segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Generosidades, medos e outros apelos.

   A Maria tinha tido, naquela manhã, uma consulta médica a propósito de um problema incómodo, que a deixava muito embaraçada. Imaginava-a, por isso, mais cabisbaixa nesse dia. Assim tem sido, nas últimas semanas, de cada vez que tem de se confrontar com a sua condição médica. Só voltaria a arrebitar quando tudo passasse, vaticinara há um par de semanas.
   Chegou à mesma hora de sempre. Mas, ao contrário do que eu imaginara, vinha solta, de peito cheio e olhar vivo. Conta-me que apanhou um médico, “já meio velhote, com ar de avô, está a ver?”, que lhe explicou, detalhadamente, a evolução expectável do seu quadro clínico, que a ouviu e que foi capaz de antecipar algumas das suas angústias e embaraços. “Senti que o médico estava ali mesmo comigo, sabe?”. Continua: “e isso fez-me sentir muito bem. Serenou-me. Voltei para o trabalho e lembrei-me que uma das minhas colegas andava a ler um livro que se chama Justiça Generosa ou qualquer coisa assim. Andei todo o dia a pensar nisso. Nos gestos de generosidade. No gesto de generosidade que aquele médico com ar de avô que conta histórias teve para comigo. E em muitos gestos generosos que foram tendo para comigo ao longo da vida. E em como isso me faz bem. E em como quando as pessoas repetem os gestos de generosidade para connosco, mesmo que, por algum motivo, deixem de fazer parte do nosso círculo de relações, nos acompanham para sempre, como uma espécie de farol que nos guia os passos. E em como ser generosa é muito diferente de ser boazita. Sabe, pensando bem, a esta distância, eu acho que não o procurei só para me ajudar com o pânico em que me deixava a ideia de ter de dar formação aos meus colegas... Pensando bem, a esta distância, eu acho que também queria que me ajudasse a ser menos boazita e mais generosa. Acho que, no trabalho, os meus colegas, o meu chefe, todos falam de mim como a boazita. É melhor ser boazita do que outras coisas, mas soa assim um bocado a “totó”. E eu não quero ser “totó” nenhuma! Acho que queria que me ajudasse a dar um murro na mesa quando vêm, injustamente, para cima de mim. A dizer que não quando sinto que devo dizer que não. Sem culpabilidades nem medos do que possam pensar ou dizer. Sabe, em muitas das coisas boazitas que fiz, acho que não estava a ser tão generosa assim. Os gestos de generosidade são diferentes. Estamos mesmo ali com as pessoas. Tocamos-lhes a alma. Os gestos de generosidade fazem-nos bem. Não servem para acalmar culpabilidades e medos. Vêm de dentro. São genuínos. Acho que é por isso que aproximam as pessoas”. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

2 comentários:

  1. Adorei este testemunho. Pensei fazer actos de generosidade, mas afinal sou uma "boazita" que se acaba de assumir e ainda não dei a volta a isso... Não dou murros na mesa, só na minha mesa de cabeceira que é onde ninguém me vê ou ouve. Digo que sim quando quero dizer não. E a única vez que tive coragem de bater com a porta, depois de um grande desgaste psicológico no trabalho, fui tratada como uma "miúda" que não se sabe sacrificar pelo trabalho. Realmente, vivemos para agradar demasiado aos outros...

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  2. Muito obrigado pela generosidade do seu comentário.

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