segunda-feira, 20 de abril de 2020

Tempos de pandemia: a (in)suportável incerteza do ser

  Aí está ela. Implacável e destruidora. A disseminar medo e sofrimento, raiva, angústia e tristeza. Aí está ela. A ceifar vidas humanas. A destruir vida social e económica. A pôr em modo pausa (por tempo indeterminado) os estilos de vida, de um planeta inteiro. E não sabemos, ainda, quando e como conseguiremos sair disto. E, de repente, nós que conseguimos voar como os pássaros, espreitar outros planetas, e explorar a profundidade dos mares, somos engolidos pela avassaladora incerteza de uma fera que não vai além de umas quantas medidas ultramicroscópicas de tamanho, as suficientes, ainda assim, para nos refletir, no espelho, a insuportável imagem da fragilidade humana.
   Abundam hipóteses, umas mais fundamentadas do que outras, sobre o modo como o coronavírus se mutou e chegou aos humanos. Investiga-se (e bem!) a responsabilidade dos hábitos humanos por, por exemplo, se permitir que animais de ecossistemas tão distintos convivam (numa espécie de free pass para microrganismos vários) em mercados de animais. Pululam as teorias da conspiração assegurando (numa espécie de denegação da incerteza) que o vírus não passa de uma criação laboratorial, parte de uma geoestratégia de guerra biológica silenciosa. Proliferam as interpretações da pandemia como uma espécie de retaliação da mãe natureza pelos pecados humanos na forma como temos tratado o ambiente.
   Tudo parece passar-se como se, apesar de tudo, fosse um bocadinho menos insuportável a ideia de que a pandemia tenha, na sua origem, a ação humana do que a hipótese de resultar de um qualquer acaso da natureza. Talvez na ilusão de que, se assim for, se torne mais controlável.
   Se é à ciência que confiamos (e muito bem!) a construção de respostas para a pandemia, também é da sabedoria popular que me lembro ao pensar alguns aspetos da crise. Diz-se, na minha terra, quando morre alguém muito precioso (especialmente se de modo repentino): nós não somos nada! Como se, numa só formulação paradoxal, pudéssemos condensar (e integrar!) de uma só vez toda a força e fragilidade humanas: 1) somos (quase) tudo para quem amamos/nos ama... e é isso que nos humaniza e dá vida, 2) às vezes somos (quase) nada para impedir que quem é (quase) tudo para nós... morra!
   Talvez neste crise tenhamos, também, o enorme desafio de fazer humanidade, integrando paradoxos: a) tolerar a incerteza (com todo o medo, raiva e tristeza a que temos direito!), ao mesmo tempo que não desistimos de construir mais e mais conhecimento para combater a pandemia (sanitária, social, psicológica, económica, etc.); b) tolerar o distanciamento físico, ao mesmo tempo que não abdicamos nem um milímetro da relação afetiva (com o outro) – talvez a única forma de não ficarmos sozinhos com a intensidade e a volatilidade de tudo aquilo que vamos sentindo.  
   Não, não há como, num passe de mágica, ficar tudo bem! Não, não há como apagar as mortes e o sofrimento, eliminar o medo e a devastação económica. Não, não há como fazer da quarentena, da telescola ou do teletrabalho mais do que as soluções possíveis, de recurso.
   Mas se não podemos apagar os contornos dramáticos da situação, podemos reagir-lhe! Podemos responder-lhe com a relação (pessoal, familiar, profissional e comunitária) que, não nos deixando sozinhos com o sofrimento, o medo, a tristeza ou a raiva, abre avenidas de esperança, coragem e solidariedade... na luta dramática que travamos!

sexta-feira, 10 de abril de 2020

Sim, estamos cheios de medo!

 Durante muito tempo foram metáforas. Metáforas do medo de danificar ou destruir: o outro, a relação (e com eles) a nós próprios. E, num ápice, o vírus, a contaminação, o dano e a destruição ganham corpo. Como se fossemos todos violentamente engolidos por um filme de ficção científica.
 E, de repente, muito do que permitia matar fantasmas – estar junto a conversar, tocar, abraçar, beijar... – dá-lhes, agora, energia para se concretizarem. Todos podemos, de facto, transportar o mal. E, sem querermos, contaminar e sermos contaminados só de tocar. Numa espécie de triunfo trágico do concreto sobre a metáfora.
 Sim, estamos cheios de medo! De adoecer, de morrer, de perder pessoas rigorosamente imprescindíveis. De, sem querer, espalharmos o mal. Sim, estamos cheios de medo! Da avalanche económica, que já se anuncia no horizonte, tornar tudo muito mais trágico ainda. E estamos tristes. Pela vida suspensa, vista da janela. Por não podermos ir a casa, ao hospital ou ao lar ver, confortar, tocar, cheirar, abraçar, beijar muitos dos que mais gostamos. Pior, porque alguns de nós, dramaticamente, já perderam pessoas preciosas sem, sequer, se poderem despedir delas.
 E estamos zangados! Um vírus, vindo do nada, virou-nos a vida do avesso e deu corpo a um batalhão de fantasmas!
 E estamos lábeis. Comovemo-nos com os gestos de humanidade que, felizmente, se têm multiplicado nos hospitais, nas empresas, nas varandas e janelas, o que, a juntar a números razoavelmente bons (como se o sofrimento coubesse em contagens) no boletim da DGS, nos fazem acreditar que “vai ficar tudo bem”. Para, logo a seguir, números maus, na informação diária, ou uma notícia de um foco de infeção perto de quem nos é imprescindível, nos dinamitar toda a esperança e deixar à beira de um ataque de nervos.
  Talvez não haja muito como não se sentir medo, tristeza ou raiva. E ainda bem! Ou não fossem as emoções que (também) nos tornam humanos! A ser assim, o grande (enorme!) desafio será ficarmos isolados sem ficarmos sozinhos com o nosso medo, a nossa tristeza ou a nossa raiva. Ou não fosse a relação (pessoal, familiar, profissional e comunitária) a fórmula (pouco mágica, muito complexa, mas de eficácia humanamente comprovada!) para acolher o sofrimento e desbravar avenidas de esperança e coragem na luta dramática que travamos (como nas lutas dramaticamente dolorosas que muitas pessoas travam, independentemente da pandemia).  

PS: Não haverá muito como toda esta vertigem de emoções não se multiplicar muitas e muitas vezes, nos profissionais de saúde, nos profissionais dos lares de idosos e de todos os outros setores da linha da frente. Sim, um subsídio de risco talvez seja o mínimo que lhes devemos!