domingo, 19 de março de 2017

Em nome do pai!

  O “olha que eu digo ao teu pai e ele diz-tas” foi condensando, por demasiado tempo, um modelo de parentalidade (e de relação entre homens e mulheres e entre estes e as crianças) mais ou menos clivado: a mãe protegia, cuidava e dava colo. O pai punha o pão na mesa e era o rosto da Lei e da ordem familiar. A mãe era dócil, afetuosa e tinha um colo do tamanho do mundo. O pai era duro, distante e nunca se comovia. Afinal, “homem que é homem não chora” e emoções, se as tinha, era sua obrigação escondê-las atrás de um ar grave e sisudo.
  A Psicologia e a Psicanálise Clássicas desbravaram avenidas na compreensão das relações humanas, da parentalidade e das relações familiares. Mas, por mais que, em tantos e tantos aspetos, tenham estado à frente do seu tempo (dando um empurrão ao mundo criativo que pula e avança), não deixaram (inevitavelmente!) de também beber influências de uma ideia clivada de família, organizada em torno de um “polícia bom” que protegia e cuidava, e de um “polícia mau” e distante que garantia a Lei. Talvez por isso, o pai foi sendo conceptualizado como o terceiro, que abria a relação (mais ou menos fusional) mãe-filho à diferença e à realidade. Não sendo avanço pequeno na ciência nem função pouco importante a do pai, não deixava, ainda assim, de secundarizar o seu papel no desabrochar das extraordinárias competências do bebé… Mas, num mundo que pula e avança, há muito que muitos modelos da Psicologia e da Psicanálise Contemporâneas (com conceitos como o de “tríade originária” de Chbani e Perez-Sanchez, por exemplo) me parecem sugerir que modelos integrados de família (e de sociedade) são mais amigos da saúde e do crescimento.
  Num mundo que pula e avança as mulheres foram trabalhar e, felizmente, exigem a justíssima igualdade de direitos (por mais que, em pleno séc. XXI, ainda hajam deputados do Parlamento Europeu a questionar estes princípios básicos). Num mundo que pula e avança, felizmente, os homens exigem, cada vez mais, o direito de cuidar, de se comoverem e de serem próximos e afetuosos (lembrando, aos mais distraídos, que o seu coração também bate do lado esquerdo, ou que a condição masculina não é, por si só, sinónimo de menos competências parentais na hora, por exemplo, de regular responsabilidades parentais, em caso de separação). Neste contexto (como em muitos outros), menos clivagem será – tenho para mim – mais saúde. Nesta lógica, tal como o colo e a abertura à diferença e à realidade deve ser a multiplicar por cada um dos pais, também a Lei Familiar deverá – parece-me - resultar de um consenso mínimo entre eles, tendo, evidentemente, os dois a obrigação de a fazer aplicar.

  Quanto mais abraçarmos a diferença, com a consciência de que, no essencial (sejamos homens ou mulheres, muçulmanos ou cristãos, do norte da Europa ou da África Subsariana) somos todos feitos da mesma massa (como muito bem lembrava um slogan muito feliz na luta contra a xenofobia: “Todos diferentes, todos iguais!”), mais inclusiva, integradora e amiga da saúde e do crescimento será a família (na sua composição tradicional ou nas “novas” composições que resultam do crescente respeito pela orientação sexual das pessoas). 

domingo, 5 de março de 2017

Vai-te embora... mas eu preciso de um abraço!

A Maria vai todos os dias à Faculdade beber café. Os claustros são bonitos e é lá que encontra boa parte dos seus amigos. Mas às aulas não tem ido muito. Especialmente desde o semestre passado quando, pela primeira vez na vida, chumbou num exame. Deixou de estar a par das cadeiras, dos livros, das sebentas e dos apontamentos. Sai todas as noites, em grupos alternados. Nenhum deles aguenta o seu ritmo imparável. Acorda quase todos os dias ressacada dos packs de vodka ou dos shots com que procura adormentar mágoas e medos. Alguns amigos gabam-lhe a pedalada tal a agilidade com que salta de bar em bar, de copo em copo, de ganza em ganza… numa agitação que parece não ter fim. Mas há muito que a Catarina percebera que a Maria talvez ande mais movida a angústia do que a desejo. Especialmente desde o jantar de curso em que a Maria, num pranto desamparado, falou, de forma mais ou menos desconexa, dos pesadelos com que acorda, invariavelmente, a chorar; do modo como se sente feia e desinteressante; da relação distante com a mãe desde que perdeu o pai; da culpa e do medo de não ser capaz de investir o curso ou da catadupa de envolvimentos amorosos em que se foi, invariavelmente, sentindo usada e humilhada. E a Maria sociável, popular, confiante e despreocupada aos olhos mais desatentos era agora olhada, pela primeira vez em muito tempo, para lá do show off dos seus decotes e do seu nariz levantado. No dia seguinte, com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar, apressou-se a justificar o desamparo com o último shot de tequila que “bateu mal”. Mas a Catarina não desarmou. Levou-a consigo de fim-de-semana, à sua aldeia deTrás-os-Montes. O fim-de-semana no campo teve um sabor agridoce para a Maria.  Confortou-a, muito mais do que se atrevera a imaginar, haver alguém que, tanto tempo depois, não desiste de espreitar para dentro de si. Tanto que deu por si a confiar à Catarina uma ou outra “paranoia” (como lhes chama) que nunca se atrevera a confiar a ninguém. Mas dilacerava-a a distância colossal entre o calor relacional que sentia na vida da Catarina e a marca de superficialidade e indiferença das suas próprias relações pessoais e familiares. Talvez tenha este sido um fim-de-semana decisivo para, pela primeira vez em muito tempo, equacionar a proximidade relacional (que tolerava mal, ainda) como alternativa à sucessão de fugas para a frente a que há muito se entregara. Talvez a Catarina a tenha ajudado a largar a semente para, meses mais tarde, ousar pedir ajuda no contexto de uma relação terapêutica a que viria, paulatinamente, a confiar-se.


Talvez a sucessão de fugas para a frente, mascaradas, tantas vezes, numa hiperatividade boémia (mas, também, de trabalho por exemplo, como nos workaholic) não seja muito mais do que uma tentativa desesperada de adormentar uma angústia (e um desamparo…) profunda e mais ou menos generalizada. A superficialidade relacional que, tantas e tantas vezes, acompanha este registo (numa solidão acompanhada tão bem cantada pelo Jorge Palma, na sua Frágil: dou-me com toda a gente, mas não me dou a ninguém), parece, porventura, funcionar como a barreira que faltava à proximidade das relações. Tudo parece passar-se como se, nestas pessoas, há muito viesse a definhar a esperança de haver alguém ao pé de quem seja possível sentir a dor sem claudicar. E, com ela, por maioria de razão, se fosse estilhaçando também a fé no poder transformador (e redentor!) da relação (a que Bion chamava fé nos vínculos).  Mas, quem, desta forma ainda muito encriptada é certo, consegue ainda assim soltar uma espécie de: “vai-te embora… que eu preciso de um abraço”… terá todas as competências para, aos poucos, resgatar os “super-poderes” transformadores da relação. Assim tenha quem não desiste de a olhar dentro. Assim tenha quem não desista de ajudar a configurar, com palavras e com histórias a dor… e o desejo!


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.