domingo, 24 de fevereiro de 2019

O papão não, por favor!


As crianças vivas fazem birras! E ainda bem! Birras no supermercado, birras para não ir para a cama, para não comer a sopa, para não fazer os TPC, para ver mais televisão ou não largar o tablet, etc., etc.  E, muito compreensivelmente (atendendo às mil e uma preocupações que vão tendo de gerir – do trabalho às contas para pagar, das negativas do mais velho às birras do mais novo, passando pela saúde da avó ou pela perda de um amigo próximo, por exemplo) nem sempre os pais conseguem estar tão disponíveis e seguros quanto são capazes, na hora de mostrar as linhas vermelhas que devem balizar as reivindicações das crianças.

 Nessas circunstâncias, uma ou outra vez, os pais apelam ao papão, ao senhor do saco, ao senhor polícia ou até ao lado revanchista do Pai Natal (capaz de mirrar toda a magia com um só saco de carvão). E isso é batota! Uma batota compreensível, mas batota! Ao delegarem a sua autoridade nestas entidades mais ou menos estranhas estarão, nas entrelinhas, a dizer aos filhos qualquer coisa como: “por mim até podias comer só chocolates e nunca largar o tablet… mas contra o papão ou o homem do saco, eu não posso fazer nada”. Ora, se as crianças vão olhando (e bem!) para os pais como tendo um toque de super-heróis, capazes de tudo para as proteger, talvez não faça muito sentido dizer-lhes, ainda que nas entrelinhas: “olha que afinal não. Não sou bem eu que tenho a força necessária para te proteger e te segurar venha o que vier; para fazer por ti as escolhas que ainda não podes fazer sozinho, ou para te pôr no sítio quando exageras. Há um tal de papão ao pé do qual eu não posso lá grande coisa”. A ser assim, as crianças precisarão de superpoderes sim!  Mas dos superpoderes humanos dos pais que têm dúvidas e também se enganam; que às vezes também estão cansados e preocupados, mas que, em circunstância alguma deixam de, em nome próprio, fazer valer o que consideram ser o melhor para os filhos.

domingo, 10 de fevereiro de 2019

Namorar o Amor!


Não havia música de fundo. (Só burburinho). Nem glamour. (Só fumo no ar). Nem flores. (Só amontoados de beatas nos cinzeiros). Talvez não fosse, de todo, o cenário que se imagina para ouvir histórias de amor. Mas foi ali, no último dia do ano, bem no meio de uma sala de fumo de um grande aeroporto internacional, que um jovem australiano, com a preciosa ajuda de uma bem-disposta senhora holandesa, mostrou que não há guetos nem interditos para as histórias de amor. O jovem viajava há mais de 24 horas. Aquela era a última escala antes de aterrar em Milão, bem a tempo de passar o ano com a belíssima italiana que mostrava, com orgulho, à senhora holandesa de cabelo grisalho e olhar ternurento. A senhora, num tom afetuoso e genuinamente preocupado, pergunta-lhe se a belíssima italiana sabia que ele ia. Ele descansa-a, assegurando-lhe que ela sabe, até porque queria que ela morresse de amor… mas nunca de ataque cardíaco! Explica-lhe que se apaixonara pela Francesca há um punhado de meses, em Adelaide, na Austrália e que, desde então, se tem desunhado para, literalmente, dar volta ao mundo só para poder cair no seu abraço.
   O burburinho tinha, entretanto, desaparecido. Não havia, naquela exígua sala de fumo, quem conseguisse tirar os olhos (e os ouvidos) do entusiasmo daquele jovem, de olhar brilhante e gestos inquietos. Uns olhavam-no com uma muito humana pontinha de inveja (como que perguntando-se: “mas porque é que nunca fiz uma coisa destas?”), mas com admiração (“Que grande tipo!”; “Que grande história!”), ternura (como que reconhecendo naquela bela história as próprias histórias em que, mesmo com menos pompa e muito menos circunstância, terão dado a “volta ao mundo” para namorar o amor) e esperança (como que, inspirando-se, para fazerem, mais e mais vezes, das suas relações amorosas uma espécie de volta ao mundo a dois). Outros, porém, não disfarçavam o sorrisinho cínico. Com a aspereza e a inveja de quem, há muito, desistiu de reclamar (e de lutar!) por quem lhe dê a volta ao mundo… todos os dias!

   Que o S. Valentim (com ou sem flores, presentes ou jantares à luz das velas) sirva para desconfinar as histórias de amor! E, com elas, a esperança, o desejo, a reivindicação e a luta (!) pelas voltas ao mundo que só o Amor consegue dar!

domingo, 3 de fevereiro de 2019

Estrelas guia e outros milagres!


  Consumidor voraz de cinema, o Pedro costumava falar de si através dos filmes e séries, na (pouco) secreta esperança que eu o pudesse ajudar a ligar os enredos e as personagens, com os novelos da sua vida. Uma das suas personagens favoritas era o Giusepe, pequeno herói de um velho filme, que uma tia avó lhe dera há muitos Natais atrás. De sorriso reguila e joelhos esfolados de tanto trepar às árvores e saltar muros, o Giuseppe foi apanhado de rompante pelo terror Nazi, como milhões de outros meninos (e graúdos) de origem judia. Sempre que a mãe ouvia as passadas pesadas dos soldados a subir a velha escadaria de madeira que dava acesso à casa, escondia-o numa espécie de alçapão secreto. E dizia-lhe, numa voz terna, mas firme: “não tenhas medo!” A cena repetiu-se vezes sem conta, até que, numa manhã fria de janeiro, Giuseppe, escondido no alçapão, foi o único judeu do bairro a não ser levado pelos soldados das botas pesadas. Acabou por ser adotado por uma vizinha, amiga da família, aos cuidados de quem cresceu. Nunca mais largou o amuleto da sorte que a mãe, adivinhando o que viria a acontecer, lhe tinha dado, logo após a primeira visita dos soldados Nazis. E sempre (mas sempre! enfatiza o Pedro) que se sentia assustado ou inseguro, recordava a voz terna e firme da mãe a dizer-lhe: “não tenhas medo”. O medo não desaparecia. Mas a coragem ganhava-lhe aos pontos (sublinha o Pedro).

 Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer fosse que queria pensar as personagens e as histórias da sua vida, arrumando-as e desarrumando-as as vezes que fossem necessárias, até encontrar quem lhe pudesse sussurrar, numa voz terna e firme: “não tenhas medo!” Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer fosse que todos precisamos de quem, dentro de nós, faça de amuleto da sorte, não se assuste com os nossos medos,  e nos ajude a serená-los, a pensá-los, a configurá-los em palavras, histórias e gestos... E que essas pessoas, mesmo acabando por partir (partindo-nos, com isso, o coração), são eternas, dentro de nós! Quais estrelas guia, vivem milhares de anos luz só para nos iluminar o caminho! Talvez o que o Pedro estivesse a querer dizer fosse que a audácia, a autonomia e o desejo nunca possam crescer à margem desta confiança básica (recordando Erikson) na relação.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.