segunda-feira, 15 de março de 2021

Um toca e foge à espera de quem o segure!

   A inteligência, o jeito despachado e a competência têm-lhe vindo a garantir a progressão profissional que ambiciona. Mas, na vida pessoal, tudo lhe parece emperrar muito mais do que a conta. Passou meses a suspirar, em surdina, pelo Francisco, o colega da secretária do lado, de quem se foi aproximando. Os fins de dia passava-os a espreitar o telemóvel a cada cinco minutos, como se olhando mais vezes, aumentasse a probabilidade de cair uma mensagem do Francisco. As noites, essas, passava-as enroladinha em posição fetal, a fantasiar com ele, até adormecer. Até ao dia em que o Francisco, num sopro de arrojo, se chegou à frente! Mas, perante o momento que tantas vezes fantasiara, a Maria não foi capaz de mais do que um chega para lá assustado, numa espécie de repetição (de formatos vários) do toca e foge com que, vezes de mais, foi entorpecendo a sua vida amorosa. 
    Com os amigos e com a família não parece ser tão diferente assim. Gosta genuinamente deles. É muito sociável, cria bom ambiente, mas quando dá por si a deixar-se levar (pelo que sente), e a confiar a alguém dos mais próximos, um ou outro aspeto da sua intimidade fica, invariavelmente, muito assustada, acabando, logo de seguida, por se distanciar, por uns tempos. 

   Precisamos, como de pão para a boca, de relações sólidas e profundas (aprendemo-lo com a psicanálise das relações de objeto ou com os teóricos da vinculação, por exemplo). É na relação com o Outro significativo (na vida lá fora, e no nosso mundo interno) que damos significado à intensidade do que vamos sentindo, que aplacamos (e transformamos!) angústias. É na relação com o Outro significativo (na vida lá fora, e no nosso mundo interno) que verdadeiramente construímos humanidade. 
   A proximidade consistente com o Outro significativo é tudo o que nos pode aproximar do melhor de nós. Mas é, também, em muitas circunstâncias, tudo o que nos coloca perante o risco de nos confiarmos a um colo ou a um abraço que, muito mais do que segurar, desampara! Talvez seja quando (à boleia da história relacional) ganha espaço este medo de se ser engolido pela proximidade, ou de não se aguentar a dor e o desamparo de uma proximidade falhada, que se estará mais perto de um impasse nem contigo, nem sem ti. Não se pode estar sem o Outro, nem com ele verdadeiramente!  A distância (e a separação) é insuportável...  mas a proximidade (e a presença) queima! 
   Quando vão repetindo (com roupagens várias) - com os amores, a família ou os amigos - o registo toca e foge a que se foram habituando, talvez não haja muito como as pessoas não se sentirem a desvitalizar aos bocadinhos. Talvez não haja muito como não se sentirem crescentemente dominadas pela angústia e pela solidão (mesmo quando mascaradas por uma intensa vida social e/ou profissional).  E, assim, se vai delapidando a esperança, mais ou menos secreta, de que alguém possa olhá-las suficientemente dentro (por mais que desviem o olhar!), e segurá-las, com firmeza e afeto (por mais que usem e abusem do chega para lá, em resposta à proximidade) ... “exigindo-lhes” que façam diferente, com a diferença que introduzem. Até que (na psicoterapia, ou na vida lá fora), alguém insista em olhar por si adentro de forma segura, consistente, firme e afetuosa. Até que (na psicoterapia, ou na vida lá fora), alguém insista em ajudar a descodificar, a legendar e a transformar estes movimentos... Afinal de contas, o toca e foge será assim uma espécie de fantasma à espera de quem o segure, pense e transforme! 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 7 de março de 2021

Quem disse que não existem (caça) fantasmas?

 Há muito que não ia a um Festival de Verão. Não que tivesse deixado de gostar de música. Mas o último tinha sido tão dolorosamente inesquecível que, nos anos seguintes, só os outdoors a anunciar as bandas a deixavam de cabelos em pé. Passaram cincos anos desde que se desunhou para surpreender o João com dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. Se a reação frouxa do João não deixou de intensificar umas quantas luzes de alerta que, há muito, vinham crescendo dentro da Maria, o pior estava para vir. Toda a gente parecia envolvida pela atmosfera intensa do concerto. Toda a gente menos a Maria e o João. Ele já não disfarçava o enfado. Mas a Maria não desarmava. Abraçou-o. Deu-lhe a mão. Mas nada encaixava. Há muito que pareciam dois corpos estranhos. Nessa mesma noite, o João já não dormira em casa.
   Já a viver um amor terno e intenso com o Carlos, a Maria estava prestes a voltar ao festival que selara o fim da sua relação com o João. O Carlos tinha movido montanhas para conseguir dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. De gesto em gesto, o Carlos arrebatava a Maria como o João nunca fora capaz de fazer. E ela andava tão de bem com a vida que não mais se lembrara do João. Não até ao dia do concerto, em que, sem saber bem porquê, acordou a pensar nele. A leveza tinha dado lugar a uma angústia difusa, que não mais a largou nesse dia. Estava implicativa com o Carlos: em casa, no caminho para o festival, no concerto. Mas ele não desarmou. Puxou-a para si, abraçou-a e perguntou-lhe o que é que se passava. Mas a Maria, que costumava sentir o abraço do Carlos como o melhor lugar do mundo, estava assustadiça. E esquivou-se com um seco: não se passa nada. O que é que se havia de passar, refugiando-se, de novo, na implicância. 
   Tudo parecia passar-se como se, de repente, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse, por momentos, deixado de ser o poço de charme por quem se mantém profundamente apaixonada, para se transformar numa espécie de fiel depositário de algumas das suas dores e medos mais recônditos. Tudo parecia passar-se como se, por momentos, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse deixado de ser o homem profundamente apaixonado e apaixonante, para se tornar abandonante... como os "Joões" desta vida. 

  Talvez não haja muito como (para o bem e para o mal) não projetarmos no outro significativo os aspetos essenciais da nossa história relacional. Esta aparente inevitabilidade (a que, há mais de 100 anos, Freud chamou de transferência), quando massiva, pode aproximar-nos do risco de reduzir o outro a uma espécie de prolongamento do nosso mundo interno. Mas é também ela, ao atualizar feridas antigas em novas (e velhas) relações, que abre a porta para a reparação, para a criatividade, para o pensamento e para a vida. Não desistamos nós de encontrar quem faça diferente! Não desistamos nós de encontrar quem faça melhor! Não desistamos nós de ver o outro (na sua diferença e autonomia) para lá dos holofotes da nossa projeção. Não desista o outro de fazer diferente! Não desista o outro de fazer melhor! Por mais que, mesmo sem querer, às vezes o “empurremos” (na secreta esperança de que não o faça!) para a repetição de alguns dos aspetos mais dolorosos da nossa história!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.