domingo, 31 de janeiro de 2021

Passa ao outro e não ao mesmo: culpa e pandemia.

  Com teste positivo para a COVID-19 nos primeiros dias de Janeiro, a que se sucederam testes positivos a toda a família nuclear, depressa as fortes dores de cabeça e de corpo tomaram conta do Manuel. Mas, por mais que as dores o incomodassem muito, o que mais lhe doía era mesmo a ideia de poder ter sido ele a contaminar a família. Por mais que todos estivessem, apenas, com sintomas ligeiros, era difícil não se deixar engolir por uma angústia avassaladora que, ora em lume brando, ora a todo o vapor, o transportava para um crescendo de cenários catastróficos, que não conseguia parar: as filhas, apesar de saudáveis, poderiam, azar dos azares, acabar agarradas a um ventilador? E a mulher? O que poderia acontecer à mulher? E se as perdesse? E ele, o que aconteceria se ele fosse mais um a engrossar os números de internados? Apesar de ter sido, sempre, muito rigoroso no cumprimento das recomendações das Autoridades de Saúde, não conseguia deixar de se sentir consumido por uma culpa insuportável. E revisitava, de modo obsessivo, todas as vezes em que se poderá ter descuidado, um bocadinho que fosse. E encontrou, claro, um par de situações em que, apesar de todos os cuidados, pode ter facilitado. Mas será razoável pensar que é possível não haver um descuido em 11 meses de cuidados pandémicos? 

   A situação é, de facto, dramática. Vivemos em sobressalto, assombrados por um fantasma de morte que, a qualquer momento, nos pode tirar pessoas, empregos, rendimentos, futuro... Vivemos tristes, pelas perdas de pessoas, de abraços, de estilo de vida, de emprego, de rendimento económico, etc. E a culpa? De quem é a culpa? A culpa não pode morrer solteira! Ora é dos governos, que não tomam medidas. Ora dos incumpridores que crucificamos nas redes sociais. Passa a outro e não ao mesmo, que a dor é, muitas vezes, mais intensa do que aquilo que seria suportável. E será muito em reação a esta insuportabilidade do sofrimento que se procuram bodes expiatórios que possam abrigar a culpa. Quer isto dizer que as medidas dos governos não são criticáveis numa altura destas, ou que não existem comportamentos de tal modo irresponsáveis que mais não são do que casos de polícia? De modo nenhum! Quererá antes dizer que projetar massivamente a angústia em culpados de geometria variável (governos – por mais que, evidentemente, as suas medidas possam ser criticáveis;  incumpridores – por mais que, naturalmente, comportamentos irresponsáveis mereçam penalização adequada; negacionistas – por mais que a sua denegação massiva e perigosa diga muito mais do seu mundo interno do que da realidade) até pode, numa ou noutra circunstância, ser a única forma de aliviar, momentaneamente, uma dor insuportável mas, seguramente, não nos deixa mais perto de combater eficazmente a pandemia. 
    A ser assim, talvez seja importante, lembrarmos a todos os Manuéis, as vezes que forem precisas, que são vítimas e não culpados! Que é da responsabilidade de cada um de nós protegermo-nos o melhor que pudermos, cumprindo escrupulosamente as indicações das Autoridades de Saúde; mas que, ainda assim, podemos infetar e ser infetados. E a culpa não é nossa! É do vírus! E é à boleia da destruição que tem causado que não haverá muito como (e ainda bem!) não sentirmos medo, tristeza, culpa e raiva! Saibamos nós não desistir de aproximar quem (nas relações amorosas, familiares, comunitárias ou profissionais) nos possa ajudar a transformar a intensidade de tudo aquilo que vamos sentindo, em gestos de relação e vida na luta contra a morte. Ou não fossemos, antes de tudo o mais, seres relacionais. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Sim, estamos cheios de medo (outra vez) ... e ainda bem!

 Sim, estamos cheios de medo! De adoecer, de morrer, de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis. De, sem querer, disseminarmos o mal. Sim, estamos cheios de medo! Da possibilidade das imagens trágicas de hospitais em rutura que nos chegaram de Itália, Espanha e tantas outras geografias se repetirem connosco. Sim, estamos cheios de medo! Da avalanche económica que todos já percebemos colossal. E estamos tristes. Pela vida mais ou menos suspensa por mil e um constrangimentos; pelos longos e penosos 10 meses sem tocar, cheirar, abraçar, beijar alguns dos que mais gostamos. Pior, porque muitos de nós, dramaticamente, já perderam pessoas preciosas. E estamos zangados, muito zangados! Um vírus, vindo do nada, virou-nos a vida do avesso e deu corpo a um batalhão de fantasmas! A realidade (dramática!) dos hospitais entra-nos casa adentro, e amplia mais e mais a intensidade do que vamos sentindo. 

  Por mais que muitos de nós nunca tenham tirado os pés do chão e a cabeça da consciência do perigo, o alívio nos números do mês de Dezembro, a viragem simbólica do ano (num registo mais ou menos mágico de que a pandemia era coisa do malfadado 2020) e a esperança (real!) na vacina que nos há de ajudar a vencer a pandemia, terão, porventura, alimentado a ideia de que o pior já tinha passado. Mas, com o ano novo, qual murro impiedoso no estômago, veio uma degradação assustadora da situação. E, com ela, a intensificação do medo, da tristeza e da raiva. E ainda bem! 
  O medo é protetor perante situações ameaçadoras. Será muito à boleia do medo (e do sentido comunitário) da rutura dos hospitais, do medo de adoecer, de morrer, de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis e de, sem querer, disseminarmos o mal, que nos motivamos para cumprir escrupulosamente as indicações das Autoridades de Saúde. Será muito à conta da raiva que toda a situação inevitavelmente desperta, que vamos fazendo das tripas coração para dar vida à luta contra uma pandemia que insiste em dar corpo ao fantasma de morte. Será com a contribuição da tristeza (naquilo a que Melanie Klein chamou de posição depressiva) que podemos olhar para dentro, elaborar as perdas para, a partir daí, dar vida à luta pela vida! 

  Mas o medo, a raiva e a tristeza não podem atrapalhar? Podem! Muito! 
Quanto mais profundas as fragilidades pessoais e menos o espaço relacional, familiar, comunitário e social, para acolher e transformar a intensidade de tudo o que vamos sentindo nestes tempos teimosamente difíceis, mais o medo dará lugar ao pânico, a raiva ao ódio e à violência, e a tristeza ao desamparo e ao desespero. E mais perto estaremos de um pânico paralisante, de uma clivagem arcaica do mundo em “nós” (bons) vs “eles” (maus), e de uma denegação maníaca do medo e da própria realidade (terreno fértil para perigosos comportamentos de risco, teorias da conspiração e discursos que mais não fazem do que projetar a angústia nos mais diversos bodes expiatórios). 
  Queiramos ou não, estamos juntos na tempestade (bem sei que em barcos de resistência e conforto muito desiguais). E não temos como escapar à interdependência (afetiva, social, económica, de saúde, etc.) da natureza humana: sim(!), na nossa autonomia dependemos todos uns dos outros! Não parece, por isso, haver reação de vida a esta emergência (sanitária, antes de tudo, mas também afetiva, social e económica) que não seja a da humanidade de não desistir de transformar a intensidade de tudo aquilo que vamos sentindo em gestos de relação e vida!