Para
além de um ar mais ou menos entediado, o Francisco trazia, por intermédio dos
pais, um role de queixas. De entre as que mais os preocupavam talvez a
irrequietude e a falta de atenção, (na escola e na hora de fazer os TPC) fossem
as que mais se destacassem.
Era só a segunda vez que o atendia. Como na
primeira, entrou na sala com um monumental ar de frete. Irrequieto e de olhar
fugidio, parecia não ouvir uma palavra do que eu lhe dizia. Na tentativa de
(estimulando a competitividade) esbater um bocadinho esta distância, propus-lhe
uma partida de futebol (no campo improvisado em que, rapidamente, transformámos
a sala). Tinha pinta e pés de jogador da bola, mas jogava com a mesma
displicência com que fingia não ouvir uma palavra do que lhe dizia. A dada altura,
na tentativa de subir a fasquia da competitividade (empatando o jogo),
facilitei, de forma bem disfarçada (achava eu!) a entrada de um golo seu. Nesse
exato momento, o Francisco agarra a bola com as mãos, aproxima-se de mim, olha-me
nos olhos e atira-me um arrepiante: “tu deixaste entrar o golo de propósito”!
A irrequietude e a desatenção terão sempre o
mesmo valor?
A vivacidade irrequieta e a desatenção da
criança que, invariavelmente, “se despista” nos exercícios de matemática sempre
que está para acontecer, no recreio, o dérbi do futebol escolar deverá mesmo
merecer preocupação de maior?
Se é expectável que um adulto numa situação
de stresse intenso (a eminência do desemprego ou a espera pelo resultado de um
exame médico muito importante, por exemplo) possa não parar quieto corredor
acima, corredor abaixo, sem cabeça para mais nada, é assim tão estranho que uma
criança possa reagir com irrequietude e desatenção face a fontes de stresse
mais ou menos continuadas?
Se, antecipando uma apresentação que poderá
valer a promoção há muito desejada, é plausível que um adulto tenha dificuldade
em concentrar-se numa ou noutra tarefa, não será compreensível que uma criança
possa ficar agitada e desatenta perante o medo avassalador, mais ou menos
omnipresente e muito pouco realista (!), de poder ser incompetente para a
aprendizagem?
Não será mais difícil para todos, crianças e
adultos, estar sereno e atento quando, por algum motivo, se está angustiado?
Ter quem nos ajude a conter e a traduzir em palavras essa angústia não nos
tornará, a todos, mais competentes para a atenção?
Os manuais de diagnóstico têm vindo a
tornar-se cada vez mais precisos na organização de sinais e sintomas em
diagnósticos. Serão, por isso, uma ferramenta importante para qualquer técnico de
saúde mental. Já a transferência, mais ou menos direta, de alguns conceitos e
diagnósticos (como a “perturbação da hiperatividade/défice de atenção”, por
exemplo) para o imaginário coletivo sem a mediação de um enquadramento
compreensivo que os possa balizar, parece-me contribuir muito pouco (até pelo
risco de multiplicação de equívocos de que daí poderá resultar) para que
conheçamos e ajudemos as crianças (os adolescentes ou os adultos) a crescer
melhor!
Se há, hoje, um consenso alargado de que o
modelo biomédico, marcadamente positivista, é curto na aproximação à
complexidade humana, talvez possamos considerar que tão importante como estar
atento a sintomas (como a hiperatividade e a desatenção), será compreender o
que poderão significar nas dinâmicas interna e relacional daquela criança e
daquela família (escola ou comunidade).
Afinal de contas, como (re)aprendi naquele
dia, com o Francisco: por mais desatentos que possamos parecer à primeira
vista, somos todos(!) muito sensíveis ao pormenor!
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está
muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Adoro a noção que somos todos atentos ao pormenor, mesmo os mais distraídos. Todos notamos o que é importante para nós...
ResponderEliminarMuito obrigado pelo seu comentário, Unknown!
EliminarEste é um assunto que me interessa muito particularmente! Por vários motivos quer pessoais quer profissionais! Gostava que houvesse maior desenvolvimento, até! Obrigada!
ResponderEliminarMuito obrigado eu, pelo seu comentário!
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