A Maria vai todos os dias à
Faculdade beber café. Os claustros são bonitos e é lá que encontra boa parte
dos seus amigos. Mas às aulas não tem ido muito. Especialmente desde o semestre
passado quando, pela primeira vez na vida, chumbou num exame. Deixou de estar a
par das cadeiras, dos livros, das sebentas e dos apontamentos. Sai todas as
noites, em grupos alternados. Nenhum deles aguenta o seu ritmo imparável. Acorda
quase todos os dias ressacada dos packs de vodka ou dos shots com que procura
adormentar mágoas e medos. Alguns amigos gabam-lhe a pedalada tal a agilidade
com que salta de bar em bar, de copo em copo, de ganza em ganza… numa agitação
que parece não ter fim. Mas há muito que a Catarina percebera que a Maria
talvez ande mais movida a angústia do que a desejo. Especialmente desde o
jantar de curso em que a Maria, num pranto desamparado, falou, de forma mais ou
menos desconexa, dos pesadelos com que acorda, invariavelmente, a chorar; do
modo como se sente feia e desinteressante; da relação distante com a mãe desde
que perdeu o pai; da culpa e do medo de não ser capaz de investir o curso ou da
catadupa de envolvimentos amorosos em que se foi, invariavelmente, sentindo
usada e humilhada. E a
Maria sociável, popular, confiante e despreocupada aos olhos mais desatentos
era agora olhada, pela primeira vez em muito tempo, para lá do show off dos seus decotes e do seu nariz
levantado. No dia seguinte, com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar, apressou-se
a justificar o desamparo com o último shot de tequila que “bateu mal”. Mas a
Catarina não desarmou. Levou-a consigo de fim-de-semana, à sua aldeia deTrás-os-Montes. O fim-de-semana no campo teve um sabor agridoce para a
Maria. Confortou-a, muito mais do que se
atrevera a imaginar, haver alguém que, tanto tempo depois, não desiste de
espreitar para dentro de si. Tanto que deu por si a confiar à Catarina uma ou outra “paranoia” (como lhes chama) que nunca se atrevera a confiar a ninguém.
Mas dilacerava-a a distância colossal entre o calor relacional que sentia na
vida da Catarina e a marca de superficialidade e indiferença das suas próprias
relações pessoais e familiares. Talvez tenha este sido um fim-de-semana
decisivo para, pela primeira vez em muito tempo, equacionar a proximidade relacional
(que tolerava mal, ainda) como alternativa à sucessão de fugas para a frente a
que há muito se entregara. Talvez a Catarina a tenha ajudado a largar a semente
para, meses mais tarde, ousar pedir ajuda no contexto de uma relação
terapêutica a que viria, paulatinamente, a confiar-se.
Talvez a sucessão de fugas para a
frente, mascaradas, tantas vezes, numa hiperatividade boémia (mas, também, de trabalho
por exemplo, como nos workaholic) não
seja muito mais do que uma tentativa desesperada de adormentar uma angústia (e
um desamparo…) profunda e mais ou menos generalizada. A superficialidade
relacional que, tantas e tantas vezes, acompanha este registo (numa solidão
acompanhada tão bem cantada pelo Jorge Palma, na sua Frágil: dou-me com toda a
gente, mas não me dou a ninguém), parece, porventura, funcionar como a
barreira que faltava à proximidade das relações. Tudo parece passar-se como se,
nestas pessoas, há muito viesse a definhar a esperança de haver alguém ao pé de
quem seja possível sentir a dor sem claudicar. E, com ela, por maioria de
razão, se fosse estilhaçando também a fé no poder transformador (e redentor!) da
relação (a que Bion chamava fé nos vínculos).
Mas, quem, desta forma ainda muito
encriptada é certo, consegue ainda assim soltar uma espécie de: “vai-te embora…
que eu preciso de um abraço”… terá todas as competências para, aos poucos, resgatar
os “super-poderes” transformadores da relação. Assim tenha quem não desiste de a
olhar dentro. Assim tenha quem não desista de ajudar a configurar, com palavras
e com histórias a dor… e o desejo!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Maravilhoso, claro que a história construída pode estender-se para lá de gentes do show off... a fuga em frente, quanto a relações, também se apresenta com diferentes "sintomas". Difícil, mesmo, é encontrar quem diagnostique.
ResponderEliminarMuito obrigado pela simpatia do seu comentário, Lucinda Costa!
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