A Maria é enfermeira no Serviço onde entrara há 14 anos, com a
insegurança natural do primeiro emprego. Já assistiu a recuperações quase
milagrosas e já se enterneceu com os gestos de bondade e gratidão dos seus
doentes e familiares, ou com a solidariedade desprendida de um outro colega.
Mas, vezes sem conta, já se sentiu atropelada por uma tristeza sem fim, ao
assistir, impotente, ao desmoronar, lento ou súbito, de vidas e famílias. Vezes
sem conta, já se sentiu profundamente magoada pela ira de doentes ou familiares
ingratos ou de chefes prepotentes. Vezes sem conta, já se sentiu invisível na
hora de receber os louros que, por elementar justiça, seriam também seus. E
vezes sem conta, calou a tristeza, a raiva ou o medo. É preciso correr. Passar
no supermercado. Ir buscar as miúdas à escola. Fazer o jantar. Dar um jeito à
casa até, por fim, entrar de novo no hospital, para mais uma noite entre
gemidos de dor e desamparo. Muito cansada prefere, ainda assim, os turnos
agitados. O silêncio e a calma trazem-lhe de volta a tristeza, a raiva, o medo…
e, com eles, a culpa, como se, por algum motivo, não estivesse autorizada a
sentir!
Ao António sempre inquietou a ideia de dor e de morte. Imaginando o
ruído que a proximidade diária com elas poderia causar na paz interior da
mulher por quem se apaixonou ainda na Faculdade, tentava, com insistência, dar
colo e espaço para a Maria “chorar” as perdas do Hospital, e as outras, as da
vida. Mas isso foi há muitos anos. A Maria nunca foi muito de se abrir. Assustava-a
a ideia de se confiar a um colo… mesmo que fosse o do marido, que sempre soube
ser confiável. Desde pequenina que se foi habituando a guardar para si as
tristezas, as revoltas, as mágoas e os azedumes. Desde pequena que se foi
habituando a ser paciente e calma, a nunca perder a cabeça um bocadinho que
fosse. Um bocadinho ao jeito das crianças pequenas que, quando começam a
brincar às escondidas, tapam a cara com as mãos, na esperança de que deixem de
ser vistas, a Maria foi agindo como se acreditasse que ao fingir com muita força
que não sentia, talvez as tristezas, as raivas, os desamparos, as culpas e os
desencontros desaparecessem, como que por magia. Foi assim durante anos e anos
a fio. Até que, subitamente (quase nunca é subitamente!), e sem nada que o
fizesse prever (como se anos e anos a tentar reiteradamente fintar o que sente
não trouxesse, mais tarde ou mais cedo, uma fatura a pagar… para além da que se
vai pagando dia após dia), a Maria calma e paciente parece uma bomba relógio,
pronta a rebentar ao mais leve deslize das filhas, ao mais bem-intencionado
apelo do marido ou à mais natural interpelação das colegas do Hospital. Como se
isso não bastasse, vieram as crises de angústia, em catadupa, e com elas, os
medos, uns atrás dos outros.
Talvez seja
sempre um bocadinho assim. Talvez sempre que façamos, insistentemente, por
amordaçar a sabedoria do corpo, sinalizando como perigosas as emoções que nos
protegem e que (qual GPS de última geração) nos guiam os passos, tarde ou cedo,
ela acabe por se fazer ouvir! Até podemos varrer as emoções continuadamente
para debaixo do tapete (onde causam muito mais ruído do que nos iluminam o
caminho) durante algum tempo mas, quando assim é, creio que de tanto as
tentarmos domar (em vez de as pensar e gerir), acabamos (à custa de muito
ruído) domados por elas! O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o
espaço relacional que as possa viver sem soçobrar. O grande desafio talvez
seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa pensar e integrar (ligando
os fragmentos dispersos das histórias que vivem dentro de nós), para que possam
recuperar, primeiro, e refinar, depois, o seu papel de farol que nos ilumina o caminho.
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está
muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Muito bem escrito e certamente revelador da amálgama de sentimentos e emoções que a nossa alma guarda, em alguns mais do que noutros, dependendo da capacidade de os exteriorizar e/ou, conviver com eles.
ResponderEliminarMuito obrigado! Seja muito bem-vinda a este espaço.
EliminarSublime...Sem mais comentários!!!
ResponderEliminarMuito obrigado pela simpatia do seu comentário!
EliminarVarrer para o tapete é sempre o que parece mais simples, mais pacificador...
ResponderEliminarTenho dúvidas Manuela. Até pode, de facto, parecer num primeiro momento. Não creio que seja efetivamente assim, a prazo ;) Um abraço grande.
EliminarGostei muito.
ResponderEliminarMuito obrigado!
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