A Maria é professora vai para
14 anos. Entre horários completos, parciais e substituições conseguiu colocação
em todos os anos letivos. Quase sempre longe de casa. Este ano não é diferente:
faz 160 Km diários para se poder multiplicar entre as turmas do 5º e 6º ano, o
marido e a filha de 6 anos.
Chegada a hora de concorrer ao Ensino Superior, o
entusiasmo pela arte de ensinar falou mais alto do que as vozes preocupadas que
a aconselhavam a optar por uma área com um futuro mais seguro. O Curso, que fez
com afinco, só fez crescer dentro de si o entusiasmo. Com o estágio, o
encantamento ganhou corpo na certeza interior de ter feito a escolha certa: “se
eu ainda tinha dúvidas, nesse ano percebi de vez: eu nasci para ensinar. Eu
nasci para aprender com os alunos a ensinar melhor”, diz com um brilhozinho nos
olhos.
Apesar de todos os constrangimentos, incertezas laborais
e inseguranças pessoais, a Maria, ano após ano, renovava o encantamento de ajudar
crianças a crescer por via do conhecimento do mundo e de si próprias. A competência,
a exigência e a firmeza, o afeto e a disponibilidade que os alunos lhe
reconheciam, sempre lhe foram permitindo gerir as turmas da melhor forma
possível. Não que não tivesse tido dificuldades sérias ao longo deste percurso.
De adolescentes com problemas de comportamento muito acentuados, a crianças com
problemas persistentes de insucesso escolar, de tudo foi vivendo um pouco, sem
nunca desistir de se sintonizar com estes miúdos, procurando, sempre, todos os
recursos para os ajudar a reencontrarem-se num desenvolvimento saudável.
Sem saber bem como, tudo mudou: “sempre fui uma mulher de
sangue na guelra. Podia estar cansada sim, mas ia sempre para a Escola com
entusiasmo. Podia estar cansada, sim, mas vinha para casa cheia de entusiasmo
para abraçar o meu marido e a minha filha. Já não me reconheço. Já não sou a
mesma. Para onde foi a paixão por ensinar? Para onde foi a Maria que nunca
desistia dos alunos, mesmo os mais problemáticos? Pior, onde está a Maria que via
no abraço do marido um porto seguro? Dantes, quando eu estava triste, falava,
falava, falava com ele e sentia que ali, no seu abraço, tudo se resolvia. Agora
fecho-me. Sinto que ele já não está lá para mim. Ou sou eu que já não o sei
procurar. Estamos distantes. Ou estamos distantes ou estamos a discutir. Não
estão nada fáceis as coisas entre nós. Até com a minha filha, tenho menos paciência.
Tudo me irrita. Preparar aulas, levar a filhota ao parque, os almoços de
família em casa dos meus pais e dos meus sogros. Tudo me irrita. Depois
sinto-me culpada. Durmo mal e ando sempre mal disposta. Não tenho energia para
nada. Eu que tinha sempre energia para tudo! E foi por isso que decidi: basta! Está
na hora de procurar ajuda. Eu quero voltar a sentir-me a mulher viva, com
sangue na guelra, que apesar de todos os medos, sempre me senti”.
Quantas vezes, entre as exigências desmesuradas de um
trabalho que devia entusiasmar mais do que entediar (perdendo-se em burocracias
desnecessárias, por exemplo), e a complexidade de compatibilizar tudo isso com
uma vida pessoal e familiar já de si complexa, as pessoas não se vão, devagar devagarinho,
desencontrando dos seus recursos saudáveis? Quantas vezes, entre a espuma dos
dias e a urgência do imediato, as pessoas não fazem por calar (varrendo,
invariavelmente, para debaixo do tapete) tudo aquilo que a natureza humana não
permitirá nunca que deixemos de sentir? Sempre que assim é, estaremos muito
mais próximos – creio - de ficarmos dominados por emoções por pensar que, ao
mesmo tempo que alimentam uma espécie de sentimento de solidão - de quem se vê
sozinho com as emoções que tenta não sentir (como se isso fosse possível…), não
pensar e não comunicar - contaminam todas as áreas da nossa vida. Semeando enfado
e ressentimento onde devia haver entusiasmo. Plantando angústia e desamparo onde
devia crescer relação e vida. Num ciclo vicioso que urge quebrar.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Não. Não cheguei a entediar-me com o trabalho porque fui procurando alento em outros projetos sempre ligados aos alunos, mas passei uns quatro a cinco anitos num limbo entre o desânimo, a depressão e o desapontamento em relação a ela. A sorte foi que tenho aversão a medicamentos e nunca me auto mediquei. Valeu-me a família, valeram-me alguns muito bons amigos e um médico de família atento que me mandou verificar um pequeno/grande problema fisiológico que não me deixava dormir e que, com duas pequenas cirurgias se resolveu.
ResponderEliminarSim, olhar nos olhos contou e muito. Na medicina, na educação e na alma, não há nada como a presença física, o contacto visual direto e o toque.
Concordo totalmente.
As tecnologias têm o seu lugar (cada vez maior), mas só o seu lugar... Podem ajudar, mas não bastam. Obrigada por mais um ótimo texto.
Muito obrigado eu, por mais um comentário simpático.
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