domingo, 29 de outubro de 2017

Isso é tudo muito bonito, mas como é que a psicoterapia pode ajudar?

  Talvez o imaginário colectivo esteja, ainda, muito dominado por uma ideia positivista de ciência, e a ideia de saúde ainda muito acoplada a um modelo biomédico, de causalidade linear. A ser assim, o sofrimento mental só poderia resultar, de forma unívoca, de umas quantas reacções bioquímicas disfuncionais, afigurando-se a medicação psicotrópica como a única forma de corrigir estes desequilíbrios.
  Mas somos, felizmente, um bocadinho mais complexos do que isso! A actividade cerebral determina, em larguíssima medida, a nossa experiência, mas parece cada vez mais claro que a experiência e as relações humanas influenciam, elas próprias, aspectos muito importantes do funcionamento cerebral! É o que parece, por exemplo, decorrer de um estudo dirigido por Daniel Wiswesde, em que pacientes deprimidos melhoram significativamente os sintomas depressivos, normalizando, ao mesmo tempo, o funcionamento do sistema límbico (área cerebral muito associada ao processamento das emoções), depois de um punhado de meses de psicoterapia dinâmica.
  Quer isto dizer que a biologia cerebral não é fundamental no desenrolar da vida mental, ou que a medicação não pode ser muito útil para suster o sofrimento mental? De modo nenhum! Significará antes que a lógica da causalidade linear é curta na aproximação à complexidade humana.
  Há mais de 100 anos aprendíamos com Freud que a nossa vida é muito condicionada por emoções que fazemos por não pensar. Aprendíamos com o pai da Psicanálise que o normal e o patológico são, no essencial, quantidades diferentes das mesmas qualidades humanas. Os cognitivistas mostraram-nos como as experiências de vida podem moldar o modo como aprendemos a pensar nas mais diversas situações. Os modelos sistémicos aclararam a importância da comunicação, da complexidade e da causalidade circular. A Psicanálise contemporânea mostra-nos o lugar central da relação (desde a vida intrauterina, sabemo-lo hoje) na construção do funcionamento mental (em todos os seus aspetos mais e menos saudáveis).
  Se tentarmos intersectar todas estas portas de entrada, talvez possamos dizer que, em muitas circunstâncias, a ansiedade ou os sintomas depressivos, por exemplo, decorrerão tanto de equívocos e desencontros continuados na relação com o outro e com a verdade do que se sente (ou de experiências mais ou menos traumáticas) como de desequilíbrios bioquímicos (que, muitas das vezes, mais do que causa, serão, porventura, o correlato biológico do sofrimento).
  Será aqui que, a meu ver, entrará a utilidade da psicoterapia. Não apenas como uma oportunidade para as pessoas se sentirem genuinamente escutadas. Mas como um espaço relacional que acolhe as angústias de que vão procurando fugir (por as sentirem insuportáveis ou demasiado dolorosas, por exemplo), ao mesmo tempo que as legenda e liga com os aspectos essenciais das suas vidas. Esta nova relação, ao desconstruir alguns aspectos dos padrões relacionais (que, em boa medida, para o bem e para o mal, as trouxeram até ao ponto onde se encontram), funcionará, assim, como uma espécie de tubo de ensaio para uma relação mais clara e genuína com aquilo que sente (procurando pensar e gerir as emoções em vez de, continuadamente, as tentar silenciar), o que não deixará de se traduzir nas relações da “vida real” (tornando-as mais confiantes e confiáveis, mais criativas, assertivas e próximas) com as pessoas, o trabalho, as desilusões, a esperança ou o desejo.

(Texto originalmente publicado no P3, do Público)

domingo, 8 de outubro de 2017

(Des)atentos também somos (todos) nós!

  Para além de um ar mais ou menos entediado, o Francisco trazia, por intermédio dos pais, um role de queixas. De entre as que mais os preocupavam talvez a irrequietude e a falta de atenção, (na escola e na hora de fazer os TPC) fossem as que mais se destacassem.
  Era só a segunda vez que o atendia. Como na primeira, entrou na sala com um monumental ar de frete. Irrequieto e de olhar fugidio, parecia não ouvir uma palavra do que eu lhe dizia. Na tentativa de (estimulando a competitividade) esbater um bocadinho esta distância, propus-lhe uma partida de futebol (no campo improvisado em que, rapidamente, transformámos a sala). Tinha pinta e pés de jogador da bola, mas jogava com a mesma displicência com que fingia não ouvir uma palavra do que lhe dizia. A dada altura, na tentativa de subir a fasquia da competitividade (empatando o jogo), facilitei, de forma bem disfarçada (achava eu!) a entrada de um golo seu. Nesse exato momento, o Francisco agarra a bola com as mãos, aproxima-se de mim, olha-me nos olhos e atira-me um arrepiante: “tu deixaste entrar o golo de propósito”!

    A irrequietude e a desatenção terão sempre o mesmo valor?
  A vivacidade irrequieta e a desatenção da criança que, invariavelmente, “se despista” nos exercícios de matemática sempre que está para acontecer, no recreio, o dérbi do futebol escolar deverá mesmo merecer preocupação de maior?
  Se é expectável que um adulto numa situação de stresse intenso (a eminência do desemprego ou a espera pelo resultado de um exame médico muito importante, por exemplo) possa não parar quieto corredor acima, corredor abaixo, sem cabeça para mais nada, é assim tão estranho que uma criança possa reagir com irrequietude e desatenção face a fontes de stresse mais ou menos continuadas?
  Se, antecipando uma apresentação que poderá valer a promoção há muito desejada, é plausível que um adulto tenha dificuldade em concentrar-se numa ou noutra tarefa, não será compreensível que uma criança possa ficar agitada e desatenta perante o medo avassalador, mais ou menos omnipresente e muito pouco realista (!), de poder ser incompetente para a aprendizagem?
  Não será mais difícil para todos, crianças e adultos, estar sereno e atento quando, por algum motivo, se está angustiado? Ter quem nos ajude a conter e a traduzir em palavras essa angústia não nos tornará, a todos, mais competentes para a atenção?

  Os manuais de diagnóstico têm vindo a tornar-se cada vez mais precisos na organização de sinais e sintomas em diagnósticos. Serão, por isso, uma ferramenta importante para qualquer técnico de saúde mental. Já a transferência, mais ou menos direta, de alguns conceitos e diagnósticos (como a “perturbação da hiperatividade/défice de atenção”, por exemplo) para o imaginário coletivo sem a mediação de um enquadramento compreensivo que os possa balizar, parece-me contribuir muito pouco (até pelo risco de multiplicação de equívocos de que daí poderá resultar) para que conheçamos e ajudemos as crianças (os adolescentes ou os adultos) a crescer melhor!
  Se há, hoje, um consenso alargado de que o modelo biomédico, marcadamente positivista, é curto na aproximação à complexidade humana, talvez possamos considerar que tão importante como estar atento a sintomas (como a hiperatividade e a desatenção), será compreender o que poderão significar nas dinâmicas interna e relacional daquela criança e daquela família (escola ou comunidade).

 Afinal de contas, como (re)aprendi naquele dia, com o Francisco: por mais desatentos que possamos parecer à primeira vista, somos todos(!) muito sensíveis ao pormenor!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.