domingo, 8 de outubro de 2017

(Des)atentos também somos (todos) nós!

  Para além de um ar mais ou menos entediado, o Francisco trazia, por intermédio dos pais, um role de queixas. De entre as que mais os preocupavam talvez a irrequietude e a falta de atenção, (na escola e na hora de fazer os TPC) fossem as que mais se destacassem.
  Era só a segunda vez que o atendia. Como na primeira, entrou na sala com um monumental ar de frete. Irrequieto e de olhar fugidio, parecia não ouvir uma palavra do que eu lhe dizia. Na tentativa de (estimulando a competitividade) esbater um bocadinho esta distância, propus-lhe uma partida de futebol (no campo improvisado em que, rapidamente, transformámos a sala). Tinha pinta e pés de jogador da bola, mas jogava com a mesma displicência com que fingia não ouvir uma palavra do que lhe dizia. A dada altura, na tentativa de subir a fasquia da competitividade (empatando o jogo), facilitei, de forma bem disfarçada (achava eu!) a entrada de um golo seu. Nesse exato momento, o Francisco agarra a bola com as mãos, aproxima-se de mim, olha-me nos olhos e atira-me um arrepiante: “tu deixaste entrar o golo de propósito”!

    A irrequietude e a desatenção terão sempre o mesmo valor?
  A vivacidade irrequieta e a desatenção da criança que, invariavelmente, “se despista” nos exercícios de matemática sempre que está para acontecer, no recreio, o dérbi do futebol escolar deverá mesmo merecer preocupação de maior?
  Se é expectável que um adulto numa situação de stresse intenso (a eminência do desemprego ou a espera pelo resultado de um exame médico muito importante, por exemplo) possa não parar quieto corredor acima, corredor abaixo, sem cabeça para mais nada, é assim tão estranho que uma criança possa reagir com irrequietude e desatenção face a fontes de stresse mais ou menos continuadas?
  Se, antecipando uma apresentação que poderá valer a promoção há muito desejada, é plausível que um adulto tenha dificuldade em concentrar-se numa ou noutra tarefa, não será compreensível que uma criança possa ficar agitada e desatenta perante o medo avassalador, mais ou menos omnipresente e muito pouco realista (!), de poder ser incompetente para a aprendizagem?
  Não será mais difícil para todos, crianças e adultos, estar sereno e atento quando, por algum motivo, se está angustiado? Ter quem nos ajude a conter e a traduzir em palavras essa angústia não nos tornará, a todos, mais competentes para a atenção?

  Os manuais de diagnóstico têm vindo a tornar-se cada vez mais precisos na organização de sinais e sintomas em diagnósticos. Serão, por isso, uma ferramenta importante para qualquer técnico de saúde mental. Já a transferência, mais ou menos direta, de alguns conceitos e diagnósticos (como a “perturbação da hiperatividade/défice de atenção”, por exemplo) para o imaginário coletivo sem a mediação de um enquadramento compreensivo que os possa balizar, parece-me contribuir muito pouco (até pelo risco de multiplicação de equívocos de que daí poderá resultar) para que conheçamos e ajudemos as crianças (os adolescentes ou os adultos) a crescer melhor!
  Se há, hoje, um consenso alargado de que o modelo biomédico, marcadamente positivista, é curto na aproximação à complexidade humana, talvez possamos considerar que tão importante como estar atento a sintomas (como a hiperatividade e a desatenção), será compreender o que poderão significar nas dinâmicas interna e relacional daquela criança e daquela família (escola ou comunidade).

 Afinal de contas, como (re)aprendi naquele dia, com o Francisco: por mais desatentos que possamos parecer à primeira vista, somos todos(!) muito sensíveis ao pormenor!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

4 comentários:

  1. Adoro a noção que somos todos atentos ao pormenor, mesmo os mais distraídos. Todos notamos o que é importante para nós...

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  2. Este é um assunto que me interessa muito particularmente! Por vários motivos quer pessoais quer profissionais! Gostava que houvesse maior desenvolvimento, até! Obrigada!

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