domingo, 10 de dezembro de 2017

Adolescência, conflito e outros abraços!

 A D. Isaura sempre se virou entre dois trabalhos e muita fibra. Nunca suportou a ideia de que pudessem faltar oportunidades ao filho que, desde sempre, criara sozinha. E, valha a verdade, para além de uma certa comodidade material (mesmo que à custa de uma ginástica financeira de que só D. Isaura parecia ser capaz), o João foi crescendo com o conforto de sentir que havia na mãe qualquer coisa de muito parecido com a capa do super-homem. Talvez por isso tenha sido tão difícil para si escolher a área das Ciências, no Secundário. A mãe, muito influenciada pela vida abastada do advogado para quem trabalha desde os 16 anos, sempre o “empurrou” para o Direito. Mas, no 9º ano, teve um Professor admirável que lhe mostrou como a Física o ajudava a entender melhor os motores e as motas de que tanto gostava. E isso terá sido determinante para subir exponencialmente a nota de Físico-Química, e fazer da área Científica uma escolha mais ou menos natural.
  A D. Isaura até já se tinha conformado com a ideia de que o seu João iria trocar o Direito pela Engenharia Mecânica, mas estava-lhe a custar muito vê-lo crescer. Não gostava da sua barba à hipster, e menos ainda do discurso inflamado com que o João punha em causa alguns dos referenciais religiosos e sociopolíticos com que o educara. Habituada que estava a que, em quase tudo, o João fizesse da sua palavra lei, sentia-se afrontada a cada opinião marcada do filho… que destoasse da sua. Como se sentisse que, com a adolescência, o João tivesse despromovido a mãe de mulher admirável com toques de super-herói a antiquada, desinformada e dispensável! Como se, de repente, ao pé da namorada e dos amigos do João, tivesse medo de não passar agora de uma 3ª ou 4ª figura. Ela, que sempre se virara entre dois trabalhos, para que nunca lhe faltasse nada…
  Na ânsia de procurar o seu lugar no mundo, o João exagerava (especialmente com a mãe) no tom com que vestia algumas das suas opiniões (exageramos mais quando estamos inseguros, não é?). Mas mais do que ter razão, talvez o que procurasse mesmo fosse a aprovação (e o orgulho!) da mãe por estar, de forma viva e afoita, a procurar o seu caminho (profissional, ideológico, amoroso, etc.). Mas mais do que ter razão, talvez o que procurasse mesmo fosse a sabedoria (e o colo!) da mãe para o amparar nesta conquista (encantadora e assustadora ao mesmo tempo) da autonomia. Mas mais do que ter razão, talvez o que precisasse mesmo fosse de perceber que sejam quais forem as suas escolhas (amorosas, ideológicas, profissionais, etc.), o colo da D. Isaura continuará sempre (!) a ter um lugar só para si!

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Se é desejável que os pais sonhem os filhos (investindo-os das expectativas que não deixarão de alimentar as suas competências), não é menos importante que abram espaços de autonomia para, no lugar de potenciais conflitos de lealdades (e culpas mais ou menos difusas por não assumirem como seus sonhos que outros sonharam por si), surgirem escolhas e projetos autónomos.
  Talvez precisemos todos (adolescentes e adultos) de perceber que nunca(!) os pais deixam de ser fundamentais, mas que crescer nunca(!) é decalcar o que esperam de nós!
 Talvez precisemos todos (adolescentes e adultos) de perceber que não há autonomia sem vinculação (segura), nem vinculação (segura) sem autonomia! Afinal de contas, nunca(!) se cresce à margem da diferença, da subjetividade e da relação!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

O melhor de nós não chega?

 O Marco é um tipo de coração grande e abraço sentido. Para lá de muitas outras qualidades, talvez essas tenham sido determinantes para construir um amor vivo (mas excessivamente medroso, a espaços) com a Maria. Inteligente e sensato é um profissional muito diferenciado. Apesar do gosto pelo trabalho e das competências que indubitavelmente tem, está muito longe de gerir a vida profissional com o prazer e a serenidade que gostaria (e que, de resto, as suas qualidades justificariam). Tudo se passa como se se sentisse, permanentemente, num conflito entre o desejo de arriscar, intervir, inovar… e o medo de que tudo possa falhar rotundamente.
 De cada vez que ousa sobrepor o desejo ao medo, as suas competências acabam por sobressair, valendo-lhe ganhos profissionais muitos significativos. Mas não, sem antes, sentir o coração apertado, muito para lá do razoável. Não, sem antes, dar mil voltas à cabeça, para se certificar que cumpriu escrupulosamente tudo o que são normas, diretrizes e regulamentos. Não, sem primeiro, antever os mil e um cenários (que quase nunca se confirmam) em que as chefias o repreenderão abertamente ou, de forma disfarçada, o colocarão no lugar, lembrando-lhe que ainda tem que comer muitas rasas de sal, antes de poder ousar. Como lhe lembra a Maria, entre a firmeza e a ternura, tudo se parece passar como se sentisse na obrigação de estar, permanentemente, ora a pedir licença, ora a pedir desculpa… por ser bom!
    À boleia deste seu lado medroso, lembra vários episódios, mais ou menos longínquos, em que foi sentindo este seu lado criativo, audaz, consequente e corajoso… desvalorizado, apoucado, ridicularizado até. Recua ao campo pelado da sua infância, para falar da sua estreia em jogos oficiais. Não cabia em si de tão vaidoso que estava com as chuteiras que comprara de propósito para aquele dia, à custa das poupanças que conseguira com uma gestão muito apertada da semanada. Ao intervalo ainda estava 0-0 e o Marco, entre as parcas oportunidades e a pressão de fazer tudo bem e depressa, não tinha, ainda, conseguido destacar-se. O treinador tinha acabado de lhe aconselhar mais serenidade na hora de ter a bola no pé, mas tinha-lhe elogiado o espírito de luta. Nada de grave, portanto… até que o pai entra pelo balneário adentro e, sem mais, se abeira dele e o aconselha a dar o lugar a um colega, “que seja menos trapalhão. Já estás muito cansado. É melhor saíres”. Como se isso não bastasse para, num ápice, transformar o seu brilho nos olhos num olhar cabisbaixo e embaciado (de vergonha, desilusão e raiva contida), o pai continuou num tom jocoso: “ai achavas que eram as chuteiras que fazem os jogadores”? Escusado será dizer que, na 2ª parte, as inseguranças do Marco acerca das suas capacidades futebolísticas se multiplicaram por mil!
   Nada que o tenha feito sentir de modo tão diferente assim quando, uns bons anos mais tarde, tentava intervir - com a sua visão, porventura exagerada, mas atenta e interessada - nas tertúlias de política nacional em que algumas vezes se transformavam os jantares de família. Diz-me, comovido: “parece que ainda consigo ver o ar de desdém do meu pai, secundado pelo meu avô ou pela minha mãe. E aquele pfu, enquanto revirava os olhos, que antecedia o: tens muito que aprender. Cresce e aparece! que me deixava furioso! Sabe, eu acho que não queria ter razão. No fundo, acho que só queria mostrar que já era crescido, que me interessava pelos mesmos assuntos que eles, que pensava e tinha opinião sobre as coisas. No fundo, no fundo… acho que só queria que eles se orgulhassem de mim!”

     Talvez seja sempre um bocadinho assim. Quanto mais o caldo afetivo e as oportunidades educativas o potenciam, mais os recursos se vão tornando robustos com o crescimento. Mas quando, ao mesmo tempo, se vai crescendo com a ideia de que o desejo de ousar (mesmo que se tenha de falhar muitas vezes, para fazer cada vez melhor!), está mais próximo de valer reprovação (mais ou menos aberta) do que encorajamento, talvez as pessoas se tornem mais inseguras em relação às suas qualidades! Quando o melhor das suas competências, dos seus sonhos e do seu desejo de crescer parecem valer mais crítica e apoucamento do que manifestações claras de orgulho, talvez as pessoas se tornem (todas!) um bocadinho mais medrosas… na hora de fazer pela vida. 
   Talvez por isso seja tão importante quem possa de fazer de Maria nas nossas vidas para, de uma assentada, se orgulhar de nós e nos ajudar a elaborar esta espécie de angústia de castração (como lhe foi chamando a Psicanálise) que, tantas vezes, vezes de mais, teima em inibir o melhor das nossas competências… e do nosso entusiasmo!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 5 de novembro de 2017

Para onde vai a tristeza?

   "Vinha estrada fora, a chorar desalmadamente. Não havia trânsito e conduzia em piloto automático. Liguei à Carla, a contar-lhe que 20 minutos antes o Pedro tinha acabado com o nosso casamento, com uma frieza no olhar que nunca lhe vira! Sim, o Pedro que ainda no fim de semana tinha estado comigo a jantar na casa dela, como se nada se passasse! Precisava de falar com alguém! A Carla gosta muito de mim. Muito mesmo. Mas ficou muito atrapalhada por me sentir assim. Fica sempre, nestas coisas. Disse-me para ter calma. Não falámos mais de cinco minutos. A seguir liguei à Francisca. Ouviu-me. Ouviu-me em silêncio. E chorou comigo. Sentia-a a chorar do outro lado, sabe? Parecia que a conseguia ver a chorar. E ainda hoje lhe agradeço! Desapareceu-me a tristeza, e a raiva, e o desespero, e todo aquele sufoco de quem tinha acabado de perder o chão e já mal sabia o caminho para casa, quanto mais o que fazer à vida? Não, não desapareceu. Mas a Francisca aguentou a minha dor. Não se atrapalhou. Não me disse para ser forte nem para ter calma. Ficou ali, a ouvir-me e a chorar comigo! Sentiu comigo! Acho que lhe vou ser grata por isso, para sempre!"
  
   Mas porque é que damos tão pouco espaço à tristeza? Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um não penses mais nisso ou um tens de pensar positivo? Como se o otimismo florescesse por decreto; ou o que pensamos e sentimos pudesse, num passe de mágica, ser controlado por um qualquer botão on/off!
   Porque é que, perante a dor do outro, tantas e tantas vezes não nos sai mais do que um tens de ser forte, tens de reagir? Como se reagir não fosse, antes de mais, olhar o sofrimento nos olhos, equacionar a perda, senti-la, chorá-la, enraivecermo-nos com ela… para a podermos pensar. Como se este trabalho de luto não fosse crucial para alavancar os movimentos proativos que permitam ir transformando o sofrimento em desejo e esperança, primeiro, e em projeto e ação intencional, depois.
   A ser assim, a tristeza (como a revolta) será uma reação natural (e saudável!) à dor que, inevitavelmente, algumas circunstâncias de vida acabam por despertar. Já a falta de um espaço relacional contentor (ao pé de quem é que podemos ficar abertamente tristes? A quem é que posso confiar a minha dor?) que a permita acolher, sentir e pensar será o terreno fértil para a inibição das suas manifestações abertas. Nestas circunstâncias, sempre que, reiterada e repetidamente, bloqueamos a expressividade do que sentimos, podemos estar a acumular, dentro de nós, uma espécie de “resíduo tóxico” (em que se vão transformando as emoções que fazemos por não pensar) que, à falta de espaços relacionais que o possam revitalizar, tenderá a colonizar mais e mais recursos saudáveis, deixando-nos, por isso, mais expostos à (psico)patologia.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 29 de outubro de 2017

Isso é tudo muito bonito, mas como é que a psicoterapia pode ajudar?

  Talvez o imaginário colectivo esteja, ainda, muito dominado por uma ideia positivista de ciência, e a ideia de saúde ainda muito acoplada a um modelo biomédico, de causalidade linear. A ser assim, o sofrimento mental só poderia resultar, de forma unívoca, de umas quantas reacções bioquímicas disfuncionais, afigurando-se a medicação psicotrópica como a única forma de corrigir estes desequilíbrios.
  Mas somos, felizmente, um bocadinho mais complexos do que isso! A actividade cerebral determina, em larguíssima medida, a nossa experiência, mas parece cada vez mais claro que a experiência e as relações humanas influenciam, elas próprias, aspectos muito importantes do funcionamento cerebral! É o que parece, por exemplo, decorrer de um estudo dirigido por Daniel Wiswesde, em que pacientes deprimidos melhoram significativamente os sintomas depressivos, normalizando, ao mesmo tempo, o funcionamento do sistema límbico (área cerebral muito associada ao processamento das emoções), depois de um punhado de meses de psicoterapia dinâmica.
  Quer isto dizer que a biologia cerebral não é fundamental no desenrolar da vida mental, ou que a medicação não pode ser muito útil para suster o sofrimento mental? De modo nenhum! Significará antes que a lógica da causalidade linear é curta na aproximação à complexidade humana.
  Há mais de 100 anos aprendíamos com Freud que a nossa vida é muito condicionada por emoções que fazemos por não pensar. Aprendíamos com o pai da Psicanálise que o normal e o patológico são, no essencial, quantidades diferentes das mesmas qualidades humanas. Os cognitivistas mostraram-nos como as experiências de vida podem moldar o modo como aprendemos a pensar nas mais diversas situações. Os modelos sistémicos aclararam a importância da comunicação, da complexidade e da causalidade circular. A Psicanálise contemporânea mostra-nos o lugar central da relação (desde a vida intrauterina, sabemo-lo hoje) na construção do funcionamento mental (em todos os seus aspetos mais e menos saudáveis).
  Se tentarmos intersectar todas estas portas de entrada, talvez possamos dizer que, em muitas circunstâncias, a ansiedade ou os sintomas depressivos, por exemplo, decorrerão tanto de equívocos e desencontros continuados na relação com o outro e com a verdade do que se sente (ou de experiências mais ou menos traumáticas) como de desequilíbrios bioquímicos (que, muitas das vezes, mais do que causa, serão, porventura, o correlato biológico do sofrimento).
  Será aqui que, a meu ver, entrará a utilidade da psicoterapia. Não apenas como uma oportunidade para as pessoas se sentirem genuinamente escutadas. Mas como um espaço relacional que acolhe as angústias de que vão procurando fugir (por as sentirem insuportáveis ou demasiado dolorosas, por exemplo), ao mesmo tempo que as legenda e liga com os aspectos essenciais das suas vidas. Esta nova relação, ao desconstruir alguns aspectos dos padrões relacionais (que, em boa medida, para o bem e para o mal, as trouxeram até ao ponto onde se encontram), funcionará, assim, como uma espécie de tubo de ensaio para uma relação mais clara e genuína com aquilo que sente (procurando pensar e gerir as emoções em vez de, continuadamente, as tentar silenciar), o que não deixará de se traduzir nas relações da “vida real” (tornando-as mais confiantes e confiáveis, mais criativas, assertivas e próximas) com as pessoas, o trabalho, as desilusões, a esperança ou o desejo.

(Texto originalmente publicado no P3, do Público)

domingo, 8 de outubro de 2017

(Des)atentos também somos (todos) nós!

  Para além de um ar mais ou menos entediado, o Francisco trazia, por intermédio dos pais, um role de queixas. De entre as que mais os preocupavam talvez a irrequietude e a falta de atenção, (na escola e na hora de fazer os TPC) fossem as que mais se destacassem.
  Era só a segunda vez que o atendia. Como na primeira, entrou na sala com um monumental ar de frete. Irrequieto e de olhar fugidio, parecia não ouvir uma palavra do que eu lhe dizia. Na tentativa de (estimulando a competitividade) esbater um bocadinho esta distância, propus-lhe uma partida de futebol (no campo improvisado em que, rapidamente, transformámos a sala). Tinha pinta e pés de jogador da bola, mas jogava com a mesma displicência com que fingia não ouvir uma palavra do que lhe dizia. A dada altura, na tentativa de subir a fasquia da competitividade (empatando o jogo), facilitei, de forma bem disfarçada (achava eu!) a entrada de um golo seu. Nesse exato momento, o Francisco agarra a bola com as mãos, aproxima-se de mim, olha-me nos olhos e atira-me um arrepiante: “tu deixaste entrar o golo de propósito”!

    A irrequietude e a desatenção terão sempre o mesmo valor?
  A vivacidade irrequieta e a desatenção da criança que, invariavelmente, “se despista” nos exercícios de matemática sempre que está para acontecer, no recreio, o dérbi do futebol escolar deverá mesmo merecer preocupação de maior?
  Se é expectável que um adulto numa situação de stresse intenso (a eminência do desemprego ou a espera pelo resultado de um exame médico muito importante, por exemplo) possa não parar quieto corredor acima, corredor abaixo, sem cabeça para mais nada, é assim tão estranho que uma criança possa reagir com irrequietude e desatenção face a fontes de stresse mais ou menos continuadas?
  Se, antecipando uma apresentação que poderá valer a promoção há muito desejada, é plausível que um adulto tenha dificuldade em concentrar-se numa ou noutra tarefa, não será compreensível que uma criança possa ficar agitada e desatenta perante o medo avassalador, mais ou menos omnipresente e muito pouco realista (!), de poder ser incompetente para a aprendizagem?
  Não será mais difícil para todos, crianças e adultos, estar sereno e atento quando, por algum motivo, se está angustiado? Ter quem nos ajude a conter e a traduzir em palavras essa angústia não nos tornará, a todos, mais competentes para a atenção?

  Os manuais de diagnóstico têm vindo a tornar-se cada vez mais precisos na organização de sinais e sintomas em diagnósticos. Serão, por isso, uma ferramenta importante para qualquer técnico de saúde mental. Já a transferência, mais ou menos direta, de alguns conceitos e diagnósticos (como a “perturbação da hiperatividade/défice de atenção”, por exemplo) para o imaginário coletivo sem a mediação de um enquadramento compreensivo que os possa balizar, parece-me contribuir muito pouco (até pelo risco de multiplicação de equívocos de que daí poderá resultar) para que conheçamos e ajudemos as crianças (os adolescentes ou os adultos) a crescer melhor!
  Se há, hoje, um consenso alargado de que o modelo biomédico, marcadamente positivista, é curto na aproximação à complexidade humana, talvez possamos considerar que tão importante como estar atento a sintomas (como a hiperatividade e a desatenção), será compreender o que poderão significar nas dinâmicas interna e relacional daquela criança e daquela família (escola ou comunidade).

 Afinal de contas, como (re)aprendi naquele dia, com o Francisco: por mais desatentos que possamos parecer à primeira vista, somos todos(!) muito sensíveis ao pormenor!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 24 de setembro de 2017

Um estranho que conhecemos bem!

   O João acabara de sair de casa, para a Faculdade. Com a sua partida, e a dos dois irmãos mais velhos, que lhe precedera, a casa parecia, agora, grande demais para a Maria e para o Pedro. O crescimento dos filhos, os projetos profissionais e o buliço do dia-a-dia foram-lhes ocupando a vida. Já mal se lembravam do que é ter espaços a dois. Na verdade, nunca se sentiram no direito de deixar os filhos com os avós para tirarem para si um fim-de-semana que fosse, como se investir na relação de casal (e na realização pessoal) não fosse, ao mesmo tempo, investir na parentalidade. A princípio ainda saiam para jantar fora no aniversário de casamento. Mas, com o passar dos anos, até isso se foi perdendo. E agora, 25 anos depois do nascimento do primeiro filho, viam-se, novamente, a sós. As noites interrompidas pelo pesadelo do João, pela febre do Bernardo ou pela tosse do Lucas foram sendo substituídas, à medida que cresciam, pela azáfama de acordar três adolescentes birrentos pela manhã; pelas correrias para as atividades extracurriculares ou pelas chamadas de atenção (mais ou menos inflamadas) com o tempo que gastavam ao computador ou ao telemóvel. E agora, 25 anos depois, viam-se, de novo, a sós. Com tempo para irem ao cinema ou verem filmes enroscados no sofá; com a possibilidade de jantarem fora e até de reservarem um ou outro fim-de-semana romântico. Mas já nem a Maria nem o Pedro sabiam bem como se fazia. Há muito que o abraço não saía naturalmente. E, quando saía, parecia não encaixar, deixando-os, a ambos, mais desconfortáveis do que enternecidos. Tudo se ia passando como se, sem o buliço da gestão diária da educação dos filhos, se sentissem, a cada dia, um bocadinho mais uns estranhos que já se conheceram bem. Com mais espaço a sós, a verdade é que as conversas (cada vez mais raras) se cingiam às preocupações com os filhos e à gestão da vida financeira da família. Começaram por desencontrar ritmos de sono, com a Maria e o Pedro a ficarem, à vez, até tarde entre a tv e o computador para, rapidamente, o desencontro se estender até ao ponto de mal falarem e nunca dormirem juntos.

  Talvez as relações (todas as relações) sejam sempre um bocadinho assim. Morrem mais um pedaço, de cada vez que as omissões se tornam a regra que, aos poucos, vai transformando o outro num estranho que já conhecemos bem.
  Talvez as relações (todas as relações) sejam sempre um bocadinho assim. Expandem-se vários universos (tornando-se mais sólidas e próximas) sempre que não se poupa nas palavras e nos gestos para olhar bem dentro do outro (como, de forma muito bonita, nos lembra o Principezinho).

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 3 de setembro de 2017

Norma 4.0: o insustentável peso do dever!

  Sempre recaíram sobre si grandes expectativas e, em boa verdade, uma espécie de pressão alta para não manchar o bom nome da família. Talvez por isso, a Sofia foi crescendo mais habituada aos quadros de honra e aos elogios de professores e contínuos, do que às correrias do recreio. Não viriam a ser muito diferentes os tempos da Faculdade: dominava as sebentas e os apontamentos, mas sobre a organização do curso (contestada por muitos dos seus colegas), a subida das propinas ou o corte nas bolsas, que atirou alguns dos seus colegas para fora da Universidade, não tinha muito a dizer. Apesar de ser a distribuidora oficial de resumos impecavelmente organizados e, de com isso, ter aproximado muitos dos seus colegas (que, de resto, a olhavam com um certo respeito) parecia guardar sempre uma distância de segurança. Era agora (que estava longe dos pais), mais do que nunca, assolada por uma espécie de fantasma mais ou menos omnipresente: O que é que as pessoas iam dizer? Como se não se sentisse no direito de ir além, um bocadinho que fosse, do escrupuloso cumprimento das expectativas que, desde cedo, se habituou a seguir sem (aparentemente!) questionar.
  A conclusão do mestrado levou-a a uma empresa de renome. E a nunca menos de 12 horas de trabalho diário, mal remunerado (bem-vinda a este enorme “avanço” civilizacional em que se tem transformado o mercado de trabalho para jovens, no século XXI). Sempre disponível (muito mais do que qualquer um dos colegas com quem entrara na empresa) – para trabalhos (não remunerados) ao fim-de-semana, tarefas extra e telefonemas fora de horas, vivia exausta. Dava, ainda assim, por si a ser a primeira a oferecer-se para qualquer tarefa suplementar. E a zangar-se furiosamente (para dentro, claro está!), de cada vez que não sentia o seu esforço reconhecido. Toda esta ira, todavia, rapidamente se transformava num misto de contentamento e culpa (e em maior disponibilidade para o trabalho…), sempre que surgia um elogio das chefias; ou num sentimento de exaltação, sempre que os pais expunham, junto de tios e primos, o seu percurso académico e profissional sem mácula (ainda que, claro, não lhe pagasse as contas…). O ciclo (vicioso) ia-se renovando a cada ano, até que, o afastamento da Filipa (única amiga que ia mantendo por perto) a promoção da Carla (para a função que ela própria ambicionava) e a transferência do Francisco para a mesma função (bem remunerada, agora) numa empresa da concorrência, parecem ter ajudado a precipitar uma queda depressiva que a todos surpreendeu. A todos menos à Sofia que (fosse com as insónias; as constantes dores musculares e de cabeça que nenhuma condição médica, felizmente, justificara; o olhar cada vez mais mortiço; o distanciamento dos amigos e colegas; a hiperatividade laboral ou a ausência de fontes de prazer) há anos dela dava sinais mais ou menos encriptados. A todos menos à Sofia que (fosse com a distância de segurança que, ao deixá-la cada vez mais sozinha, em bom rigor, a foi expondo mais do que protegendo do sofrimento; fosse com o modo como foi pondo sempre o cumprimento da norma e da expectativa à frente da subjetividade e da autonomia, ou com a exaltação narcísica que retirava de cada elogio ao seu percurso certinho) há anos dela procurava fugir.

  Talvez seja sempre um bocadinho assim quando, invariavelmente, nos “protegemos” do que nos magoa e assusta com aquilo que, ao mesmo tempo, nos afasta do melhor das nossas competências. Esta espécie de patologia da adaptação (com que Sami-Ali enfatizou os perigos da substituição do imaginário e da subjetividade pela norma e pelo banal) ou de falso self (com que Winnicott enfatizou a força patogénica da adaptação excessiva à norma) até pode aportar, num primeiro momento, ganhos académicos e profissionais (e injeções de autoestima a eles associados). Mas parece, a prazo, desvitalizar a relação com o outro e com o mundo, deixando as pessoas mais à mercê do imenso e profundo vazio que este ciclo vicioso parece ir, paulatinamente, cavando (e que quaisquer circunstâncias dolorosas de vida acabarão, provavelmente, por desnudar). A ser assim, talvez só as relações que (re)criam mais do que repetem (a norma e a expectativa) possam preencher esse vazio com (inter)subjetividade, imaginário, espontaneidade, autonomia, conflito, diferença, desejo, esperança, projeto e ação intencional, preenchendo de vida (e de Amor!) as vidas!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 23 de julho de 2017

Mas afinal, para que servem as férias?

  Muitos são os que, por esta altura, vão suspirando pelas férias, enquanto vagueiam pelas fotos de areias finas e águas cristalinas, que teimam em invadir as redes sociais.  
   Com o Bernardo parece ser um bocadinho diferente. Casado e pai de duas filhas, não gosta das férias: “tirar férias é um tormento. Todos os anos vamos de férias para o Algarve. Quinze dias. A minha mulher e as miúdas querem ir para a praia, passear na marina à noite, fazer churrascos, essas coisas… Eu não aguento!Tenho de trabalhar! As coisas ficavam atrasadas. Quinze dias sem fazer nada é muito tempo. E elas depois andam sempre de má cara porque quero ficar em casa a trabalhar. Não entendem”.
   O Bernardo é um profissional de sucesso. Trabalhador incansável, tem uma vida financeira estável, que lhe permite manter uma boa casa, um carro familiar de alta cilindrada e um outro utilitário, uma casa de férias no Algarve, colégios caros e atividades extracurriculares para as filhas.
  Mas não só as férias que o inquietam. Os sábados passa-os a trabalhar. Aos domingos, depois do jogo de vólei das filhas (passado, claro, a responder a e-mails de trabalho no i-phone) e do almoço na casa dos pais ou dos sogros, esquiva-se para o escritório lá de casa, adiando, uma vez mais, o passeio de mão dada com a mulher, ao entardecer.
  À noite, por muito cansado que esteja, tem quase sempre grandes dificuldades em adormecer. Ao ar amuado da mulher por (quase) nunca o sentir ali, realmente perto dela, juntam-se as mil e uma preocupações de trabalho. Estão sempre presentes, mas teimam em agudizar-se quando apaga a luz.

  Talvez o que o Bernardo queira dizer com o seu apelo, mais ou menos encriptado, seja qualquer coisa como: transporto tanta angústia dentro de mim, que temo que a única forma de a ir fintando seja esta espécie de hiperatividade funcional. Parar (seja para estar na praia ou numa esplanada a gozar a brisa do entardecer) é ser, brutalmente, invadido por ela. Talvez o que o Bernardo queira dizer com o seu apelo, mais ou menos encriptado, seja que este registo agitado e hiper-funcional em que tem estado mergulhado, ao mesmo tempo que vai (cada vez menos) fintando a angústia, o vai afastando, cada vez mais, de quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos…) o pode ajudar a transformar a angústia em palavras, as palavras em histórias e as histórias em vida. Talvez o que o Bernardo queira dizer com o seu apelo, mais ou menos encriptado, não ande longe de um: ajude-me a entender e a transformar toda esta angústia, para parar de, à boleia do trabalho, fugir dela e, com isso, afastar quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos, etc.) me pode ajudar a desfrutar do trabalho, da esplanada, do pôr-do-sol… da vida.

  Num mundo muito centrado na ideia de sucesso, corremos o risco desta espécie de hiperatividade funcional ser valorizada. Num primeiro momento até pode, de facto, representar ganhos de produtividade. Mas é insustentável a prazo. Correr por gosto não cansa. Já correr por medo (o medo de que à falta de um registo híper-funcional que a sustenha, a angústia tome conta de tudo), tenho para mim, dá maus resultados, a prazo. Talvez por isso o ócio (dos passeios de mão dada na brisa da tarde, às jantaradas de amigos, passando pelas reuniões familiares ou pelo dolce fare niente) seja fundamental para nos apaixonarmos pelo trabalho, pelo prazer, pelas pessoas e pela vida!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais, está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 25 de junho de 2017

O teu bem faz-me tão mal!*

  Nunca, até olhar nos olhos do Pedro, se tinha permitido sentir borboletas na barriga. Daquelas à séria, que põem as pessoas a imaginar tontices (próprias de filmes de domingo à tarde) e quase fazem o coração sair pela boca. Mas durou pouco a Primavera…  Já o tinha ouvido, no bar, a insurgir-se contra a desregulação na alta finança. E, pior, para além da boémia (que conciliava bem com as sebentas) e do estilo alternativo, o Pedro andava nas manifestações, de megafone na mão, a gritar contra as propinas.
 Depressa as insónias tomaram conta das noites da Constança. Repetiam-se as vezes em que acordava, assustada, com a imagem do pai (secundado pelo acenar de cabeça da mãe) a dizer-lhe, com uma calma desconcertante: “A Universidade está cheia desses maltrapilhos. Vê lá o que arranjas para dar o nome aos teus filhos!” Deixou de ir ao bar e começou a evitar todo e qualquer espaço onde fosse provável dar de caras com o Pedro. Tinha de se concentrar nas sebentas. Afinal de contas, há muito que todos haviam decidido que ia ser uma advogada brilhante. Custou-lhe, ao início, mas foi-se habituando. Afinal, habituar-se ao que esperavam de si era o que fazia desde que se lembra. Foram-se os pesadelos, mas ficaram as insónias e, com elas, um olhar cada vez mais apagado.
  As notas brilhantes e os contactos familiares valeram-lhe um estágio, e depois um emprego num grande escritório de advogados. Acabou por casar com o filho de um amigo da família. Não que alguma vez, ao pé do marido, o coração lhe tenha querido saltar pela boca, como acontecera, há muitos anos, nos corredores da velhinha Faculdade de Direito.  Mas estava já em idade de casar e ter filhos…
  O ritmo frenético no trabalho, um casamento morno (funcional na aparência, mas sem vida nem rasgo) e a preocupação com os filhos foram-lhe preenchendo o tempo (e camuflando os vazios). Até que todo o longo e doloroso processo da doença do pai e, depois, a sua morte, precipitaram uma espécie de terramoto na estrutura que, durante anos e anos, se alicerçou na adaptação (quase sem falhas) ao que esperavam de si. “Como é que eu posso fazer o luto de alguém de quem eu nunca discordei? Como é que eu posso fazer o luto de alguém com quem nunca me zanguei?”, viria a perguntar-me (a perguntar-se, para ser mais exato), anos mais tarde.

  Precisamos de quem nos sonhe e nos invista de expectativas, para que, a partir delas, possamos, na diferença (e no conflito) que a relação implica, sonhar e empreender autonomamente a nossa vida. Já ter quem, invariavelmente, nos engula nos seus sonhos e nos seus ritmos, poderá deixar-nos reféns numa espécie de sequestro da subjetividade e da autonomia (próximos daquilo a que Winnicott chamou de falso self). Esta hiperadaptação funcional, ensina-nos Sami-Ali, faz-se acompanhar de um recalcamento da função do imaginário (posso sonhar-me se há quem, invariavelmente, me engula nos seus sonhos?) e de uma depressão caracterial (uma espécie de depressão contida, vazia de sintomas…e de vida), numa constelação que (como chamam a atenção a psicossomática de inspiração psicanalítica e a psiconeuroendocrinoimunologia), à medida que desvitaliza a vida mental parece fragilizar os equilíbrios biológicos do corpo.


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 4 de junho de 2017

E se eu não passar de ano?

  O teste de Português fê-lo suar mais do que a partida de futebol contra o 5º B, no intervalo grande. Como, de resto, o de Ciências, História e Inglês. Vinha de uma Escola pequenina, mesmo ao lado do infantário onde entrara com 3 anos. Os primeiros tempos não foram muito fáceis. Os pavilhões pareciam-lhe muito grandes e a fila para a cantina cheia de miúdos mais velhos, a lembrar-lhe que, à falta de melhor argumento, a idade (e a envergadura física) pode ser um posto. Reservado, integrou-se, ainda assim, relativamente bem na nova turma. As habilidades que saiam do seu pé esquerdo deram uma ajuda, vindo a garantir-lhe mesmo alguma popularidade lá para os lados do campo de futebol da Escola. Já na sala de aula, está a (muitas) léguas de se sentir um Ronaldo. A tensão com que enfrenta cada aula parece provocar-lhe dores de pernas mais intensas do que todas as correrias de um jogo de futebol, no intervalo de almoço. Entre o medo de, a qualquer momento, ser chamado ao quadro e o fantasma de ser realmente incapaz em matérias escolares, é difícil para o Carlos concentrar-se nas explicações da Professora de História ou de Ciências. Se a isso acrescentarmos a fúria que sente em silêncio sempre que a Professora elogia a inteligência e empenho da sua prima Mónica (aluna brilhante, pois claro!), fica difícil, para o Carlos, libertar espaço mental para se focar na aprendizagem. Em casa, perante a insistência constante dos pais para que estude (não resistindo a dar, uma ou outra vez, a prima Mónica ou a irmã mais velha como exemplo), deixou cair, entre lágrimas, um sofrido: “oh mãe, tu sabes que eu não dou para a Escola!”, expressão que, meses antes, ouvira, acidentalmente, numa conversa entre a avó e a mãe, a respeito do seu rendimento escolar.

  Se aprendemos com Bruner que a aprendizagem tem de ser enquadrada no contexto sociocultural (ligando conceitos teóricos com a realidade sociocultural e pessoal das crianças);  com João dos Santos que muito dificilmente há dificuldades de aprendizagem sem dificuldades emocionais;  com Bion (Gibello e tantos outros) que o desenvolvimento cognitivo nunca se faz à margem do desenvolvimento afetivo; se o relatório do Programa Nacional de Saúde Escolar(relativo ao ano letivo de 2014/2015) parece reconhecer a relação estreita entre sofrimento emocional e insucesso e indisciplina escolar, talvez faça sentido olharmos para os resultados escolares menos como uma espécie de decorrência direta do potencial cognitivo da criança (que, em muitas circunstâncias, parece não se traduzir nas performances que poderia alavancar) e mais como um aferidor do papel da Escola e da família na promoção da saúde (mental) e, com ela, da curiosidade e do conhecimento. A ser assim, talvez o Carlos precise tanto de estratégias pedagógicas (fundamentais, naturalmente), como de quem se sintonize com ele e o ajude a pensar tudo aquilo que vai sentindo mais ou menos em silêncio - do medo de ser incapaz que o parece bloquear, ao fantasma de desiludir pais e professores, passando pela fúria contida ao imaginar que, aos olhos dos professores, mas principalmente dos pais e da avó, nunca vai chegar aos calcanhares da prima ou da irmã – para, a partir daí, retirar contrapartidas práticas que o façam ir à luta na sala de aula como nunca deixa de ir no campo de futebol.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 7 de maio de 2017

Anda uma mãe a criar um filho para isto!

 As mães têm um dedo que adivinha e super-poderes de meter inveja a qualquer super-herói. É assim quando se é pequenino. Acho que é um bocadinho assim vida fora. Mesmo quando, com a necessidade de se marcar posição, se vocifera, entre dentes, que elas não entendem nada sobre nada.
  As mães são chatas, às vezes. É assim quando se é pequenino e obrigam a comer a sopa ou quando, na praia, fazem cumprir, até ao último segundo, as três longas e penosas horas de digestão. Acho que é um bocadinho assim vida fora, quando não se cansam de aconselhar mais uma camisola para o frio ou cuidado na viagem.
 As mães têm um colo do tamanho do mundo. Só delas. Versátil e aconchegado. É assim quando se é pequenino. Acho que é um bocadinho assim vida fora. Tanto mais quanto mais encoraja a perseguição entusiasmada de caminhos autónomos (amorosos, profissionais, etc.). Tanto mais quando nunca deixa de ser uma espécie de porto seguro, quando o mundo parece ficar de pernas para o ar.
  As mães (quase) nunca deixam de “meter o dedo no nariz” quando é preciso. É assim quando se é pequenino e se faz da birra de supermercado uma espécie de: “seguras-me mesmo quando eu faço todo este show off de meter todo o corredor dos brinquedos a olhar para nós?” em código Morse. Acho que é um bocadinho assim vida fora, se mais do que o mundo forem os filhos a insistirem em andar, mais do que a conta, de pernas para o ar. Afinal, “não anda uma mãe a criar um filho para isto”!

domingo, 23 de abril de 2017

Asas servem para voar!*

  Foi crescendo rodeada de gente. Para além dos pais e da irmã, a casa estava sempre cheia. Tios, avós, primos. Todos lhe iam gabando a beleza. Puxa à mãe, dizia a avó Amélia com orgulho, atropelada, invariavelmente, pelo pai que não se cansava de sublinhar a inteligência superior da irmã da Rita (que, evidentemente, só podia ter sido herdada de si). Talvez seja um bocadinho assim em algumas famílias. Ao mesmo tempo que dão o caldo afetivo para o crescimento, parece que precisam de acantonar as pessoas em prateleiras… como se, para a beleza, não contassem também a profundidade no olhar (de quem olha e de quem é olhado) e se, para a inteligência, não fizesse qualquer diferença para quê e, principalmente, com quem e para quem somos inteligentes!
  A Rita é efetivamente bonita. Mas é muitas outras coisas boas (inteligente e sensível, audaz e atenta ao outro) que talvez por serem tão poucas vezes olhadas por quem as poderia ajudar a florescer, foi emperrando, dentro de si. Entre o buliço das festas familiares e os grupos de amigos em que se movia, parece ter havido sempre um lado seu que nunca (!) deixou de se sentir numa espécie de solidão assistida. Especialmente depois da morte da avó Amélia, que olhava a sua beleza bem dentro dos olhos e parecia a única capaz de pôr travão aos excessos do pai. Também a mãe sempre se foi chegando à Rita (não deixando, com isso, morrer o melhor dos seus recursos). Mas foi-lhe faltando a vivacidade da avó para pôr o pai no sítio.  Claro que o pai sempre gostou da Rita! Mas raras foram as vezes em que encontrou a fórmula para a olhar dentro. Lembra, com a voz embargada, como o pai arranjava sempre forma de lhe roubar o protagonismo nos aniversários ou na festa de final de curso. Não se lembra de um único: “estou orgulhoso de ti”! E dos abraços mais apertados apenas tem memória de um, aquando da morte do seu avô paterno. Por mais que o que mais quisesse fosse puxar o pai para si, foi-se afastando ao ponto de, praticamente, não falarem se não no conforto do grupo ou por intermédio da mãe. E assim foi alimentando a ideia de que do pai podia apenas esperar dinheiro para o curso, as viagens e o carro. E o pai a ideia de que a Rita de si só queria o dinheiro para o curso, as viagens e o carro. E, de equívoco em equívoco, foi crescendo a distância entre quem suspira pela proximidade!
  Ainda assim, mais crescida agora, a Rita fez alguns movimentos de aproximação. Qual leoa, defendeu, com unhas e dentes, o pai quando o jornal local (e a destilaria de ódio pronto a cavalgar o lado negro das redes sociais) lhe caiu em cima. Entre o orgulhoso e o atrapalhado o pai, mais por falta de hábito do que por ingratidão, não foi capaz de agarrar o apelo. Como não fora meses mais tarde: a Rita rejubila com o projeto profissional que conseguira. Podia não ser, ainda, a oportunidade de realização profissional com que sonhara, mas era um passo. E era sobretudo, a oportunidade de mostrar a si própria e ao mundo (e muito em especial ao pai!)  que também sabe ser inteligente, trabalhadora e competente. Mas o orgulho que ia acumulando com os olhares orgulhosos da mãe e das tias… num ápice se transformou em sabor a vitória amarga! Os Parabéns orgulhosos que mais ansiava: os do pai, foram, afinal, dolorosamente substituídos por uma espécie de insinuação de que só conseguira o projeto… porque é bonita.

  Para primeira formulação, não está difuso de todo o seu pedido de ajuda: anda muito desistente e paralisada perante a ideia de futuro e as escolhas que teme não conseguir fazer. Anda triste. Profunda e dolorosamente triste. Apesar do grupo de amigos com quem sai à noite para os copos, sente-se sozinha. Profunda e dolorosamente sozinha.
  Com o decorrer tempo – ou, para ser mais preciso, à medida que, devagar devagarinho, nos vamos sentindo, e ligando enredos onde antes havia muito mais fuga para a frente do que pensamento – o apelo da Rita (e com ele a construção de soluções!) fica cada vez mais claro: Mas se eu tenho tantas saudades de conversas e relações profundas porque é que vou deixando morrer as amizades que me interpelam e vão ficando apenas aquelas mais feitas de memórias de infância e solidões assistidas (em noites agitadas de copos) do que de vínculos e cumplicidades? Mas se eu tenho tantas saudades de relações profundas porque é que fiz tudo para afastar os amores que me interpelaram até à medula e, agora mais do que nunca, estão bem vivos dentro de mim? Mas se eu não me quero deixar acantonar na imagem de mulher bonita, mas autocentrada e superficial (ter um closet pode ser um capricho engraçado, não é? Mas como metáfora de projeto de vida, de facto, não é lá grande coisa!) e quero, definitivamente, ser a mulher inteira, arrojada, sensível, cuidadora, competente, viva e lutadora que a minha avó Amélia via em mim, porque é que às vezes insisto nos tiques de diva e fico à espera que as amizades e os amores voltem num passe de mágica, sem reparação nem garra, como se merecesse tudo de mão beijada só por seu eu?! Ou, pior, como se não tivesse o direito a lutar pelo que realmente quero (!) e tivesse de me contentar com a memória e a saudade para preencher o closet! Sabe, acho que estou a precisar – qual Randall do This is us – de escrever num papel as 32 razões porque estou profundamente magoada com o meu pai (e, já agora as 8 ou 9 porque estou zangada com a minha mãe e as 14 ou 15 porque estou fula com a minha irmã) e de lhas dizer uma a uma, olhos nos olhos. E, a seguir, de lhe dizer que, por tudo isso, mereço muito mais pai! E que, para começar, quero, pelo menos, um abraço apertado por cada uma das razões da lista! E, depois disso, dizer-lhe que pode ter muito orgulho em mim porque apesar dos meus 23457 defeitos, estou decidida a virar o mundo do avesso para ser a mulher inteira que quero ser!
PS:Sim, ainda quero um closet! Mas a três dimensões porque a beleza está mais na profundidade do olhar de quem olha e é olhado do que no brilho dos vestidos!

*Título inspirado na Asas, dos GNR

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 2 de abril de 2017

(Não) quero tantas coisas que já (não) sei o que quero!

 O João está a conseguir, no 11º ano, manter a média bem acima dos 18. É barra a biologia, mas é a física e a matemática que mais o encantam. É neto de um médico diferenciado. Desde que começou a brincar com o estetoscópio do avô que todos lhe vaticinaram, mais ou menos em surdina, o futuro: seria nada mais nada menos que um médico brilhante. Essa sempre foi uma meta assumida por si. Sempre até há um par de meses, quando começaram a surgir as dúvidas. A paixão por aviões (não há modelo da Boeing ou da Airbus que não descreva com uma enorme naturalidade) e por máquinas em geral têm-no feito vacilar: a Engenharia Aeroespacial ou a Engenharia Mecânica têm, timidamente, vindo a surgir como hipóteses. Para além disso, diz o João: “eu até me via a investigar Biologia Molecular, por exemplo, mas ser médico mesmo, aquela vertente mais clínica de estar o dia todo a ouvir pessoas, levar com histórias desgraçadas, não sei se é para mim”.
  
 A Joana, da mesma turma, sente-se perdida. Foi, vagamente, alimentando a ideia de enveredar por Enfermagem ou, talvez, tentar Medicina em Espanha. Mas, tem vindo a descobrir que o estudo da biologia humana (que implicaria a Enfermagem ou a Medicina) não a encanta por aí além. Talvez o que mais a seduza num percurso muito ligado à saúde seja a dimensão de relação humana, a ideia de poder ajudar o outro, olhos nos olhos. Mas não morre de amores pelo frenesim de um Hospital ou de um Centro de Saúde. A psicóloga da Escola falou-lhe da área social (com Educação Social ou Serviço Social, por exemplo), como uma possibilidade para concretizar esta sua apetência para funções que possam implicar a relação como instrumento de trabalho.
            
 O percurso profissional é, ainda, fonte de sustento, como sempre foi. Mas é, cada vez mais, fonte de (in)satisfação e (não)realização pessoal. Tenho para mim, por isso, que quando se escolhe uma área profissional que compatibilize paixão e apetência, se estará mais próximo do trilho do sucesso e, mais importante, do caminho da realização e da satisfação profissional.
 Tenho, por isso, a ideia de que, em muitas circunstâncias, uma orientação vocacional cuidadosa e aprofundada é muito mais do que um capricho. Será, tenho para mim, uma ajuda valiosa para sustentar uma opção demasiado relevante para ser deixada ao acaso ou ao sabor de um impulso de momento. Sê-lo-á especialmente para todos aqueles para quem, no meio de tantas escolhas possíveis, não parece emergir, de dentro, uma convicção segura acerca do caminho a seguir. Será, tenho para mim, uma ajuda tão mais valiosa quanto mais puder cruzar interesses e apetências vocacionais com características de personalidade e variáveis cognitivas. Afinal de contas, é fácil imaginar que um arquiteto que case rigor com abstração espacial e criatividade estará mais perto de ser um bom arquiteto. Ou que um engenheiro que compatibilize raciocínio lógico, abstração espacial e raciocínio mecânico estará mais próximo de se poder destacar. Ou que um professor será muito mais facilmente um bom professor se, para além do domínio científico das matérias, tiver interesse e apetência para gerir relações interpessoais. Ou que um enfermeiro ou um médico, para além do domínio científico e de todo o raciocínio analítico complexo (que permite, por exemplo, chegar a um diagnóstico certeiro) tenderá a ser tão melhor médico ou enfermeiro quanto mais apetência tiver para gerir relações interpessoais e estabelecer relações de ajuda. 
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 19 de março de 2017

Em nome do pai!

  O “olha que eu digo ao teu pai e ele diz-tas” foi condensando, por demasiado tempo, um modelo de parentalidade (e de relação entre homens e mulheres e entre estes e as crianças) mais ou menos clivado: a mãe protegia, cuidava e dava colo. O pai punha o pão na mesa e era o rosto da Lei e da ordem familiar. A mãe era dócil, afetuosa e tinha um colo do tamanho do mundo. O pai era duro, distante e nunca se comovia. Afinal, “homem que é homem não chora” e emoções, se as tinha, era sua obrigação escondê-las atrás de um ar grave e sisudo.
  A Psicologia e a Psicanálise Clássicas desbravaram avenidas na compreensão das relações humanas, da parentalidade e das relações familiares. Mas, por mais que, em tantos e tantos aspetos, tenham estado à frente do seu tempo (dando um empurrão ao mundo criativo que pula e avança), não deixaram (inevitavelmente!) de também beber influências de uma ideia clivada de família, organizada em torno de um “polícia bom” que protegia e cuidava, e de um “polícia mau” e distante que garantia a Lei. Talvez por isso, o pai foi sendo conceptualizado como o terceiro, que abria a relação (mais ou menos fusional) mãe-filho à diferença e à realidade. Não sendo avanço pequeno na ciência nem função pouco importante a do pai, não deixava, ainda assim, de secundarizar o seu papel no desabrochar das extraordinárias competências do bebé… Mas, num mundo que pula e avança, há muito que muitos modelos da Psicologia e da Psicanálise Contemporâneas (com conceitos como o de “tríade originária” de Chbani e Perez-Sanchez, por exemplo) me parecem sugerir que modelos integrados de família (e de sociedade) são mais amigos da saúde e do crescimento.
  Num mundo que pula e avança as mulheres foram trabalhar e, felizmente, exigem a justíssima igualdade de direitos (por mais que, em pleno séc. XXI, ainda hajam deputados do Parlamento Europeu a questionar estes princípios básicos). Num mundo que pula e avança, felizmente, os homens exigem, cada vez mais, o direito de cuidar, de se comoverem e de serem próximos e afetuosos (lembrando, aos mais distraídos, que o seu coração também bate do lado esquerdo, ou que a condição masculina não é, por si só, sinónimo de menos competências parentais na hora, por exemplo, de regular responsabilidades parentais, em caso de separação). Neste contexto (como em muitos outros), menos clivagem será – tenho para mim – mais saúde. Nesta lógica, tal como o colo e a abertura à diferença e à realidade deve ser a multiplicar por cada um dos pais, também a Lei Familiar deverá – parece-me - resultar de um consenso mínimo entre eles, tendo, evidentemente, os dois a obrigação de a fazer aplicar.

  Quanto mais abraçarmos a diferença, com a consciência de que, no essencial (sejamos homens ou mulheres, muçulmanos ou cristãos, do norte da Europa ou da África Subsariana) somos todos feitos da mesma massa (como muito bem lembrava um slogan muito feliz na luta contra a xenofobia: “Todos diferentes, todos iguais!”), mais inclusiva, integradora e amiga da saúde e do crescimento será a família (na sua composição tradicional ou nas “novas” composições que resultam do crescente respeito pela orientação sexual das pessoas). 

domingo, 5 de março de 2017

Vai-te embora... mas eu preciso de um abraço!

A Maria vai todos os dias à Faculdade beber café. Os claustros são bonitos e é lá que encontra boa parte dos seus amigos. Mas às aulas não tem ido muito. Especialmente desde o semestre passado quando, pela primeira vez na vida, chumbou num exame. Deixou de estar a par das cadeiras, dos livros, das sebentas e dos apontamentos. Sai todas as noites, em grupos alternados. Nenhum deles aguenta o seu ritmo imparável. Acorda quase todos os dias ressacada dos packs de vodka ou dos shots com que procura adormentar mágoas e medos. Alguns amigos gabam-lhe a pedalada tal a agilidade com que salta de bar em bar, de copo em copo, de ganza em ganza… numa agitação que parece não ter fim. Mas há muito que a Catarina percebera que a Maria talvez ande mais movida a angústia do que a desejo. Especialmente desde o jantar de curso em que a Maria, num pranto desamparado, falou, de forma mais ou menos desconexa, dos pesadelos com que acorda, invariavelmente, a chorar; do modo como se sente feia e desinteressante; da relação distante com a mãe desde que perdeu o pai; da culpa e do medo de não ser capaz de investir o curso ou da catadupa de envolvimentos amorosos em que se foi, invariavelmente, sentindo usada e humilhada. E a Maria sociável, popular, confiante e despreocupada aos olhos mais desatentos era agora olhada, pela primeira vez em muito tempo, para lá do show off dos seus decotes e do seu nariz levantado. No dia seguinte, com os olhos ainda vermelhos de tanto chorar, apressou-se a justificar o desamparo com o último shot de tequila que “bateu mal”. Mas a Catarina não desarmou. Levou-a consigo de fim-de-semana, à sua aldeia deTrás-os-Montes. O fim-de-semana no campo teve um sabor agridoce para a Maria.  Confortou-a, muito mais do que se atrevera a imaginar, haver alguém que, tanto tempo depois, não desiste de espreitar para dentro de si. Tanto que deu por si a confiar à Catarina uma ou outra “paranoia” (como lhes chama) que nunca se atrevera a confiar a ninguém. Mas dilacerava-a a distância colossal entre o calor relacional que sentia na vida da Catarina e a marca de superficialidade e indiferença das suas próprias relações pessoais e familiares. Talvez tenha este sido um fim-de-semana decisivo para, pela primeira vez em muito tempo, equacionar a proximidade relacional (que tolerava mal, ainda) como alternativa à sucessão de fugas para a frente a que há muito se entregara. Talvez a Catarina a tenha ajudado a largar a semente para, meses mais tarde, ousar pedir ajuda no contexto de uma relação terapêutica a que viria, paulatinamente, a confiar-se.


Talvez a sucessão de fugas para a frente, mascaradas, tantas vezes, numa hiperatividade boémia (mas, também, de trabalho por exemplo, como nos workaholic) não seja muito mais do que uma tentativa desesperada de adormentar uma angústia (e um desamparo…) profunda e mais ou menos generalizada. A superficialidade relacional que, tantas e tantas vezes, acompanha este registo (numa solidão acompanhada tão bem cantada pelo Jorge Palma, na sua Frágil: dou-me com toda a gente, mas não me dou a ninguém), parece, porventura, funcionar como a barreira que faltava à proximidade das relações. Tudo parece passar-se como se, nestas pessoas, há muito viesse a definhar a esperança de haver alguém ao pé de quem seja possível sentir a dor sem claudicar. E, com ela, por maioria de razão, se fosse estilhaçando também a fé no poder transformador (e redentor!) da relação (a que Bion chamava fé nos vínculos).  Mas, quem, desta forma ainda muito encriptada é certo, consegue ainda assim soltar uma espécie de: “vai-te embora… que eu preciso de um abraço”… terá todas as competências para, aos poucos, resgatar os “super-poderes” transformadores da relação. Assim tenha quem não desiste de a olhar dentro. Assim tenha quem não desista de ajudar a configurar, com palavras e com histórias a dor… e o desejo!


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 12 de fevereiro de 2017

(Felizmente) o Amor não é um conto de fadas!

   Ainda andava às voltas com a ressaca do divórcio. Sem saber bem como, o mundo desabou. Assim, de uma assentada (por mais que há muito as brechas se viessem a aprofundar). A cama era, agora, grande demais para tanto vazio. Só o Bernardo, nos fins-de-semana e 4ª feiras que ficava com o pai lhe conseguia arrancar um sorriso rasgado. Muitos meses depois vieram, finalmente, as férias. E com elas uma espécie de Verão teenager (como lhe chamara). Na ressaca de uma vertigem de festas, exageros alcoólicos e relações de ocasião, o Pedro estava, agora, mais metido consigo. Depois de um Verão de mais “anestesia” do que de “reconstrução”, era tempo de ligar os pensamentos.
   A Joana, com a vivacidade, a audácia e o medo de quem trata a vida por tu, insistiu em pôr-se no seu caminho. O Pedro hesitou. E voltou a hesitar. Uma e outra e outra vez. Intuía que não poderia passar por aquele brilho nos olhos com a leviandade com que passara pelo Verão. E isso fascinava-o. Fascinava-o, mas assustava-o de morte. Ainda estavam bem vivas as feridas do divórcio. E, feitas as contas, gato escaldado até de água fria tem medo. Incrível, a Joana, cerrou fileiras e não desarmou. E isso foi serenando o Pedro. “Meu Deus, nunca tinha visto uma mulher a olhar para mim daquela maneira. Era um olhar de espanto. Um olhar de espanto perante o amor”. Com a Joana tinha, agora, uma “sintonia maior” (como lhe chamara) que, na verdade, nunca chegara a ter com a Marta em 5 anos de casamento. E tinham sonhos, feitos projetos comuns. Mas veio a crise, a troika e a deslocalização de pessoal do departamento financeiro para a sucursal de Paris. E vieram as pontes aéreas e os sonhos feitos projetos para um reencontro a curto prazo. Agora sim, a história tinha os contornos de um amor épico, à filme! Os reencontros eram apaixonados, mas a distância crescentemente insuportável para a Joana. De volta à Paris que a viu crescer, foi desistindo, aos poucos, do “espanto do amor”. Sem nunca conseguir ser clara, manteve um registo: “nem contigo, nem sem ti” muito para lá do razoável. O Pedro cerrou fileiras e não desarmou… mas o amor é sempre a dois (a multiplicar por cada uma das vidas que mora bem dentro de cada um dos amantes) e virar o mundo do avesso não foi suficiente para resgatar, na Joana, aquele olhar de espanto perante o amor. Com uma última carta de amor, o Pedro empurrou, finalmente, a porta que a Joana teimava em não abrir (nem fechar). Estava zangado com as mulheres e com o amor. Pensava, para si, que era hora de dar um tempo ao amor e de apostar as fichas todas no trabalho. Mas, fosse quando se sentava para retomar os sites que tinha em carteira ou quando, à noite, a cama lhe parecia demasiado grande para tanto vazio, batia a saudade. E uma tristeza funda. E a desconfiança no seu valor: “Se eu sou tão especial como me imagino, porque é que, chegada a hora da verdade, fico invariavelmente sozinho?”. E a culpa por um lado intempestivo, que sempre o atormentou: “a verdade é que, às vezes, consigo ser uma besta”. E o medo. O medo de nunca mais se sintonizar com ninguém da forma mágica como, em tempos, se sintonizara com a Joana. E o temor de, na improbabilidade de se voltar a sintonizar, o Amor ter, uma vez mais, prazo de validade.
  Sempre com um sentimento de perda como pano de fundo, o Bernardo e o gozo que o trabalho lhe dava iam-lhe preenchendo a vida. Até que, sem saber bem como, choca de frente com os olhos brilhantes da Maria. Radiante e apavorado ao perceber que, afinal, o coração ainda bate, lança-se numa sofreguidão urgente, própria de quem morre de medo e de esperança, tudo ao mesmo tempo. A Maria, mulher sensata, incandesce-se, num primeiro momento. Mas trava a fundo, logo de seguida. Há muito que a vida lhe ensinara que as fugas para a frente não aproximam as pessoas. E irrita-se. Irrita-se solenemente: “como é que este tipo, de olhar bonito e profundo, estraga assim tudo antes mesmo de começar?” … Mas volta a incandescer-se: afinal de contas, o sôfrego Pedro também é capaz de um acesso de sensatez quando lhe metem o dedo no nariz! E vêm os cafés, os jantares e as horas a fio ao telefone (só agora descobriram que aqueles pacotes ilimitados de telecomunicações, afinal têm um número limitado de minutos!). Tudo os parece ligar, como se se conhecessem desde sempre! Cresce o entusiasmo e o espanto. Mas com eles segue, também, o medo. Afinal de contas, lado a lado com o saber de experiência feito, moram, bem dentro de cada um deles, cicatrizes várias que a proximidade vem desnudar. À boleia duma dessas cicatrizes, quando nada o fazia prever, o Pedro tem um verdadeiro acesso de mau feitio, daqueles tão seus. A Maria, atónita, grita-lhe: “tu não me falas assim!” Nesse exato momento, o Pedro cai em si, pede desculpa e tenta, por todos os meios, reparar os estragos. Mas aquele casal, que até há poucas horas incandescia na ilusão de que se conhecia desde sempre estava, agora, a milhas de distância! A Maria estava muito assustada. O poço de charme, afeto e firmeza que via no Pedro parecia-lhe, agora, uma reedição (de muito má qualidade) de todas as pessoas por quem se foi sentindo mais ou menos amesquinhada. O Pedro, dividido entre a culpa e a ideia difusa de que também a Maria não entendia que os acessos de mau feitio mais não eram do que um mix de medo e desamparo em versão show off, não encontrava a fórmula mágica para se chegar a ela. Mas, muitas lágrimas, linhas vermelhas e inconfidências depois, lá se agarraram num abraço sem fim. Meses (e alguns encontros e desencontros) depois, numa daquelas tardes ternurentas de sofá, a Maria olha bem dentro do Pedro e diz-lhe: “tu és um falso bruto!”. Ele olha-a, desconcertado, e ela insiste: “sim, tu és um falso bruto! Berras e tal, mas se eu te meto o dedo no nariz, cais logo em ti! És um falso bruto! É só show off, para pedir mimo!” E comovem-se os dois, num abraço do tamanho do mundo! Talvez nunca o Pedro tenha ouvido (numa formulação tão simples) nada tão integrador (e poderoso a serenar cicatrizes)!

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez o Amor definhe um bocadinho de cada vez que nos deixamos ofuscar com a superfície plana dos show off. Mas, talvez se expanda (vários universos!), de cada vez que insistimos em olhar o outro… para lá das luzes!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 29 de janeiro de 2017

Maria (já não) vai com as outras: adolescer entre o medo e o entusiasmo

   Uma infeção respiratória não tornou muito fáceis os primeiros meses da Maria. Primeira filha e primeira neta, merecia as atenções preocupadas de todos. O primo que se lhe seguiu, 9 meses mais novo, viria, anos mais tarde, a fazer furor no infantário, que isto de começar a ler aos 4 anos não é para todos. A Maria não lia, ainda. Brincava! Brincava muito! E crescia bem: com o olhar vivo e a sensibilidade apurada, o imaginário a expandir e o corpo a mexer (É para isto que deve servir o jardim de infância, não é?). Da infeção respiratória sobrava apenas, lá ao longe, uma espécie de fantasma parental de que talvez a Maria precisasse de mais “bengalas” do que os outros. Talvez um bocadinho por isso; talvez um bocadinho para “compensar” a distância nas competências académicas para o primo leitor precoce (que, com o passar dos anos, não existia de todo na realidade dos factos, mas parecia bem viva no medo dos pais), a mãe da Maria sempre fez por estudar com (por) ela.
  Aos 14 anos, a Maria é uma adolescente viva, inteligente e afetuosa. Autónoma nas opiniões e na gestão das amizades, continua, apesar das boas notas, a ter na mãe a bengala para o estudo, sem a qual se vai imaginando mais ou menos incapaz. A época de testes é vivida como uma espécie de tortura. Na semana anterior já não consegue dormir bem. Agitada, muda, constantemente, o “centro de estudos” do quarto para a sala, da sala para o escritório do pai, voltando ao quarto para recomeçar o ciclo. Nenhum lugar lhe parece aconchegar o medo. Pior do que os testes, só mesmo as apresentações de Inglês. Por mais que treine, vezes sem conta, cada vírgula da apresentação custa-lhe horrores não ter a pronúncia “british” que vai, de forma muito, muito exagerada, reconhecendo em cada um dos seus colegas. Pior do que isso, só mesmo, a sensação de quase rebentar de tão vermelha que fica, ou o quão se sente ridícula quando a voz teima em embargar. Como se tudo isto não bastasse, as dores de barriga e os nós na garganta são, também, um habitué destas andanças.

  Mas porque é que uma adolescente viva, inteligente e cheia de qualidades parece desconfiar tanto das suas competências?

  A Maria começou a estudar sozinha. Muito a medo (tal como aconteceu com os seus pais, viriam a confessar mais tarde), ou não fosse a primeira vez que enfrentavam o “fantasma” de que o seu esforço e competências talvez não fossem suficientes para garantir boas notas. 
 A Maria morria de medo de, finalmente, comprovar, por A+B, que era incapaz e de, com isso, desiludir todos aqueles de quem gostava. Os pais morriam de medo de, feitas as contas, ter gerado uma filha com bom coração, mas “sem rasgo para a aprendizagem”. 
 As notas baixaram, de facto, num primeiro momento. Mas, à medida que a Maria ia sentindo que quem mais importa começava a acreditar verdadeiramente em si, ao mesmo tempo que começou a discorrer sobre os medos, a encontrar espaço relacional para eles, a compreendê-los e pensá-los (vestindo-os de palavras, na sua história), foram-se esbatendo as insónias, a tensão e as dores de barriga, ao mesmo tempo que ganhavam espaço a confiança e a “adrenalina” das apresentações, o gozo da criatividade e do conhecimento. E, com eles, os resultados escolares começaram a aparecer, depressa superando as performances da “Maria da bengala”.  

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez as competências em bruto (que todos temos!) nunca sejam suficientes por si só. À semelhança daquele célebre (e muito, muito bonito) vídeo do Europeu de Futebol em que o Ronaldo “obriga” o Moutinho a marcar o penálti, enfatizando que se falhar "que se lixe" (numa linguagem um bocadinho mais carregada de “alma”), talvez precisemos – sempre (!) – de quem (na nossa vinda interior e no mundo lá fora) acredite em nós, ajudando-nos a sintonizar com as nossas qualidades e a tirar partido delas, ao mesmo tempo que nos assegura que se falharmos ... “que se lixe”!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.