segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Os Professores que encantam … também choram.

  A Maria é professora vai para 14 anos. Entre horários completos, parciais e substituições conseguiu colocação em todos os anos letivos. Quase sempre longe de casa. Este ano não é diferente: faz 160 Km diários para se poder multiplicar entre as turmas do 5º e 6º ano, o marido e a filha de 6 anos.
  Chegada a hora de concorrer ao Ensino Superior, o entusiasmo pela arte de ensinar falou mais alto do que as vozes preocupadas que a aconselhavam a optar por uma área com um futuro mais seguro. O Curso, que fez com afinco, só fez crescer dentro de si o entusiasmo. Com o estágio, o encantamento ganhou corpo na certeza interior de ter feito a escolha certa: “se eu ainda tinha dúvidas, nesse ano percebi de vez: eu nasci para ensinar. Eu nasci para aprender com os alunos a ensinar melhor”, diz com um brilhozinho nos olhos.
  Apesar de todos os constrangimentos, incertezas laborais e inseguranças pessoais, a Maria, ano após ano, renovava o encantamento de ajudar crianças a crescer por via do conhecimento do mundo e de si próprias. A competência, a exigência e a firmeza, o afeto e a disponibilidade que os alunos lhe reconheciam, sempre lhe foram permitindo gerir as turmas da melhor forma possível. Não que não tivesse tido dificuldades sérias ao longo deste percurso. De adolescentes com problemas de comportamento muito acentuados, a crianças com problemas persistentes de insucesso escolar, de tudo foi vivendo um pouco, sem nunca desistir de se sintonizar com estes miúdos, procurando, sempre, todos os recursos para os ajudar a reencontrarem-se num desenvolvimento saudável.
  Sem saber bem como, tudo mudou: “sempre fui uma mulher de sangue na guelra. Podia estar cansada sim, mas ia sempre para a Escola com entusiasmo. Podia estar cansada, sim, mas vinha para casa cheia de entusiasmo para abraçar o meu marido e a minha filha. Já não me reconheço. Já não sou a mesma. Para onde foi a paixão por ensinar? Para onde foi a Maria que nunca desistia dos alunos, mesmo os mais problemáticos? Pior, onde está a Maria que via no abraço do marido um porto seguro? Dantes, quando eu estava triste, falava, falava, falava com ele e sentia que ali, no seu abraço, tudo se resolvia. Agora fecho-me. Sinto que ele já não está lá para mim. Ou sou eu que já não o sei procurar. Estamos distantes. Ou estamos distantes ou estamos a discutir. Não estão nada fáceis as coisas entre nós. Até com a minha filha, tenho menos paciência. Tudo me irrita. Preparar aulas, levar a filhota ao parque, os almoços de família em casa dos meus pais e dos meus sogros. Tudo me irrita. Depois sinto-me culpada. Durmo mal e ando sempre mal disposta. Não tenho energia para nada. Eu que tinha sempre energia para tudo! E foi por isso que decidi: basta! Está na hora de procurar ajuda. Eu quero voltar a sentir-me a mulher viva, com sangue na guelra, que apesar de todos os medos, sempre me senti”.

  Quantas vezes, entre as exigências desmesuradas de um trabalho que devia entusiasmar mais do que entediar (perdendo-se em burocracias desnecessárias, por exemplo), e a complexidade de compatibilizar tudo isso com uma vida pessoal e familiar já de si complexa, as pessoas não se vão, devagar devagarinho, desencontrando dos seus recursos saudáveis? Quantas vezes, entre a espuma dos dias e a urgência do imediato, as pessoas não fazem por calar (varrendo, invariavelmente, para debaixo do tapete) tudo aquilo que a natureza humana não permitirá nunca que deixemos de sentir? Sempre que assim é, estaremos muito mais próximos – creio - de ficarmos dominados por emoções por pensar que, ao mesmo tempo que alimentam uma espécie de sentimento de solidão - de quem se vê sozinho com as emoções que tenta não sentir (como se isso fosse possível…), não pensar e não comunicar - contaminam todas as áreas da nossa vida. Semeando enfado e ressentimento onde devia haver entusiasmo. Plantando angústia e desamparo onde devia crescer relação e vida. Num ciclo vicioso que urge quebrar. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.  

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ainda Paris: os monstros também são humanos… por muito que nos custe.

    Ainda a tragédia de Paris. Alguns de nós (por medo, creio) apressaram-se, de forma mais aberta ou mais velada, a associar os atentados da eterna Cidade Luz aos refugiados. Não, muitos de nós não esperaram sequer pela confirmação de que o suposto passaporte sírio é mesmo verdadeiro. Não passou, sequer, pela cabeça da maioria de nós que se pudesse tratar do passaporte de uma das vítimas da carnificina no Bataclan. Porque, claro, não há como um cidadão sírio gostar de heavy metal. Só poderia ser, claro está, o passaporte de um terrorista que, para além das bombas e da Kalashnikov, fez questão de levar a sua identificação consigo para facilitar o cruzamento de dados à polícia.
   Outros, de entre nós, apressaram-se, a culpar os serviços secretos e as falhas na segurança. Afinal de contas tinham havido 1001 avisos e isto não podia ter acontecido. E não podia mesmo. É uma tragédia. Um terror. O mal feito coisa em si. Outros, ainda, apressaram-se a associar o terror aos muçulmanos em geral, como se o mal fosse um exclusivo dos crentes em Alá.
   Perante tamanho terror, esta cisão do mundo entre bons e maus ou entre competentes e incompetentes em matéria de segurança, até pode servir para, num primeiro momento, circunscrever o medo e tornar o sofrimento um bocadinho menos insuportável: o mal estaria bem identificado, teria uma cara e poderia, por isso, ser vencido para sempre. Seria, afinal de contas, só investir nos serviços secretos (por mais que isso seja, evidentemente, necessário) e combater os “maus” (por mais que isso seja, evidentemente, uma necessidade urgente).
   Mas, há mais de 100 anos, aprendemos com Freud que o bem e o mal, assim como a saúde mental e a doença são muito mais polos de um contínuo - relacionado, em boa medida, com a humanidade com que tivemos ou não oportunidade de crescer - do que categorias isoladas (resultantes, as mais das vezes, de um “defeito de fabrico”) que dividem o mundo em branco e preto.
   Por muito que fosse mais fácil dar um rosto ao mal (fosse ele uma etnia ou uma confissão religiosa), a verdade é que tenhamos nós nascido em Portugal, na Síria, na Suécia, nos subúrbios cinzentões de Paris ou Londres, no seio de uma família pobre ou de uma família com sobrenome pomposo, somos todos feitos da mesma matéria. Não há, por isso, qualquer razoabilidade na ideia de que os muçulmanos, por serem muçulmanos, serão mais propensos ao terrorismo. Infelizmente, a maldade feita terror, não é um exclusivo de nenhuma etnia ou confissão religiosa (basta lembrar o cidadão norueguês que disparou indiscriminadamente sobre um acampamento de jovens ou o piloto alemão que assassinou muitas dezenas de pessoas despenhando, aparentemente de forma propositada, o avião da Germanwings).
   A este propósito, dizia-me, por estes dias, um amigo mais velho (que, há um par de décadas, em trabalho, palmilhou, de lés a lés, e vezes sem conta, países como o Irão e o Iraque): “estás a ver o que é um miúdo pobre de uma aldeia perdida no deserto. O horizonte dele é onde o sol se põe. Não tem posses para comprar uma mulher”. Qualquer manifestação mínima de sexualidade - “olhar, só olhar para um corpo feminino (porque a cara está coberta pela burka) – é severamente punida. Não pode beber álcool nem tem qualquer outra fonte de prazer mundano. Não tem qualquer perspetiva de futuro que não seja o de tentar sobreviver dia após dia… estás a ver: um miúdo destes – que não é ninguém e, pior, que não pode sequer sonhar ser seja o que for - não está mais suscetível a ser aliciado por um grupo terrorista? Acenam-lhe com a cenourinha de se tornar importante, com o acesso ao contacto com as mulheres… quanto mais não seja depois de morrer…”. Presumo que sem saber, este bom amigo trouxe-me ao pensamento os teóricos da vinculação que, há 60 ou 70 anos, sustentaram aquilo que hoje, em pleno séc. XXI, ainda é uma “verdade” muito consistente e que, grosso modo, se poderia resumir na ideia de que o sentimento de se ser amado (independentemente da latitude onde se nasce, cresce ou morre) é uma necessidade primária, tão básica quanto uma alimentação saudável. Até que ponto (nas aldeias do deserto, no centro ou na periferia de uma qualquer capital Europeia) miúdos muitíssimo desorganizados e desamparados, não estarão mais suscetíveis de aderir a organizações terroristas que lhes dão a ilusão – muito distorcida e muito doentia, é certo – do sentimento de pertença, de se sentirem valorizados, protegidos e até amados?
   Estou, com isto, a querer desculpabilizar, de forma velada, comportamentos tão hediondos? De modo nenhum! Não vejo como não considerar que têm, sem dúvida, uma dimensão muito significativa de responsabilidade pessoal e que, portanto, uma aproximação punitiva e securitária (sem contemplações) é fundamental na luta contra o terrorismo (seja ele de que natureza for).
   Mas, evidentemente, a complexidade do fenómeno do terrorismo não se compadece com lógicas simplistas e causalidades lineares. Se, na linha de Freud, assumirmos que somos todos feitos da mesmíssima matéria, e com os teóricos da vinculação, que todos precisamos de nos sentir amados (com a sintonia, o colo e as regras que todo o amor implica) tanto quanto precisamos de uma alimentação saudável, então, talvez valha a pena perder algum tempo com a hipótese de que a adesão à violência hedionda talvez seja mais provável sempre que, reiteradamente, não encontramos (nas relações próximas, em primeiro lugar, mas na comunidade em geral também) nenhuma via saudável que simbolize, um bocadinho que seja, o sentimento de se ser contido (no sentido que Bion lhe dava) e amado.
   Perdoem-me a “lamechice”, mas não resisto a citar, a este respeito, o Nélson Mandela (ele que sendo, com inteiríssima justiça, um dos símbolos maiores do melhor que a humanidade alguma vez foi capaz de fazer, não deixou, durante um curto período do início do seu percurso público, de ser um defensor da violência feroz como arma contra violências maiores): “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

PS: como acho que, simbolicamente, diziam as pessoas que saiam do Estádio de França, ao entoarem, emocionadas, a Marselhesa ou todas aquelas que se disponibilizaram para, naquele fatídica noite, acolherem turistas perdidos no caos, em suas casas, estou convicto de que o medo não vencerá! 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Generosidades, medos e outros apelos.

   A Maria tinha tido, naquela manhã, uma consulta médica a propósito de um problema incómodo, que a deixava muito embaraçada. Imaginava-a, por isso, mais cabisbaixa nesse dia. Assim tem sido, nas últimas semanas, de cada vez que tem de se confrontar com a sua condição médica. Só voltaria a arrebitar quando tudo passasse, vaticinara há um par de semanas.
   Chegou à mesma hora de sempre. Mas, ao contrário do que eu imaginara, vinha solta, de peito cheio e olhar vivo. Conta-me que apanhou um médico, “já meio velhote, com ar de avô, está a ver?”, que lhe explicou, detalhadamente, a evolução expectável do seu quadro clínico, que a ouviu e que foi capaz de antecipar algumas das suas angústias e embaraços. “Senti que o médico estava ali mesmo comigo, sabe?”. Continua: “e isso fez-me sentir muito bem. Serenou-me. Voltei para o trabalho e lembrei-me que uma das minhas colegas andava a ler um livro que se chama Justiça Generosa ou qualquer coisa assim. Andei todo o dia a pensar nisso. Nos gestos de generosidade. No gesto de generosidade que aquele médico com ar de avô que conta histórias teve para comigo. E em muitos gestos generosos que foram tendo para comigo ao longo da vida. E em como isso me faz bem. E em como quando as pessoas repetem os gestos de generosidade para connosco, mesmo que, por algum motivo, deixem de fazer parte do nosso círculo de relações, nos acompanham para sempre, como uma espécie de farol que nos guia os passos. E em como ser generosa é muito diferente de ser boazita. Sabe, pensando bem, a esta distância, eu acho que não o procurei só para me ajudar com o pânico em que me deixava a ideia de ter de dar formação aos meus colegas... Pensando bem, a esta distância, eu acho que também queria que me ajudasse a ser menos boazita e mais generosa. Acho que, no trabalho, os meus colegas, o meu chefe, todos falam de mim como a boazita. É melhor ser boazita do que outras coisas, mas soa assim um bocado a “totó”. E eu não quero ser “totó” nenhuma! Acho que queria que me ajudasse a dar um murro na mesa quando vêm, injustamente, para cima de mim. A dizer que não quando sinto que devo dizer que não. Sem culpabilidades nem medos do que possam pensar ou dizer. Sabe, em muitas das coisas boazitas que fiz, acho que não estava a ser tão generosa assim. Os gestos de generosidade são diferentes. Estamos mesmo ali com as pessoas. Tocamos-lhes a alma. Os gestos de generosidade fazem-nos bem. Não servem para acalmar culpabilidades e medos. Vêm de dentro. São genuínos. Acho que é por isso que aproximam as pessoas”. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.