terça-feira, 15 de março de 2016

De tanto querer bater baixinho…o meu coração não pára de me sobressaltar!

A Maria é enfermeira no Serviço onde entrara há 14 anos, com a insegurança natural do primeiro emprego. Já assistiu a recuperações quase milagrosas e já se enterneceu com os gestos de bondade e gratidão dos seus doentes e familiares, ou com a solidariedade desprendida de um outro colega. Mas, vezes sem conta, já se sentiu atropelada por uma tristeza sem fim, ao assistir, impotente, ao desmoronar, lento ou súbito, de vidas e famílias. Vezes sem conta, já se sentiu profundamente magoada pela ira de doentes ou familiares ingratos ou de chefes prepotentes. Vezes sem conta, já se sentiu invisível na hora de receber os louros que, por elementar justiça, seriam também seus. E vezes sem conta, calou a tristeza, a raiva ou o medo. É preciso correr. Passar no supermercado. Ir buscar as miúdas à escola. Fazer o jantar. Dar um jeito à casa até, por fim, entrar de novo no hospital, para mais uma noite entre gemidos de dor e desamparo. Muito cansada prefere, ainda assim, os turnos agitados. O silêncio e a calma trazem-lhe de volta a tristeza, a raiva, o medo… e, com eles, a culpa, como se, por algum motivo, não estivesse autorizada a sentir!
   Ao António sempre inquietou a ideia de dor e de morte. Imaginando o ruído que a proximidade diária com elas poderia causar na paz interior da mulher por quem se apaixonou ainda na Faculdade, tentava, com insistência, dar colo e espaço para a Maria “chorar” as perdas do Hospital, e as outras, as da vida. Mas isso foi há muitos anos. A Maria nunca foi muito de se abrir. Assustava-a a ideia de se confiar a um colo… mesmo que fosse o do marido, que sempre soube ser confiável. Desde pequenina que se foi habituando a guardar para si as tristezas, as revoltas, as mágoas e os azedumes. Desde pequena que se foi habituando a ser paciente e calma, a nunca perder a cabeça um bocadinho que fosse. Um bocadinho ao jeito das crianças pequenas que, quando começam a brincar às escondidas, tapam a cara com as mãos, na esperança de que deixem de ser vistas, a Maria foi agindo como se acreditasse que ao fingir com muita força que não sentia, talvez as tristezas, as raivas, os desamparos, as culpas e os desencontros desaparecessem, como que por magia. Foi assim durante anos e anos a fio. Até que, subitamente (quase nunca é subitamente!), e sem nada que o fizesse prever (como se anos e anos a tentar reiteradamente fintar o que sente não trouxesse, mais tarde ou mais cedo, uma fatura a pagar… para além da que se vai pagando dia após dia), a Maria calma e paciente parece uma bomba relógio, pronta a rebentar ao mais leve deslize das filhas, ao mais bem-intencionado apelo do marido ou à mais natural interpelação das colegas do Hospital. Como se isso não bastasse, vieram as crises de angústia, em catadupa, e com elas, os medos, uns atrás dos outros.

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez sempre que façamos, insistentemente, por amordaçar a sabedoria do corpo, sinalizando como perigosas as emoções que nos protegem e que (qual GPS de última geração) nos guiam os passos, tarde ou cedo, ela acabe por se fazer ouvir! Até podemos varrer as emoções continuadamente para debaixo do tapete (onde causam muito mais ruído do que nos iluminam o caminho) durante algum tempo mas, quando assim é, creio que de tanto as tentarmos domar (em vez de as pensar e gerir), acabamos (à custa de muito ruído) domados por elas! O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa viver sem soçobrar. O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa pensar e integrar (ligando os fragmentos dispersos das histórias que vivem dentro de nós), para que possam recuperar, primeiro, e refinar, depois, o seu papel de farol que nos ilumina o caminho. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

8 comentários:

  1. Muito bem escrito e certamente revelador da amálgama de sentimentos e emoções que a nossa alma guarda, em alguns mais do que noutros, dependendo da capacidade de os exteriorizar e/ou, conviver com eles.

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  2. Sublime...Sem mais comentários!!!

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  3. Varrer para o tapete é sempre o que parece mais simples, mais pacificador...

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    1. Tenho dúvidas Manuela. Até pode, de facto, parecer num primeiro momento. Não creio que seja efetivamente assim, a prazo ;) Um abraço grande.

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