso, mais expostos à (psico)patologia.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

20 comentários:

  1. Costumo ouvir sem dar palpites. Essas palavras " Calma tens de ser forte, tens de reagir" não as consigo dizer. Mesmo quando se dá a morte de alguém, apenas digo:- Nada do que eu dizer apaga a dor, mas estou aqui . Como quando ouço um desabafo, a minha resposta é apoio, sem palavras e dizer, faças o que fizeres estou contigo. Ningué se pode por no lugar de ninguém, mas um abraço na altura certa , faz toda a diferença.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Maria! Seja bem-vinda a este espaço.

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    2. Tal como a Maria, não sei o que dizer nessas circunstâncias!!Não sei mesmo! E é isso que digo! E fico, e ouço se quiserem falar e abraço! Isso abraço! Muito! Penso que é o que eu própria quero, quando "o mundo desaba"! Continua como sempre: a escrever bem artigos de interesse! Obrigada.

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    3. Muito obrigado pelo seu comentário, hmargg!

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  2. Tão verdade...mas a verdade é que há momentos em que só sai o tão errado "tens de ser forte".... :(

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    1. Muito obrigado pelo comentário, Emopinto. Acho que sim. Nem sempre é fácil lidar com a dor. E, às vezes, talvez façamos um bocadinho de batoteiros quando a tentamos fintar com um passe de mágica ;)

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  3. Revejo-me muito neste texto. Parece que as pessoas ficam paralisadas e não sabem o que dizer/fazer. Se soubessem o valor de um abraço...

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário, Unknown! Seja bem-vindo/bem-vinda a este espaço.

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  4. É nestes momentos que devemos fazer um exame de consciência, uma análise de nós mesmos, quantificando as vezes que com nossas acções irresponsáveis, provocá-mos esse mesmo sofrimento nos outros. Talvez essa respectiva análise, nos leve há tão falada lei do retorno.

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  5. infelizmente nos dias de hoje tudo é como a 'fastfood": a dor/tristeza/magoa/depressao tem de passar rápido, atirado para tras das costas como se nao tivesse sido nada... ninguém tem paciência para ouvir o outro a falar do mesmo assunto mais do que uma vez. como se o luto que muitas vezes tem de ser feito tivesse prazo de validade...triste o conceito de amizade dr hoje em dia

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  6. Quem conhece o poder de um simples abraço, não necessita de se expressar em palavras...

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  7. Meu Deus, como sei tão bem o quanto é real este texto, revejo-me em tudo isso, o tempo vai passando e essa dor fica mais enraizada e vai fazendo parte da minha vida, quanto eu gostaria de ter um abraço forte, mas tão forte que me fizesse esquecer todo o sofrimento, mas como é impossível nos dias/anos que passam, vou vivendo com este trauma.

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  8. Muito obrigado pelo seu comentário. Estou convicto de que há formas de acolher e transformar a dor, pelo que, se me permite a sugestão, poderá procurar ajuda profissional na sua área de residência.

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  9. Ainda hoje chorei com uma amiga, pela dor dela que podia ser minha...

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário! Seja muito bem-vinda/bem-vindo.

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  10. Existem pessoas que não deixam aproximar. Só ela sofre, assim pensa. Mas o amigo, a família sofre por ver o sofrimento e nada poder dizer. Só um abraço

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