domingo, 27 de março de 2016

A vida é um milagre!

   A Sara entrou na copa e com aquele olhar brilhante só dela pergunta-me, do nada: “acreditas em milagres?”. Na altura, os milagres eram, para mim, quando muito uma espécie de bruma de um passado que não volta. Entre as saudades imensas de uma grande paixão que acabou (muito contra a minha vontade) com a transparência cristalina com que começara, e o namoro com a Francisca que, valha a verdade, começou a morrer mesmo antes de nascer, aquilo que mais se aproximava de um milagre na minha vida, por aqueles dias, eram os longos cafés com a Sara, superados só, claro, pelos intermináveis, mas cada vez mais raros, telefonemas com a Inês (a grande paixão que terminou muito contra a minha vontade, com a transparência cristalina com que começara). Ainda assim, servindo-me descaradamente do filme do Kusturika, que tinha visto uns meses antes, atirei, com o meu ar mais sedutor (se é que se pode ser sedutor sem acreditar em milagres): A vida é um milagre! Se eu, na altura, fosse tão transparente como a Inês me mostrou, de uma forma visceral, que era possível ser (ser-lhe-ei eternamente grato por isso) não me teria acanhado quando, a caminho da praia, para mais um café de fim de tarde com a Sara, passou no rádio do carro aquela música extraordinária do Martinho da Vila com a Kátia Guerreiro, dando o mote para uma proximidade impossível de disfarçar. Se eu não tivesse, na altura, tanto medo de milagres… Sabe, acho que vinham daí as minhas insónias, a minha tristeza, a minha insegurança… acho que vinham do raio do medo de ir além dos meios milagres. Mas sabe, eu agora acho que já acredito mais vezes em milagres. E então agora que é desta que parece que nos deixámos de tretas e me entendi de vez com a Rita. Sabe, acho que ela é uma espécie de síntese para melhor de tudo o que de bom tinham as minhas outras namoradas. Pode parecer estúpido, mas percebi isso quando ela se sentou ao meu lado, no sofá do hotel, bem agarradinha a mim, a ver o jogo de futebol comigo, com aqueles olhos grandes a brilhar, a brilhar. E esta semana, no sábado, fez-me uma à filme: pediu-me para ir buscar o vinho à dispensa enquanto ela nos servia o jantar. Quando cheguei, pronto a fazer um brinde, tinha no meu prato os bilhetes de avião e dois bilhetes para o Nick Cave em Londres, enquanto ela trauteava o Into my arms. Com uma mulher destas posso lá eu não acreditar em milagres?!
Lá no Banco é que eu acho que não vão muito em milagres e as rescisões vão mesmo avançar! Fiquei com uma fúria! Andei estes anos a virar-me em masters e pós-graduações, a dar couro e cabelo por aquele banco e agora o melhor que mereço é a azeda oficial dos recursos humanos a dizer-me: tem sorte enquanto vai ter indemnização e subsídio de desemprego! Entre partir-lhe a cara e ir, de vez, fazer a viagem dos meus sonhos com a Rita… é desta que vamos à Argentina. Comprámos os voos ontem, via Barcelona. Ficamos cinco dias em Buenos Aires. Eu sempre quis dançar tango em Buenos Aires! E depois descemos de autocarro para a Patagónia, Estreito de Magalhães, Terra do Fogo… desde que vi um documentário com o meu pai que sempre fui dizendo… um dia, um dia. Pois hoje é o dia!
  Uns meses depois, tinha, na caixa de correio do consultório, uma carta com remetente de San Martin de los Andes (uma cidadezinha da Patagónia Argentina, soube, depois de pesquisar no google). Era um postal do Luís que dizia: “Depois de tudo, começar a arriscar desarrumar a minha vida ajudou-me a deixar-me de meios milagres. Vista dos Andes, a vida é (ora mais simples, ora mais dura) mesmo um milagre!”. Meses mais tarde, agora por e-mail, o Luís conta-me, orgulhoso, que conseguiu um bom emprego numa consultora financeira, em Londres, e a Rita um lugar bem pago, num hospital a meia-hora da cidade. 

   Acho que o Luís, ao me ter dado o privilégio de assistir, ao vivo e a cores, à construção lenta (com muitas dúvidas e dor à mistura) do seu milagre, me ajudou a acreditar mais vezes em milagres! Fico-lhe muito grato por isso!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 15 de março de 2016

De tanto querer bater baixinho…o meu coração não pára de me sobressaltar!

A Maria é enfermeira no Serviço onde entrara há 14 anos, com a insegurança natural do primeiro emprego. Já assistiu a recuperações quase milagrosas e já se enterneceu com os gestos de bondade e gratidão dos seus doentes e familiares, ou com a solidariedade desprendida de um outro colega. Mas, vezes sem conta, já se sentiu atropelada por uma tristeza sem fim, ao assistir, impotente, ao desmoronar, lento ou súbito, de vidas e famílias. Vezes sem conta, já se sentiu profundamente magoada pela ira de doentes ou familiares ingratos ou de chefes prepotentes. Vezes sem conta, já se sentiu invisível na hora de receber os louros que, por elementar justiça, seriam também seus. E vezes sem conta, calou a tristeza, a raiva ou o medo. É preciso correr. Passar no supermercado. Ir buscar as miúdas à escola. Fazer o jantar. Dar um jeito à casa até, por fim, entrar de novo no hospital, para mais uma noite entre gemidos de dor e desamparo. Muito cansada prefere, ainda assim, os turnos agitados. O silêncio e a calma trazem-lhe de volta a tristeza, a raiva, o medo… e, com eles, a culpa, como se, por algum motivo, não estivesse autorizada a sentir!
   Ao António sempre inquietou a ideia de dor e de morte. Imaginando o ruído que a proximidade diária com elas poderia causar na paz interior da mulher por quem se apaixonou ainda na Faculdade, tentava, com insistência, dar colo e espaço para a Maria “chorar” as perdas do Hospital, e as outras, as da vida. Mas isso foi há muitos anos. A Maria nunca foi muito de se abrir. Assustava-a a ideia de se confiar a um colo… mesmo que fosse o do marido, que sempre soube ser confiável. Desde pequenina que se foi habituando a guardar para si as tristezas, as revoltas, as mágoas e os azedumes. Desde pequena que se foi habituando a ser paciente e calma, a nunca perder a cabeça um bocadinho que fosse. Um bocadinho ao jeito das crianças pequenas que, quando começam a brincar às escondidas, tapam a cara com as mãos, na esperança de que deixem de ser vistas, a Maria foi agindo como se acreditasse que ao fingir com muita força que não sentia, talvez as tristezas, as raivas, os desamparos, as culpas e os desencontros desaparecessem, como que por magia. Foi assim durante anos e anos a fio. Até que, subitamente (quase nunca é subitamente!), e sem nada que o fizesse prever (como se anos e anos a tentar reiteradamente fintar o que sente não trouxesse, mais tarde ou mais cedo, uma fatura a pagar… para além da que se vai pagando dia após dia), a Maria calma e paciente parece uma bomba relógio, pronta a rebentar ao mais leve deslize das filhas, ao mais bem-intencionado apelo do marido ou à mais natural interpelação das colegas do Hospital. Como se isso não bastasse, vieram as crises de angústia, em catadupa, e com elas, os medos, uns atrás dos outros.

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez sempre que façamos, insistentemente, por amordaçar a sabedoria do corpo, sinalizando como perigosas as emoções que nos protegem e que (qual GPS de última geração) nos guiam os passos, tarde ou cedo, ela acabe por se fazer ouvir! Até podemos varrer as emoções continuadamente para debaixo do tapete (onde causam muito mais ruído do que nos iluminam o caminho) durante algum tempo mas, quando assim é, creio que de tanto as tentarmos domar (em vez de as pensar e gerir), acabamos (à custa de muito ruído) domados por elas! O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa viver sem soçobrar. O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa pensar e integrar (ligando os fragmentos dispersos das histórias que vivem dentro de nós), para que possam recuperar, primeiro, e refinar, depois, o seu papel de farol que nos ilumina o caminho. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.