segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ainda Paris: os monstros também são humanos… por muito que nos custe.

    Ainda a tragédia de Paris. Alguns de nós (por medo, creio) apressaram-se, de forma mais aberta ou mais velada, a associar os atentados da eterna Cidade Luz aos refugiados. Não, muitos de nós não esperaram sequer pela confirmação de que o suposto passaporte sírio é mesmo verdadeiro. Não passou, sequer, pela cabeça da maioria de nós que se pudesse tratar do passaporte de uma das vítimas da carnificina no Bataclan. Porque, claro, não há como um cidadão sírio gostar de heavy metal. Só poderia ser, claro está, o passaporte de um terrorista que, para além das bombas e da Kalashnikov, fez questão de levar a sua identificação consigo para facilitar o cruzamento de dados à polícia.
   Outros, de entre nós, apressaram-se, a culpar os serviços secretos e as falhas na segurança. Afinal de contas tinham havido 1001 avisos e isto não podia ter acontecido. E não podia mesmo. É uma tragédia. Um terror. O mal feito coisa em si. Outros, ainda, apressaram-se a associar o terror aos muçulmanos em geral, como se o mal fosse um exclusivo dos crentes em Alá.
   Perante tamanho terror, esta cisão do mundo entre bons e maus ou entre competentes e incompetentes em matéria de segurança, até pode servir para, num primeiro momento, circunscrever o medo e tornar o sofrimento um bocadinho menos insuportável: o mal estaria bem identificado, teria uma cara e poderia, por isso, ser vencido para sempre. Seria, afinal de contas, só investir nos serviços secretos (por mais que isso seja, evidentemente, necessário) e combater os “maus” (por mais que isso seja, evidentemente, uma necessidade urgente).
   Mas, há mais de 100 anos, aprendemos com Freud que o bem e o mal, assim como a saúde mental e a doença são muito mais polos de um contínuo - relacionado, em boa medida, com a humanidade com que tivemos ou não oportunidade de crescer - do que categorias isoladas (resultantes, as mais das vezes, de um “defeito de fabrico”) que dividem o mundo em branco e preto.
   Por muito que fosse mais fácil dar um rosto ao mal (fosse ele uma etnia ou uma confissão religiosa), a verdade é que tenhamos nós nascido em Portugal, na Síria, na Suécia, nos subúrbios cinzentões de Paris ou Londres, no seio de uma família pobre ou de uma família com sobrenome pomposo, somos todos feitos da mesma matéria. Não há, por isso, qualquer razoabilidade na ideia de que os muçulmanos, por serem muçulmanos, serão mais propensos ao terrorismo. Infelizmente, a maldade feita terror, não é um exclusivo de nenhuma etnia ou confissão religiosa (basta lembrar o cidadão norueguês que disparou indiscriminadamente sobre um acampamento de jovens ou o piloto alemão que assassinou muitas dezenas de pessoas despenhando, aparentemente de forma propositada, o avião da Germanwings).
   A este propósito, dizia-me, por estes dias, um amigo mais velho (que, há um par de décadas, em trabalho, palmilhou, de lés a lés, e vezes sem conta, países como o Irão e o Iraque): “estás a ver o que é um miúdo pobre de uma aldeia perdida no deserto. O horizonte dele é onde o sol se põe. Não tem posses para comprar uma mulher”. Qualquer manifestação mínima de sexualidade - “olhar, só olhar para um corpo feminino (porque a cara está coberta pela burka) – é severamente punida. Não pode beber álcool nem tem qualquer outra fonte de prazer mundano. Não tem qualquer perspetiva de futuro que não seja o de tentar sobreviver dia após dia… estás a ver: um miúdo destes – que não é ninguém e, pior, que não pode sequer sonhar ser seja o que for - não está mais suscetível a ser aliciado por um grupo terrorista? Acenam-lhe com a cenourinha de se tornar importante, com o acesso ao contacto com as mulheres… quanto mais não seja depois de morrer…”. Presumo que sem saber, este bom amigo trouxe-me ao pensamento os teóricos da vinculação que, há 60 ou 70 anos, sustentaram aquilo que hoje, em pleno séc. XXI, ainda é uma “verdade” muito consistente e que, grosso modo, se poderia resumir na ideia de que o sentimento de se ser amado (independentemente da latitude onde se nasce, cresce ou morre) é uma necessidade primária, tão básica quanto uma alimentação saudável. Até que ponto (nas aldeias do deserto, no centro ou na periferia de uma qualquer capital Europeia) miúdos muitíssimo desorganizados e desamparados, não estarão mais suscetíveis de aderir a organizações terroristas que lhes dão a ilusão – muito distorcida e muito doentia, é certo – do sentimento de pertença, de se sentirem valorizados, protegidos e até amados?
   Estou, com isto, a querer desculpabilizar, de forma velada, comportamentos tão hediondos? De modo nenhum! Não vejo como não considerar que têm, sem dúvida, uma dimensão muito significativa de responsabilidade pessoal e que, portanto, uma aproximação punitiva e securitária (sem contemplações) é fundamental na luta contra o terrorismo (seja ele de que natureza for).
   Mas, evidentemente, a complexidade do fenómeno do terrorismo não se compadece com lógicas simplistas e causalidades lineares. Se, na linha de Freud, assumirmos que somos todos feitos da mesmíssima matéria, e com os teóricos da vinculação, que todos precisamos de nos sentir amados (com a sintonia, o colo e as regras que todo o amor implica) tanto quanto precisamos de uma alimentação saudável, então, talvez valha a pena perder algum tempo com a hipótese de que a adesão à violência hedionda talvez seja mais provável sempre que, reiteradamente, não encontramos (nas relações próximas, em primeiro lugar, mas na comunidade em geral também) nenhuma via saudável que simbolize, um bocadinho que seja, o sentimento de se ser contido (no sentido que Bion lhe dava) e amado.
   Perdoem-me a “lamechice”, mas não resisto a citar, a este respeito, o Nélson Mandela (ele que sendo, com inteiríssima justiça, um dos símbolos maiores do melhor que a humanidade alguma vez foi capaz de fazer, não deixou, durante um curto período do início do seu percurso público, de ser um defensor da violência feroz como arma contra violências maiores): “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

PS: como acho que, simbolicamente, diziam as pessoas que saiam do Estádio de França, ao entoarem, emocionadas, a Marselhesa ou todas aquelas que se disponibilizaram para, naquele fatídica noite, acolherem turistas perdidos no caos, em suas casas, estou convicto de que o medo não vencerá! 

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