O teste de Português fê-lo suar
mais do que a partida de futebol contra o 5º B, no intervalo grande. Como, de
resto, o de Ciências, História e Inglês. Vinha de uma Escola pequenina, mesmo
ao lado do infantário onde entrara com 3 anos. Os primeiros tempos não foram
muito fáceis. Os pavilhões pareciam-lhe muito grandes e a fila para a cantina
cheia de miúdos mais velhos, a lembrar-lhe que, à falta de melhor argumento, a
idade (e a envergadura física) pode ser um posto. Reservado, integrou-se, ainda
assim, relativamente bem na nova turma. As habilidades que saiam do seu pé
esquerdo deram uma ajuda, vindo a garantir-lhe mesmo alguma popularidade lá
para os lados do campo de futebol da Escola. Já na sala de aula, está a (muitas)
léguas de se sentir um Ronaldo. A tensão com que enfrenta cada aula parece
provocar-lhe dores de pernas mais intensas do que todas as correrias de um jogo
de futebol, no intervalo de almoço. Entre o medo de, a qualquer momento, ser
chamado ao quadro e o fantasma de ser realmente incapaz em matérias escolares,
é difícil para o Carlos concentrar-se nas explicações da Professora de História
ou de Ciências. Se a isso acrescentarmos a fúria que sente em silêncio sempre
que a Professora elogia a inteligência e empenho da sua prima Mónica (aluna brilhante, pois claro!), fica difícil,
para o Carlos, libertar espaço mental para se focar na aprendizagem. Em casa,
perante a insistência constante dos pais para que estude (não resistindo a dar,
uma ou outra vez, a prima Mónica ou a irmã mais velha como exemplo), deixou
cair, entre lágrimas, um sofrido: “oh mãe, tu sabes que eu não dou para a
Escola!”, expressão que, meses antes, ouvira, acidentalmente, numa
conversa entre a avó e a mãe, a respeito do seu rendimento escolar.
Se aprendemos com Bruner que a aprendizagem tem de ser enquadrada no
contexto sociocultural (ligando conceitos teóricos com a realidade sociocultural
e pessoal das crianças); com João dos
Santos que muito dificilmente há dificuldades de aprendizagem sem
dificuldades emocionais; com Bion (Gibello
e tantos outros) que o desenvolvimento cognitivo nunca se faz à margem do
desenvolvimento afetivo; se o relatório do Programa Nacional de Saúde Escolar(relativo ao ano letivo de 2014/2015) parece reconhecer a relação estreita entre sofrimento emocional e insucesso e indisciplina escolar, talvez faça sentido olharmos para
os resultados escolares menos como uma espécie de decorrência direta do potencial cognitivo da criança (que, em muitas circunstâncias, parece não se traduzir nas performances que poderia alavancar) e mais como um aferidor do papel da Escola e da família na promoção da saúde (mental) e, com ela, da curiosidade e do conhecimento. A
ser assim, talvez o Carlos precise tanto de estratégias pedagógicas
(fundamentais, naturalmente), como de quem se sintonize com ele e o ajude a
pensar tudo aquilo que vai sentindo mais ou menos em silêncio - do medo de ser
incapaz que o parece bloquear, ao fantasma de desiludir pais e professores,
passando pela fúria contida ao imaginar que, aos olhos dos professores, mas
principalmente dos pais e da avó, nunca vai chegar aos calcanhares da prima ou
da irmã – para, a partir daí, retirar contrapartidas práticas que o façam ir à
luta na sala de aula como nunca deixa de ir no campo de futebol.
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais -
está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
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