domingo, 7 de março de 2021

Quem disse que não existem (caça) fantasmas?

 Há muito que não ia a um Festival de Verão. Não que tivesse deixado de gostar de música. Mas o último tinha sido tão dolorosamente inesquecível que, nos anos seguintes, só os outdoors a anunciar as bandas a deixavam de cabelos em pé. Passaram cincos anos desde que se desunhou para surpreender o João com dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. Se a reação frouxa do João não deixou de intensificar umas quantas luzes de alerta que, há muito, vinham crescendo dentro da Maria, o pior estava para vir. Toda a gente parecia envolvida pela atmosfera intensa do concerto. Toda a gente menos a Maria e o João. Ele já não disfarçava o enfado. Mas a Maria não desarmava. Abraçou-o. Deu-lhe a mão. Mas nada encaixava. Há muito que pareciam dois corpos estranhos. Nessa mesma noite, o João já não dormira em casa.
   Já a viver um amor terno e intenso com o Carlos, a Maria estava prestes a voltar ao festival que selara o fim da sua relação com o João. O Carlos tinha movido montanhas para conseguir dois bilhetes para o esgotadíssimo concerto da banda que tinham adotado como a “oficial” do seu amor. De gesto em gesto, o Carlos arrebatava a Maria como o João nunca fora capaz de fazer. E ela andava tão de bem com a vida que não mais se lembrara do João. Não até ao dia do concerto, em que, sem saber bem porquê, acordou a pensar nele. A leveza tinha dado lugar a uma angústia difusa, que não mais a largou nesse dia. Estava implicativa com o Carlos: em casa, no caminho para o festival, no concerto. Mas ele não desarmou. Puxou-a para si, abraçou-a e perguntou-lhe o que é que se passava. Mas a Maria, que costumava sentir o abraço do Carlos como o melhor lugar do mundo, estava assustadiça. E esquivou-se com um seco: não se passa nada. O que é que se havia de passar, refugiando-se, de novo, na implicância. 
   Tudo parecia passar-se como se, de repente, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse, por momentos, deixado de ser o poço de charme por quem se mantém profundamente apaixonada, para se transformar numa espécie de fiel depositário de algumas das suas dores e medos mais recônditos. Tudo parecia passar-se como se, por momentos, aos olhos da Maria, o Carlos tivesse deixado de ser o homem profundamente apaixonado e apaixonante, para se tornar abandonante... como os "Joões" desta vida. 

  Talvez não haja muito como (para o bem e para o mal) não projetarmos no outro significativo os aspetos essenciais da nossa história relacional. Esta aparente inevitabilidade (a que, há mais de 100 anos, Freud chamou de transferência), quando massiva, pode aproximar-nos do risco de reduzir o outro a uma espécie de prolongamento do nosso mundo interno. Mas é também ela, ao atualizar feridas antigas em novas (e velhas) relações, que abre a porta para a reparação, para a criatividade, para o pensamento e para a vida. Não desistamos nós de encontrar quem faça diferente! Não desistamos nós de encontrar quem faça melhor! Não desistamos nós de ver o outro (na sua diferença e autonomia) para lá dos holofotes da nossa projeção. Não desista o outro de fazer diferente! Não desista o outro de fazer melhor! Por mais que, mesmo sem querer, às vezes o “empurremos” (na secreta esperança de que não o faça!) para a repetição de alguns dos aspetos mais dolorosos da nossa história!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

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