domingo, 27 de dezembro de 2015

Ano novo e outros desejos!

12 badaladas, 12 passas, 12 desejos!
  Pedir desejos é bom! Resgata a esperança. Ajuda a configurá-la. Mas não, não chega para conquistar o futuro. Os desejos precisam de ser polidos, acarinhados, construídos. Precisam de ser transformados em projetos viáveis.
Sim, desejar é bom! Tenho para mim que os desejos genuínos, em boa verdade, nunca são irrealizáveis! Ganhar o euromilhões, um Óscar ou um Nobel não serão bem desejos. Comprar um castelo na Escócia ou uma ilha no Pacífico não serão bem desejos. Desejos megalómanos não serão bem desejos. Servirão, quando muito, como refúgio mágico para quem, tolhido pelo medo, se recusa a sonhar o futuro. Tenho para mim que desejar para lá do impossível não será tão diferente assim (ainda que por linhas travessas) de poupar nos desejos para poupar nas desilusões. 
 O desejo (tal como o vejo) será, assim, uma espécie de ligação, pela esperança, entre o imaginário e as possibilidades que a realidade oferece. Numa espécie de dois em um, será o caminho mais efetivo para agarrar o futuro, servindo, ao mesmo tempo como vacina que ajuda a metabolizar a desilusão: uma dor condensada num falhanço (a partir do qual é possível tirar ilações e crescer com a experiência) será, tenho para mim, mais facilmente metabolizável do que a dor difusa, mas omnipresente, de quem, invariavelmente, não vai a jogo (evitando desejar ou precipitando-se numa catadupa de desejos megalómanos).

Um 2020 cheio de desejos! 

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

O Natal tem um lado B?

Gosto muito do Natal. Sempre gostei.
Mas ao lembrar-me de algumas histórias, em que a melancolia e o sofrimento parecem andar lado a lado com o Natal, não posso deixar de me perguntar: porque é que, para tantas pessoas, parece haver uma espécie de anti-Pai Natal que, no saco, traz tudo menos magia?
Quase todos os filmes de Natal que via em miúdo tinham, de uma forma ou de outra, uma cena que sempre me impressionou muito. Tanto que as fui condensando a todas numa única imagem: um tipo a vaguear sozinho pela cidade. De passo arrastado e olhar baço, segue sem rumo. Até que pára mesmo em frente à janela de uma casa. Lá dentro, bem entre a árvore e a lareira (não vão os presentes fugir!) os miúdos ouvem as histórias que só o avô sabe contar, enquanto os pais, os tios e os primos mais velhos britam nozes, comem doces e brindam com o melhor vinho tinto da garrafeira da família. Os olhares brilham. Todos os olhares brilham. É noite de Natal!
Mas porque é que há alguns olhares que teimam em fazer de tipo que olha de fora da janela, e ficam ainda mais baços no Natal?!
 Mas porque é que a “magia” do Natal parece acentuar o desamparo no olhar de quem, na melhor das hipóteses, tem quem lhe embrulhe, com enfado, o mesmo presente todos os anos, mas nunca, nunca, é capaz de lhe “contar histórias” ou de lhe arrancar um “brilhozinho nos olhos”?!
Mas porque é que, às vezes, o Natal parece pôr a nu uma fratura demasiado profunda entre as luzes, o presépio, o senhor de barbas brancas que carrega um saco vermelho do tamanho dos desejos das pessoas de todas as idades… e o acumular dos imensos pequenos grandes nadas de quem nunca se sente olhado nos olhos?!

Mas, se até o avarento e gélido Mr. Scrooge, do Dickens, se deixou contagiar pela magia do Natal, talvez o Pai Natal, a esperança e o menino Jesus renasçam um bocadinho de cada vez que dois olhares desembrulhados olham bem dentro um do outro. 

domingo, 13 de dezembro de 2015

E quando as notas fazem sombra à árvore de Natal?

  O Pedro ainda conseguiu esconder uma ou outra negativa dos pais durante o período. Agora, no espaço de duas semanas (e logo as duas semanas das férias de Natal!), teve de confrontar-se, de uma assentada, com o próprio insucesso (que andou, todo o período, a tentar varrer para debaixo do tapete), com o misto de desilusão e zanga bem estampado no rosto dos pais, e com a pergunta inevitável dos tios e dos avós, na noite de consoada: “então e a escola? Mereces os presentes?" Como se isso não bastasse, veio, também, o comentário da tia: “a tua prima teve dois 4 e o resto tudo 5”. Entre a fúria contida, o embaraço e o medo enorme de, na verdade, ser incapaz de fazer melhor, o Pedro não vai, provavelmente, ser capaz de muito mais do que um encolher de ombros à medida que o rubor toma conta do seu rosto. Se a avó ou uma tia (mesmo que com a melhor das intenções) insistirem, aí não se fica. Escudar-se-á, provavelmente, num tão sobranceiro quanto assustado: “quero lá saber da escola. Isso é para os marrões e para os betinhos”, que vai deixar os pais furiosos (já não bastava a forma como se sentiram quando receberam a catadupa de negativas do Pedro, mesmo ao lado da mãe do melhor aluno da turma?!)

  Se os insucessos pontuais são mais do que naturais, e até podem ajudar a construir a tolerância à frustração e a afinar a capacidade de aprender com os erros e a experiência, o insucesso repetido deverá, parece-me, merecer preocupação.
  Mas porque é que há crianças e adolescentes que, sendo capazes de utilizar os seus recursos cognitivos nas mais variadas circunstâncias (no domínio quase instantâneo das novas tecnologias, por exemplo) se desencontram da Escola, da aprendizagem e do conhecimento?

  O insucesso escolar está longe de ser um fenómeno simples, compatível com uma qualquer causalidade linear. Variáveis mais macro como o contexto socioeconómico e cultural, a parca estabilidade e estimulação familiar, as turmas enormes, a falta de tempo e de espaço para brincar livremente, o défice de recursos humanos, a falta de ligação entre algumas temáticas e a experiência de vida das crianças, por um lado, e o sentido de utilidade que conseguem conferir aos conteúdos, por outro serão, com certeza, decisivas para os números do insucesso escolar. Como se isso não bastasse, fatores da própria dinâmica relacional da criança parecem, também, em muitos dos casos, entrar na equação do insucesso escolar. 

   Se quando um adulto se sente invadido por angústias ou preocupações tende a ficar agitado e a ter dificuldades em focalizar a sua atenção e as suas energias em tarefas complexas, será razoável imaginar que as crianças funcionem de modo diferente, nas mesmas circunstâncias?
  Se quando alguns adultos se vêm confrontados com tarefas que imaginam muito exigentes (daquelas que, invariavelmente, despertam o medo do fracasso) tendem, num primeiro momento, a “inventar” prioridades de última hora, que parecem não servir para mais do que evitar o que sabem ser realmente prioritário (há alturas em que arrumar a pilha de papéis da prateleira mais alta da estante do escritório ou organizar a caixa de e-mail que está ao “Deus dará” há meses, se tornam tarefas absolutamente inadiáveis, de uma quase urgência de vida ou morte), será sensato esperar que as crianças, perante o medo do fracasso que algumas tarefas escolares lhes despertam, possam funcionar num registo diferente?  
  Se quando os adultos passam por períodos turbulentos tendem a esconder o brilhozinho dos olhos e a esbater o entusiasmo com que se entregam às mais diversas atividades, será sensato imaginar que com as crianças seja diferente?

  Parece-me que, num ou noutro caso, a cristalização de movimentos desta natureza não andará longe de concorrer, de forma muito significativa, para o insucesso escolar. A ser assim, tenho a ideia que promover o sucesso escolar passará também por ajudar as crianças a transformarem a complexidade do que sentem - do medo de falhar à dor que desperta um falhanço (mesmo que camuflada por uma atitude sobranceira e desinteressada), passando pela agressividade contida ou pelo desejo de se destacarem e serem competentes, mas principalmente de serem, nada mais nada menos, que os melhores do mundo aos olhos dos pais - em palavras, as palavras em histórias e as histórias em planos de ação, ao mesmo tempo que se lhes exige nada menos do que tudo aquilo que possam dar. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue -  sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 



segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Os Professores que encantam … também choram.

  A Maria é professora vai para 14 anos. Entre horários completos, parciais e substituições conseguiu colocação em todos os anos letivos. Quase sempre longe de casa. Este ano não é diferente: faz 160 Km diários para se poder multiplicar entre as turmas do 5º e 6º ano, o marido e a filha de 6 anos.
  Chegada a hora de concorrer ao Ensino Superior, o entusiasmo pela arte de ensinar falou mais alto do que as vozes preocupadas que a aconselhavam a optar por uma área com um futuro mais seguro. O Curso, que fez com afinco, só fez crescer dentro de si o entusiasmo. Com o estágio, o encantamento ganhou corpo na certeza interior de ter feito a escolha certa: “se eu ainda tinha dúvidas, nesse ano percebi de vez: eu nasci para ensinar. Eu nasci para aprender com os alunos a ensinar melhor”, diz com um brilhozinho nos olhos.
  Apesar de todos os constrangimentos, incertezas laborais e inseguranças pessoais, a Maria, ano após ano, renovava o encantamento de ajudar crianças a crescer por via do conhecimento do mundo e de si próprias. A competência, a exigência e a firmeza, o afeto e a disponibilidade que os alunos lhe reconheciam, sempre lhe foram permitindo gerir as turmas da melhor forma possível. Não que não tivesse tido dificuldades sérias ao longo deste percurso. De adolescentes com problemas de comportamento muito acentuados, a crianças com problemas persistentes de insucesso escolar, de tudo foi vivendo um pouco, sem nunca desistir de se sintonizar com estes miúdos, procurando, sempre, todos os recursos para os ajudar a reencontrarem-se num desenvolvimento saudável.
  Sem saber bem como, tudo mudou: “sempre fui uma mulher de sangue na guelra. Podia estar cansada sim, mas ia sempre para a Escola com entusiasmo. Podia estar cansada, sim, mas vinha para casa cheia de entusiasmo para abraçar o meu marido e a minha filha. Já não me reconheço. Já não sou a mesma. Para onde foi a paixão por ensinar? Para onde foi a Maria que nunca desistia dos alunos, mesmo os mais problemáticos? Pior, onde está a Maria que via no abraço do marido um porto seguro? Dantes, quando eu estava triste, falava, falava, falava com ele e sentia que ali, no seu abraço, tudo se resolvia. Agora fecho-me. Sinto que ele já não está lá para mim. Ou sou eu que já não o sei procurar. Estamos distantes. Ou estamos distantes ou estamos a discutir. Não estão nada fáceis as coisas entre nós. Até com a minha filha, tenho menos paciência. Tudo me irrita. Preparar aulas, levar a filhota ao parque, os almoços de família em casa dos meus pais e dos meus sogros. Tudo me irrita. Depois sinto-me culpada. Durmo mal e ando sempre mal disposta. Não tenho energia para nada. Eu que tinha sempre energia para tudo! E foi por isso que decidi: basta! Está na hora de procurar ajuda. Eu quero voltar a sentir-me a mulher viva, com sangue na guelra, que apesar de todos os medos, sempre me senti”.

  Quantas vezes, entre as exigências desmesuradas de um trabalho que devia entusiasmar mais do que entediar (perdendo-se em burocracias desnecessárias, por exemplo), e a complexidade de compatibilizar tudo isso com uma vida pessoal e familiar já de si complexa, as pessoas não se vão, devagar devagarinho, desencontrando dos seus recursos saudáveis? Quantas vezes, entre a espuma dos dias e a urgência do imediato, as pessoas não fazem por calar (varrendo, invariavelmente, para debaixo do tapete) tudo aquilo que a natureza humana não permitirá nunca que deixemos de sentir? Sempre que assim é, estaremos muito mais próximos – creio - de ficarmos dominados por emoções por pensar que, ao mesmo tempo que alimentam uma espécie de sentimento de solidão - de quem se vê sozinho com as emoções que tenta não sentir (como se isso fosse possível…), não pensar e não comunicar - contaminam todas as áreas da nossa vida. Semeando enfado e ressentimento onde devia haver entusiasmo. Plantando angústia e desamparo onde devia crescer relação e vida. Num ciclo vicioso que urge quebrar. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.  

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Ainda Paris: os monstros também são humanos… por muito que nos custe.

    Ainda a tragédia de Paris. Alguns de nós (por medo, creio) apressaram-se, de forma mais aberta ou mais velada, a associar os atentados da eterna Cidade Luz aos refugiados. Não, muitos de nós não esperaram sequer pela confirmação de que o suposto passaporte sírio é mesmo verdadeiro. Não passou, sequer, pela cabeça da maioria de nós que se pudesse tratar do passaporte de uma das vítimas da carnificina no Bataclan. Porque, claro, não há como um cidadão sírio gostar de heavy metal. Só poderia ser, claro está, o passaporte de um terrorista que, para além das bombas e da Kalashnikov, fez questão de levar a sua identificação consigo para facilitar o cruzamento de dados à polícia.
   Outros, de entre nós, apressaram-se, a culpar os serviços secretos e as falhas na segurança. Afinal de contas tinham havido 1001 avisos e isto não podia ter acontecido. E não podia mesmo. É uma tragédia. Um terror. O mal feito coisa em si. Outros, ainda, apressaram-se a associar o terror aos muçulmanos em geral, como se o mal fosse um exclusivo dos crentes em Alá.
   Perante tamanho terror, esta cisão do mundo entre bons e maus ou entre competentes e incompetentes em matéria de segurança, até pode servir para, num primeiro momento, circunscrever o medo e tornar o sofrimento um bocadinho menos insuportável: o mal estaria bem identificado, teria uma cara e poderia, por isso, ser vencido para sempre. Seria, afinal de contas, só investir nos serviços secretos (por mais que isso seja, evidentemente, necessário) e combater os “maus” (por mais que isso seja, evidentemente, uma necessidade urgente).
   Mas, há mais de 100 anos, aprendemos com Freud que o bem e o mal, assim como a saúde mental e a doença são muito mais polos de um contínuo - relacionado, em boa medida, com a humanidade com que tivemos ou não oportunidade de crescer - do que categorias isoladas (resultantes, as mais das vezes, de um “defeito de fabrico”) que dividem o mundo em branco e preto.
   Por muito que fosse mais fácil dar um rosto ao mal (fosse ele uma etnia ou uma confissão religiosa), a verdade é que tenhamos nós nascido em Portugal, na Síria, na Suécia, nos subúrbios cinzentões de Paris ou Londres, no seio de uma família pobre ou de uma família com sobrenome pomposo, somos todos feitos da mesma matéria. Não há, por isso, qualquer razoabilidade na ideia de que os muçulmanos, por serem muçulmanos, serão mais propensos ao terrorismo. Infelizmente, a maldade feita terror, não é um exclusivo de nenhuma etnia ou confissão religiosa (basta lembrar o cidadão norueguês que disparou indiscriminadamente sobre um acampamento de jovens ou o piloto alemão que assassinou muitas dezenas de pessoas despenhando, aparentemente de forma propositada, o avião da Germanwings).
   A este propósito, dizia-me, por estes dias, um amigo mais velho (que, há um par de décadas, em trabalho, palmilhou, de lés a lés, e vezes sem conta, países como o Irão e o Iraque): “estás a ver o que é um miúdo pobre de uma aldeia perdida no deserto. O horizonte dele é onde o sol se põe. Não tem posses para comprar uma mulher”. Qualquer manifestação mínima de sexualidade - “olhar, só olhar para um corpo feminino (porque a cara está coberta pela burka) – é severamente punida. Não pode beber álcool nem tem qualquer outra fonte de prazer mundano. Não tem qualquer perspetiva de futuro que não seja o de tentar sobreviver dia após dia… estás a ver: um miúdo destes – que não é ninguém e, pior, que não pode sequer sonhar ser seja o que for - não está mais suscetível a ser aliciado por um grupo terrorista? Acenam-lhe com a cenourinha de se tornar importante, com o acesso ao contacto com as mulheres… quanto mais não seja depois de morrer…”. Presumo que sem saber, este bom amigo trouxe-me ao pensamento os teóricos da vinculação que, há 60 ou 70 anos, sustentaram aquilo que hoje, em pleno séc. XXI, ainda é uma “verdade” muito consistente e que, grosso modo, se poderia resumir na ideia de que o sentimento de se ser amado (independentemente da latitude onde se nasce, cresce ou morre) é uma necessidade primária, tão básica quanto uma alimentação saudável. Até que ponto (nas aldeias do deserto, no centro ou na periferia de uma qualquer capital Europeia) miúdos muitíssimo desorganizados e desamparados, não estarão mais suscetíveis de aderir a organizações terroristas que lhes dão a ilusão – muito distorcida e muito doentia, é certo – do sentimento de pertença, de se sentirem valorizados, protegidos e até amados?
   Estou, com isto, a querer desculpabilizar, de forma velada, comportamentos tão hediondos? De modo nenhum! Não vejo como não considerar que têm, sem dúvida, uma dimensão muito significativa de responsabilidade pessoal e que, portanto, uma aproximação punitiva e securitária (sem contemplações) é fundamental na luta contra o terrorismo (seja ele de que natureza for).
   Mas, evidentemente, a complexidade do fenómeno do terrorismo não se compadece com lógicas simplistas e causalidades lineares. Se, na linha de Freud, assumirmos que somos todos feitos da mesmíssima matéria, e com os teóricos da vinculação, que todos precisamos de nos sentir amados (com a sintonia, o colo e as regras que todo o amor implica) tanto quanto precisamos de uma alimentação saudável, então, talvez valha a pena perder algum tempo com a hipótese de que a adesão à violência hedionda talvez seja mais provável sempre que, reiteradamente, não encontramos (nas relações próximas, em primeiro lugar, mas na comunidade em geral também) nenhuma via saudável que simbolize, um bocadinho que seja, o sentimento de se ser contido (no sentido que Bion lhe dava) e amado.
   Perdoem-me a “lamechice”, mas não resisto a citar, a este respeito, o Nélson Mandela (ele que sendo, com inteiríssima justiça, um dos símbolos maiores do melhor que a humanidade alguma vez foi capaz de fazer, não deixou, durante um curto período do início do seu percurso público, de ser um defensor da violência feroz como arma contra violências maiores): “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.

PS: como acho que, simbolicamente, diziam as pessoas que saiam do Estádio de França, ao entoarem, emocionadas, a Marselhesa ou todas aquelas que se disponibilizaram para, naquele fatídica noite, acolherem turistas perdidos no caos, em suas casas, estou convicto de que o medo não vencerá! 

segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Generosidades, medos e outros apelos.

   A Maria tinha tido, naquela manhã, uma consulta médica a propósito de um problema incómodo, que a deixava muito embaraçada. Imaginava-a, por isso, mais cabisbaixa nesse dia. Assim tem sido, nas últimas semanas, de cada vez que tem de se confrontar com a sua condição médica. Só voltaria a arrebitar quando tudo passasse, vaticinara há um par de semanas.
   Chegou à mesma hora de sempre. Mas, ao contrário do que eu imaginara, vinha solta, de peito cheio e olhar vivo. Conta-me que apanhou um médico, “já meio velhote, com ar de avô, está a ver?”, que lhe explicou, detalhadamente, a evolução expectável do seu quadro clínico, que a ouviu e que foi capaz de antecipar algumas das suas angústias e embaraços. “Senti que o médico estava ali mesmo comigo, sabe?”. Continua: “e isso fez-me sentir muito bem. Serenou-me. Voltei para o trabalho e lembrei-me que uma das minhas colegas andava a ler um livro que se chama Justiça Generosa ou qualquer coisa assim. Andei todo o dia a pensar nisso. Nos gestos de generosidade. No gesto de generosidade que aquele médico com ar de avô que conta histórias teve para comigo. E em muitos gestos generosos que foram tendo para comigo ao longo da vida. E em como isso me faz bem. E em como quando as pessoas repetem os gestos de generosidade para connosco, mesmo que, por algum motivo, deixem de fazer parte do nosso círculo de relações, nos acompanham para sempre, como uma espécie de farol que nos guia os passos. E em como ser generosa é muito diferente de ser boazita. Sabe, pensando bem, a esta distância, eu acho que não o procurei só para me ajudar com o pânico em que me deixava a ideia de ter de dar formação aos meus colegas... Pensando bem, a esta distância, eu acho que também queria que me ajudasse a ser menos boazita e mais generosa. Acho que, no trabalho, os meus colegas, o meu chefe, todos falam de mim como a boazita. É melhor ser boazita do que outras coisas, mas soa assim um bocado a “totó”. E eu não quero ser “totó” nenhuma! Acho que queria que me ajudasse a dar um murro na mesa quando vêm, injustamente, para cima de mim. A dizer que não quando sinto que devo dizer que não. Sem culpabilidades nem medos do que possam pensar ou dizer. Sabe, em muitas das coisas boazitas que fiz, acho que não estava a ser tão generosa assim. Os gestos de generosidade são diferentes. Estamos mesmo ali com as pessoas. Tocamos-lhes a alma. Os gestos de generosidade fazem-nos bem. Não servem para acalmar culpabilidades e medos. Vêm de dentro. São genuínos. Acho que é por isso que aproximam as pessoas”. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

domingo, 18 de outubro de 2015

Dores de crescimento

  Os pais do João acabam de chegar da reunião com a Diretora de turma. Apesar dele nunca ter tido notas tão exemplares quanto a irmã mais velha, sempre se foi safando com alguma facilidade. Ainda que o seu lado irreverente lhe tenha, sempre, barrado o acesso ao epíteto de exemplo para a turma (que a irmã foi colecionando ano após ano) nunca, no seu percurso escolar, os pais tinham ouvido queixas graves acerca do seu comportamento. Agora no 11º ano, “quando devia estar preocupado com a média” nota o pai, acumulam-se as faltas. E as negativas. E os repentes impetuosos com a Professora de Educação Física ou o Professor de Química. A juntar a um clima de grande crispação com a mãe e de distância tensa com o pai.
   Os pais estão muito zangados com o João: “Nunca a irmã (já no 1º ano da Faculdade) nos deu dores de cabeça assim” pontua o pai. E muito preocupados: “ele só quer boa vida. Falta às aulas. À 5ª, 6ª e sábado à noite não para em casa. Eu digo-lhe que é melhor ficar em casa a estudar, mas quando dou conta ele já saiu. Eu sei lá com quem é que ele anda” nota a mãe.
 Decidem, de imediato, que o João terá de tirar o piercing que, orgulhosamente, ostenta na sobrancelha. A discussão aquece muito para lá do razoável até que o João corre para o quarto, deixando soltar as primeiras lágrimas só depois de bater a porta com estrondo.
  Na 6ª feira seguinte, enquanto o João ultimava, cuidadosamente, os pormenores do seu estilo milimetricamente “maltrapilho” (como, jocosamente, lhe chama o pai) a mãe diz, mais uma vez, ao João para não sair. Já ele tinha entrado na porta do elevador e ainda a mãe discursava acerca dos malefícios do sair à noite com tanta frequência, na sua idade. A história repetiu-se no sábado seguinte. E nas 5ª, 6ª e sábados que se lhe seguiram.
   A relação entre o João e os pais parece, cada vez mais, uma espécie de guerra fria. A tensão permanente no ar só se materializa em conflito aberto quando o assunto é o piercing. E, aí, não é difícil imaginar que ultrapassa todas as regras do bom senso.
  Talvez o João precise de ajuda para se encontrar no turbilhão de coisas que vai sentindo dentro de si. Talvez os pais precisem de quem os ajude a sintonizarem-se com o João. Falam do medo quanto ao futuro do João. Mas mantêm sob silêncio (talvez na esperança de o fazer desaparecer) o fantasma de não serem bons pais ou do João, verdadeiramente, não gostar deles.
    Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as letras dos Muse e dos Pearl Jam para as suas colegas, talvez pudesse dizer aos pais que, por mais que tenha 1,80 m e barba de homem, precisa muito dos pais. Para lhe balizarem o crescimento com regras claras e firmes, por um lado, e para o segurarem num abraço, por outro.
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como traduz as tácticas em noite de Liga os Campeões, talvez pudesse dizer aos pais que morre de medo de, aos seus olhos, nunca chegar aos calcanhares da irmã. Que as suas negativas não são resultado de incapacidade ou de preguiça (como poderiam pensar os mais distraídos). Que acontecem muito mais em função de estar muito receoso relativamente ao seu próprio valor e que, nessas circunstâncias, às vezes, se adota uma postura sobranceira de: “se eu quisesse tirava boas notas, eu é que não estudo”, que é assim uma maneira de nunca se por à prova!
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem como faz a sua guitarra soar os acordes das músicas dos The Cure, talvez pudesse dizer ao pai que sente muita falta de quando iam ao estádio só os dois ou quando os jogos do Porto na TV eram uma espécie de ritual sagrado vivido a dois. E que, de cada vez que o pai não toma a iniciativa para esses programas a dois, outrora invioláveis, se sente um bocadinho abandonado e com medo de não passar de uma desilusão para o pai. E que chorou, sozinho no quarto – por se sentir abandonado e desvalorizado de uma assentada - quando foi ignorado pelo pai, que queria ver o debate na TV, quando, pela primeira vez, o interpelou para discutir política. Vinha entusiasmado dos dias em que passou fora, com o primo mais velho, na Queima das Fitas: para além dos concertos, da festa, e das cervejas à beira rio, o grupo de amigos do primo discutia política como se fossem mudar o mundo numa só noite.
   Se o João conseguisse traduzir o que sente em palavras tão bem quanto interpreta o espírito do futebol amador quando se esfalfa num ou noutro jogo em casa, talvez pudesse dizer à mãe que, por mais que proteste, se sente protegido e amado de cada vez que ela é mãe galinha. Mas que, de cada vez que ela e o pai não o impedem, com firmeza, de fazer o que não é melhor para si (como nas saídas à noite em catadupa) - e, por mais que isso, num primeiro momento, até o possa fazer sentir triunfante (à semelhança de uma criança que, repetidamente, leva a sua avante com a birra de supermercado) - acaba sempre por o fazer sentir sozinho e um bocadinho inseguro em relação ao amor dos pais, numa lógica de: “se eles gostassem mesmo, mesmo de mim, não me deixavam (custasse o que custasse) fazer o que não é melhor para mim”! Se assim fosse, talvez pudesse falar com os pais, com um primo ou com um amigo mais próximo da discrepância que sente entre a popularidade que tem entre as raparigas e o medo imenso de se chegar com convicção à Margarida do 11º C, por quem suspira intervalo após intervalo e, com quem parece estar a perder terreno a olhos vistos para o betinho do 12º A. Talvez pudesse dizer aos pais que, por tudo isto e muito mais, carrega, dentro de si, um misto de medo, mágoa e raiva. E que este turbilhão - que só parece poder tornar-se mais ou menos manifesto à boleia de um braço de ferro à volta de um piercing na sobrancelha - parece servir de pano de fundo a todos os desencontros que tem vindo a acumular com a vida.

 Tudo parece passar-se, com o João e os pais (e com tantos e tantos adolescentes, adultos e crianças) como se, de repente, estivessem sentados no mesmo banco de jardim, de costas uns para os outros, numa qualquer tarde solarenga de Outono. O que mais queriam era aproximarem-se, sentarem-se lado a lado, frente a frente, entenderem-se de uma vez. Mas chegada a hora da verdade, de tão destreinados que estão em falar claro (numa espécie de ligação direta entre o que sentem e o que põem em palavras), os apelos (toldados pelo medo e pela mágoa) teimassem em sair, invariavelmente, em forma de chega para lá… como que à espera de um descodificador que lhes devolva a simplicidade do falar claro. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

(Não) quero tantas coisas que já (não) sei o que quero!

   O João está a conseguir, no 11º ano, manter a média bem acima dos 18. É barra a biologia, mas é a física e a matemática que mais o encantam. É neto de um médico diferenciado. Desde que começou a brincar com o estetoscópio do avô que todos lhe vaticinaram, mais ou menos em surdina, o futuro: seria nada mais nada menos que um médico brilhante. Essa sempre foi uma meta assumida por si. Sempre até há um par de meses, quando começaram a surgir as dúvidas. A paixão por aviões (não há modelo da Boeing ou da Airbus que não descreva com uma enorme naturalidade) e por máquinas em geral têm-no feito vacilar: a Engenharia Aeroespacial ou a Engenharia Mecânica têm, timidamente, vindo a surgir como hipóteses. Para além disso, diz o João: “eu até me via a investigar Biologia Molecular, por exemplo, mas ser médico mesmo, aquela vertente mais clínica de estar o dia todo a ouvir pessoas, levar com histórias desgraçadas, não sei se é para mim”.
  
  A Joana, da mesma turma, sente-se perdida. Foi, vagamente, alimentando a ideia de enveredar por Enfermagem ou, talvez, tentar Medicina em Espanha. Mas, tem vindo a descobrir que o estudo da biologia humana (que implicaria a Enfermagem ou a Medicina) não a encanta por aí além. Talvez o que mais a seduza num percurso muito ligado à saúde seja a dimensão de relação humana, a ideia de poder ajudar o outro, olhos nos olhos. Mas não morre de amores pelo frenesim de um Hospital ou de um Centro de Saúde. A psicóloga da Escola falou-lhe da área social (com Educação Social ou Serviço Social, por exemplo), como uma possibilidade para concretizar esta sua apetência para funções que possam implicar a relação como instrumento de trabalho.
            
  O percurso profissional é, ainda, fonte de sustento, como sempre foi. Mas é, cada vez mais, fonte de (in)satisfação e (não)realização pessoal. Tenho para mim, por isso, que quando se escolhe uma área profissional que compatibilize paixão e apetência, se estará mais próximo do trilho do sucesso e, mais importante, do caminho da realização e da satisfação profissional.
 Tenho, por isso, a ideia de que, em muitas circunstâncias, uma orientação vocacional cuidadosa e aprofundada é muito mais do que um capricho. Será, tenho para mim, uma ajuda valiosa para sustentar uma opção demasiado relevante para ser deixada ao acaso ou ao sabor de um impulso de momento. Sê-lo-á especialmente para todos aqueles para quem, no meio de tantas escolhas possíveis, não parece emergir, de dentro, uma convicção segura acerca do caminho a seguir. Será, tenho para mim, uma ajuda tão mais valiosa quanto mais puder cruzar interesses e apetências vocacionais com características de personalidade e variáveis cognitivas. Afinal de contas, é fácil imaginar que um arquiteto que case rigor com abstração espacial e criatividade estará mais perto de ser um bom arquiteto. Ou que um engenheiro que compatibilize raciocínio lógico, abstração espacial e raciocínio mecânico estará mais próximo de se poder destacar. Ou que um professor será muito mais facilmente um bom professor se, para além do domínio científico das matérias, tiver interesse e apetência para gerir relações interpessoais. Ou que um enfermeiro ou um médico, para além do domínio científico e de todo o raciocínio analítico complexo (que permite, por exemplo, chegar a um diagnóstico certeiro) tenderá a ser tão melhor médico ou enfermeiro quanto mais apetência tiver para gerir relações interpessoais e estabelecer relações de ajuda. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

terça-feira, 22 de setembro de 2015

“Mas como é que se pode ajudar as pessoas só com conversa?”

"Mas como é que se pode ajudar as pessoas só com conversa?" perguntava a Joana, num tom mais curioso do que desconfiado.

 O modelo positivista de ciência foi, durante muito tempo, tempo demais, alimentando a ideia de que corpo e mente seriam duas entidades rigorosamente separadas ou, quando muito, com uma ligação de sentido único (em que o biológico determinava a experiência psicológica). A ser assim, claro que sintomas de ansiedade ou agitação psicomotora, sintomas obsessivos ou de impulsividade, depressivos ou de tonalidade mais narcísica, etc. etc. só poderiam decorrer de desequilíbrios biológicos (as mais das vezes contidos no código genético) que, por conseguinte, poderiam ser corrigidos, única e exclusivamente, com medicação. Chegou, mesmo, entre alguns setores da ciência, a ter-se a esperança de que os avanços notáveis no conhecimento do sistema nervoso seriam capazes de traduzir milimetricamente a subjetividade humana em circuitos neuronais e fórmulas bioquímicas. A ser assim, o anúncio do fim da Psicologia e das psicoterapias estaria, portanto, por poucos anos.
  Mas foram, curiosamente, os avanços notáveis nas neurociências que, ao mapearem muitos dos caminhos neuronais e bioquímicos da subjetividade humana, contribuíram decisivamente para a clarificação (que vem sendo reclamada pela Psicologia há muitas décadas) de que as relações humanas, especialmente as mais próximas e significativas, são fundamentais no desenvolvimento humano e na estruturação daquilo que são os aspetos mais saudáveis e mais doentes das pessoas. Foram, também, os avanços admiráveis nas neurociências que permitiram clarificar que mente e corpo são duas faces da mesma moeda, que comunicam e se constroem mútua e permanentemente. Não que o substrato biológico ou o código genético não sejam fundamentais. São, com toda a certeza. Mas, ao contrário da visão que parecia decorrer de um modelo positivista de ciência (radical em muitos aspetos), se excetuarmos os casos de doença genética (como a trissomia XXI, por exemplo), avolumam-se as evidências de que, em matéria de saúde mental, a sustentação biológica e o código genético estão longe de ser uma espécie de fatalidade: interagem e modificam-se com a experiência e com a relação.
  Nestas circunstâncias, a angustia, a ansiedade, a insegurança, o medo ou os sintomas depressivos, por exemplo, decorrerão, muitas das vezes, mais de equívocos e desencontros continuados na relação com os outros significativos e com a verdade do que se sente, ou de experiências mais ou menos traumáticas do que propriamente de desequilíbrios bioquímicos (que mais do que causa, serão, nesta aceção, o correlato biológico do sofrimento). É aqui que, a meu ver, entra a utilidade de diversos modelos e técnicas de acompanhamento psicológico. Não apenas como um espaço em que as pessoas são genuinamente ouvidas e escutadas, como porventura poderia pensar a Joana. Isso, diria ela (talvez com razão), não sendo pouco e muito menos fácil, poderá, com alguma sorte, ser encontrado, também, no seio de algumas relações amorosas ou junto de um ou outro grande amigo. Mas também (talvez o aspeto mais diferenciador), enquanto espaço criativo em que a pessoa vive “na pele” a experiência de haver alguém ao pé de quem é possível sentir, sem claudicar, as angústias de que vai procurando fugir, ao mesmo tempo que se compreendem, legendam e ligam com os aspetos essenciais da sua vida. Esta nova relação, ao desconstruir alguns aspetos dos padrões velhos (que, em grande medida, trouxeram a pessoa até ao ponto onde se encontra), funcionará, assim, como uma espécie de tubo de ensaio para uma relação mais clara e genuína com tudo aquilo que sente (pensando as emoções em vez de, continuadamente, as procurar silenciar). E, deste modo, como um treino protegido primeiro, e como uma prática generalizada às relações da “vida real” depois, tornando-as mais criativas, harmoniosas, assertivas e próximas.

domingo, 13 de setembro de 2015

E quando o regresso às aulas dá um nó na barriga?

   O João anda elétrico. Tudo o entusiasma no corredor que o hipermercado preparou milimetricamente para o regresso às aulas. Os cadernos, as canetas de feltro, os lápis de minas. O cheiro novo dos manuais. É assim com o João, a Francisca e o Tomás. Mas não com a Filipa, que se arrasta pelo corredor do material escolar, entre as chamadas de atenção irritadas da mãe. A iminência do início das aulas faz soar, dentro de si, todas as campainhas de alarme. Estão a voltar as dores de barriga e as dores de cabeça. As mesmas em que, no final do ano passado, tentava apanhar boleia para não ir à escola pela manhã. As mesmas que valeram uma série de chamadas da Professora a sugerir à mãe que fosse buscar a Filipa porque não se estava a sentir bem. Chegava a ficar pálida e ensopada em suores frios. O veredito médico, suportado em análises detalhadas, não deixa margem para dúvidas: a Maria é, felizmente, uma menina saudável! Saudável, mas completamente dominada por um medo sem fim...
   Sempre muito metida consigo, não tem muitos amigos na Escola. Nem fora dela, na verdade. Tem as competências cognitivas mais do que suficientes para ter sucesso escolar mas, de cada vez que é a sua vez de ler alto fica gelada. Não que não seja capaz de ler. É! Mas a voz fica trémula e a leitura cada vez mais entrecortada, à medida que a sua expressão se fecha cada vez mais e o rubor parece poder rebentar a qualquer momento numa cascata de choro de medo e raiva. Nas fichas de avaliação não é muito diferente: os exercícios são do mesmo tipo dos que fez com a explicadora, sem dificuldades de maior. Mas chegada a hora da verdade, a mão treme e o raciocínio bloqueia.
   A avaliação da Professora, a convicção da explicadora e os resultados dos testes cognitivos a que foi sujeita na escola apontam (todos) no mesmo sentido: não é por falta de competências cognitivas que a Filipa não tem boas performances. Os pais querem muito acreditar nisso, mas parecem ficar presos a uma discrepância por demais evidente entre os 90% do irmão mais velho e as baixas performances da Filipa. Como se nunca, dentro deles, deixasse de remoer, baixinho, a dúvida: “e se a nossa Filipa é mesmo incapaz?”. 
   Mas não é só na matemática e no português que a Filipa parece perder por falta de comparência. Também foi assim no basket: nem a vantagem competitiva de ter uma altura bem acima da média a impediu de desistir (e de jogar de forma desistente desde o primeiro momento). É assim na relação com as crianças da idade dela ou com o irmão, ao pé de quem se coloca, invariavelmente, numa postura de patinho feio.

  Foi-se olhando, vezes de mais, para o sucesso escolar como uma variável diretamente proporcional às competências cognitivas. E, mesmo depois de tantas evidências (teóricas, clínicas e empíricas), para as competências cognitivas como se fossem asseticamente independentes do desenvolvimento afetivo. Como se a crença que os adultos significativos têm nas capacidades da criança fosse um pormenor de somenos importância. Como se fosse compreensível um craque da bola falhar um penalti na final das Champions porque lhe tremem as pernas, mas já não fosse equacionável que uma criança completamente dominada pelo medo (de falhar, de desiludir os pais e os professores, de ser um zero à esquerda ou a “burra oficial” da escola, da família, do bairro, etc.) trave a fundo a expressão de qualquer potencial cognitivo, por mais sofisticado que possa ser. Como se não fosse expectável que uma criança que vai acumulando, dentro de si, equívocos atrás de equívocos - por, invariavelmente, não conseguir entender, desenriçar e traduzir em palavras e em histórias a complexidade do que vai sentindo – possa começar a manifestar, progressivamente, dificuldades nos mais diversos domínios. Como se não fosse natural que a confusão e o medo que poderão daí decorrer se façam sentir de forma cada vez mais vincada e generalizada a várias áreas. Como se sentir-se lida por dentro, investida de expectativas, valorizada nas suas competências e parada com firmeza nos seus exageros, não fizesse a curiosidade e o entusiasmo ganharem terreno ao medo. Como se, quando assim é, não estivéssemos todos (crianças e adultos) muito mais aptos a arriscar para lá do perímetro de segurança. Como se, quando assim é, não estivéssemos todos (crianças e adultos) muito mais próximos do sucesso e da destreza cognitiva. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Pelo direito à tristeza!

    A Joana foi fazer umas análises de rotina que, rapidamente se transformaram numa bateria de exames, num internamento e, pior, num diagnóstico de cancro. E num ápice, o chão ruiu, bem por debaixo dos seus pés. O marido e o filho, aterrorizados, desdobravam-se em mimos e cuidados. Mal as visitas se tornaram menos exclusivas vieram as colegas de trabalho. Bem intencionadas, às primeiras lágrimas da Joana, abafaram-na com : “tens de ser forte! Tens de te conformar! Tens de pensar positivo! Tens de reagir!”. Martelava, na cabeça da Joana, uma raiva profunda e silenciosa. Se fosse traduzida em palavras, seria, em versão soft, qualquer coisa como: “têm ideia do que estão a dizer?! Fazem uma pequeníssima ideia daquilo porque estou a passar?!” 
 Viria, felizmente, a correr tudo bem com a Joana. Disse, anos mais tarde: “sentia-me muito melhor depois de chorar com o meu marido. Esses momentos davam-me força. Tenho um marido incrível!”

   Talvez a falta de espaço para a tristeza seja ainda mais sufocante quando as pessoas adoecem. É preciso pensar positivo, reagir, fazer e acontecer. Como se, de repente, não fosse a coisa mais natural do mundo uma pessoa vir-se abaixo quando, sem apelo nem agravo, lhe cai o mundo em cima. Como se, de repente, nestas circunstâncias (como em tantas outras em que o chão parece fugir bem por debaixo dos pés), não fosse a coisa mais natural do mundo sentir uma raiva a querer saltar pela boca, um medo de morte ou uma tristeza que faz do peito uma espécie de buraco negro sem fim.  
   Sugerir, à cabeça, a uma pessoa atordoada com a brutalidade das notícias, com o desgaste dos tratamentos ou com a omnipresença do fantasma de risco de vida, que tem de pensar positivo, por mais que seja bem-intencionado (e é, quase sempre), corre o risco de magoar. E estará – tenho para mim- a léguas de se sintonizar com o que as pessoas sentem.
   Ficar enredado em segredos do tu sabes que eu sei que tu sabes, em que todos fingem que não se passa nada, por mais que seja bem intencionado (e é, quase sempre) corre o risco de deixar as pessoas demasiado sozinhas com o seu sofrimento. Talvez o que as pessoas precisem, num primeiro momento, seja de um colo para chorar abertamente, para poderem ficar tristes sem a preocupação de que o colo possa quebrar. Chorar lava a alma, mas só (tenho para mim) se for num abraço que não se assuste com a tristeza nem se parta com o sofrimento. Resistir aos atalhos que atiram a tristeza (o medo ou a raiva), invariavelmente para debaixo do tapete; acolher o sofrimento, sintonizarmo-nos com ele, traduzi-lo em palavras, em gestos e em olhares… talvez seja a forma mais efetiva de ajudar a esperança a brotar. E, com ela, a proatividade e o espírito combativo.  

(Inspiração em: http://www.publico.pt/portugal/jornal/cancro-afinal-e-permitido-chorar-25995723)


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue -  sendo, por vezes, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

O desejo não vai lá com espinafres!

   Os avanços na psicofarmacologia têm sido uma bênção para a humanidade. Já a ideia de que tudo (a falta de desejo, a insegurança, a ansiedade, a tristeza, etc.) se resolve com um comprimido mágico parece-me muito pouco razoável.
   A ideia de uma espécie de pílula do desejo feminino, mais ou menos milagrosa, que pode resolver todas as dificuldades da vida sexual de um casal assenta, parece-me, na conceção de que homens e mulheres serão assim uma espécie de autómatos que têm de reagir a estímulos de forma mais ou menos indiscriminada.              
   Parece-me que esta ideia de que basta um comprimido que mexa na bioquímica da sexualidade para, a seguir, tudo se resolver na vida sexual e amorosa de um casal é pouco razoável. E muito ao jeito do pensamento mágico do Popeye e dos seus espinafres com superpoderes. Por mais que um comprimido possa ajudar numa ou noutra circunstância muito específica, talvez o essencial do desejo não possa mesmo passar à margem de um olhar mais relacional. Antes de nos focarmos na bioquímica, talvez valha a pena perceber:
se aquele homem e aquela mulher continuam a erotizar a relação ou se se deixaram resvalar, por atos e omissões, para uma espécie de cumplicidade fraternal;
se aquele homem e aquela mulher investem e convivem bem com o próprio corpo;
se aquele homem e aquela mulher ainda se arrepiam com o toque do outro ou sentem-no, pelo contrário, como uma espécie de invasão consentida;
se aquele homem e aquela mulher estão atentos ao outro ou, pelo contrário, há muito que se viraram para dentro, a braços com sofrimentos e fantasmas que não encontram espaço de partilha (e de reparação).
   Talvez por isso, não faça muito sentido – parece-me – olhar para as dificuldades da vida sexual como a principal fonte dos desencontros de um casal. Talvez seja um bocadinho ao contrário: talvez a vida sexual não seja, muitas das vezes, mais do que o reflexo da qualidade da relação. A ser assim, mais do que com comprimidos, talvez as dificuldades sexuais daquele homem e daquela mulher, se desvaneçam quando (re)começarem a olhar dentro dos olhos um do outro.

(Inspiração: http://expresso.sapo.pt/sociedade/2015-08-22-Viagra-feminino.-Mulheres-e-homens-tem-cerebros-diferentes-amor-e-mimo-contam-muito )


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

terça-feira, 11 de agosto de 2015

No final (nem sempre) tudo bate certo!

O Bernardo tem demasiada história para tão tenra idade. Vítima de maus-tratos e abandonos sucessivos nos primeiros anos de vida, conserva, ainda assim, um olhar vivo e apelativo. Talvez isso o tenha ajudado a encontrar-se nuns novos pais que, embora ainda à procura da melhor forma de o ajudar a crescer, têm a alma de quem, genuinamente, está determinado a alumiar-lhe o caminho e a amparar-lhe as dores de crescimento.
   As atitudes provocatórias para com a Escola sucedem-se. O olhar vivo e apelativo ajuda a reunir recursos e pessoas à sua volta, mas os atos sucessivos de indisciplina deixam os pais e uma parte muito significativa da Escola com os cabelos em pé. As notas variam rapidamente entre os 70% e os 15%. A oscilação acentuada das suas performances escolares não parece acontecer tanto pela especificidade das matérias, mas mais pelo estado da relação com a Escola e com este ou aquele Professor em específico, no momento particular das avaliações.  
   Curiosamente, as pessoas de quem mais gosta são aquelas para quem, reiteradamente, dirige a sua insolência de uma forma mais vincada e inflamada. É assim com o Professor de Português e com a Professora de Matemática. É assim com a mãe. É assim com o pai. Não! O Bernardo não precisa da complacência de quem feche os olhos à sua insolência insuportável, numa lógica de: “coitadinho, já passou por tanto”. Estou em crer que o Bernardo precisa, em primeiro lugar, de quem não desista dele. De quem o ajude a perceber que é especialmente insolente com quem mais gosta, como se, à cautela, precisasse de se certificar vezes sem conta que não vai ser, uma vez mais, deixado ao abandono por quem mais precisa de ter perto de si. Precisa, tenho para mim, de quem o ajude a transformar o que sente em palavras. E as palavras em histórias. Ao mesmo tempo que não cede um milímetro na hora de o pôr no lugar.
               
   A qualidade das relações que mantemos parece, de facto, refletir-se em muitos aspetos cruciais do nosso percurso de vida. Será assim, especialmente, com as experiências infantis, que funcionarão, em muitos aspetos, como um protótipo para as relações futuras. Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos tornarão mais predispostos para sermos mais ou menos medrosos, mais ou menos afoitos, mais ou menos confiantes (e confiáveis), mais ou menos desconfiados das nossas próprias capacidades. Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos deixarão mais perto - ou pelo contrário mais longe – de convivermos bem com o que sentimos, de confiarmos no outro, de nos aproximarmos dele e de gerirmos bem a proximidade. Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos deixarão mais ou menos aptos para, perante o desconhecido, cerrarmos os punhos e acreditarmos – por intenções e por atos -  que “no final tudo bate certo” (à boa maneira do Segundo Exótico Hotel Marigold).       
    Mas, por mais que as experiências infantis se reflitam vida fora de uma forma muito significativa, estarão longe de ser uma espécie de oráculo determinista a que é impossível fugir. Tenderão, muitas vezes, a eternizar-se em relações novas com padrões de funcionamento antigos, numa lógica viciada de mudar para que o essencial fique na mesma. Mas não terá, forçosamente, de ser assim. Parece-me.  
   Talvez a reparação efetiva de feridas abertas por experiências mais ou menos traumáticas ou por uma história relacional muito marcada por desencontros e mal entendidos, não possa é passar à margem de novos padrões relacionais, impulsionadores de relações verdadeiramente diferentes (com pessoas novas e pessoas de sempre) e mais saudáveis (que ajudem a sintonizar-se com a própria história e que instiguem a olhar nos olhos aquilo que se sente, a traduzi-lo em palavras e enredos partilhados, primeiro, e em ações plenas de intencionalidade, depois). Terá este de ser, sempre, um dos eixos centrais de uma psicoterapia. Parece-me. 

(Inspiração: http://ww2.kqed.org/mindshift/2014/12/19/which-early-childhood-experiences-shape-adult-life/)


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Por minha culpa, minha tão grande culpa.

    A Maria estava preocupada com a filha: uma menina muito perfecionista, híper-educada, que alternava um registo sossegado e híper bem comportado com alguns, raros mas muito ruidosos, episódios de fúria. Não demoraria até a Maria, mulher sensata e afetuosa, dar por si a falar-me da forma como, às vezes, se acha um bocadinho exigente de mais, considerando que isso, involuntariamente, poderia estar a contribuir para o registo excessivamente certinho da filha. Fluente, rapidamente salta para o pequeno grande prazer que representam para si os pequenos-almoços de sábado, a sós com a filha e o marido, num café lá do bairro. Ou melhor, que representavam. A postura vincada de reprovação da sua própria mãe, perante tais prazeres terrenos, foi tão insistente que a fez desistir da ideia. Diz-me que tem sido assim com quase todos os pequenos prazeres: “não aguento a culpa que ela me faz sentir. Se visse a cara dela. Eu gosto muito dela, mas depois fico que nem a posso ver à frente. Mas não lhe digo nada. Ficava com remorsos se dissesse”. Com o afeto e a sensatez de quem é capaz de se colocar em causa com uma transparência cristalina, não demorará muito mais tempo a dizer-me, entre lágrimas: “eu compreendo a minha mãe. Ela foi criada com muitas dificuldades. Mas eu não posso continuar a reger a minha vida por aquilo que ela vai ou não vai achar. Eu vou ter de lhe explicar que não pode ser assim. Que eu tenho de viver a minha vida sem me sentir culpada por isso. Sem querer, isto acaba por se refletir na minha filha. Fico tão zangada com a minha mãe por abdicar do que gosto e sinto-me tão culpada por isso... que, às vezes, faço o mesmo com a minha filha”.

    A investigação recente vai dando substrato empírico àquilo que, em clínica, há muito se vem sustentando: a culpa faz mal à saúde! Sugerem alguns estudos que, em crianças, a culpa excessiva aumenta a probabilidade de quadros psicopatológicos (depressivos nomeadamente) na idade adulta, e se associa a alterações no sistema nervoso, ao nível da ínsula.
   A capacidade de olharmos para dentro, de nos pormos em causa e de olharmos nos olhos os erros (a que, em alguns contextos, se foi chamando culpabilidade) parece ser um indicador claro de saúde mental. Ajuda-nos a crescer com as falhas, ao mesmo tempo que nos recorda, a cada momento, que não somos omnipotentes. Ajuda-nos a conviver com a ideia da inevitabilidade do erro, ao mesmo tempo que nos instiga para verdadeiros movimentos de reparação.
   Já a culpa excessiva parece consumir por dentro. Não parece deixar espaço para a reparação ou para o aprender com a experiência de que falava Bion. Fecha, bloqueia e magoa. Tanto que resvala, tantas vezes, para um quase: “peço desculpa por existir”, de quem parece assumir como suas as suas e as culpas alheias. Magoa. Tanto que, tantas vezes, se torna insuportável e resvala para uma projeção massiva e insensata da culpa, que a alivia, por momentos, mas a parece alimentar a prazo.
   Talvez por isso, seja fundamental pensarmos a educação como um espaço que, ao instigar a audácia e a autonomia, acarinha a falha e o erro. Conviver melhor com a falha abrirá espaço para aprender com ela. Conviver melhor com o erro abrirá espaço para se arranjar forma de o reparar.

(Inspiração:http://www.theatlantic.com/health/archive/2015/01/childhood-guilt-adult depression/384176/


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.  

quinta-feira, 30 de julho de 2015

E quando se suspira... pelo fim das férias?

  Por esta altura, muitos são os que vão suspirando pelas férias, enquanto vagueiam pelas fotos de praias de areias finas e águas cristalinas que os seus amigos parecem pôr de propósito no facebook só para, nestes últimos dias antes do merecido dolce fare niente, fazer o relógio andar ainda mais devagar
 Com o Xavier parece ser um bocadinho diferente. Casado e pai de duas filhas, decidiu procurar ajuda porque não gosta das férias: “tirar férias é um tormento. Comigo está tudo bem. Se não fossem as férias, estava tudo ótimo”. Pergunto-lhe se me pode explicar um bocadinho melhor, o que faz, tentando disfarçar a agitação: “ todos os anos vamos de férias para o Algarve. Quinze dias. A minha mulher e as miúdas querem ir para a praia, passear na marina à noite, fazer churrascos, essas coisas… Eu não aguento! No ano passado, tive de ir comprar uma pen para ter net móvel. Tinha de trabalhar! As coisas ficavam atrasadas. Quinze dias sem fazer nada é muito tempo. E elas depois andam sempre de má cara porque quero ficar em casa a trabalhar. Não entendem”.
   O Xavier é um profissional de sucesso. Trabalhador incansável, tem uma vida financeira estável, que lhe permite manter uma boa casa, um carro familiar de alta cilindrada e um outro utilitário, uma casa de férias no Algarve, colégios caros e atividades extra-curriculares para as filhas, etc.
  Mas não só as férias que o inquietam. Os sábados passa-os a trabalhar. Aos domingos, depois do jogo de vólei das filhas (passado, claro, a responder a e-mails de trabalho no i-phone) e do almoço na casa dos pais ou dos sogros, esquiva-se para o escritório lá de casa, adiando, uma vez mais, o passeio de mão dada com a mulher, ao entardecer.
  À noite, por muito cansado que esteja, tem quase sempre grandes dificuldades em adormecer. Ao ar amuado da mulher por (quase) nunca o sentir ali, realmente perto dela, juntam-se as 1001 preocupações de trabalho. Estão sempre presentes, mas teimam em agudizar-se quando apaga a luz.
  Talvez o que o Xavier queira dizer, com o seu apelo, seja qualquer coisa como: transporto tanta angústia dentro de mim, que temo que a única forma de a ir fintando seja esta espécie de hiperatividade funcional (no sentido que Sami-Ali lhe dá). Parar (seja para estar na praia ou numa esplanada a gozar a brisa do entardecer) é ser, brutalmente, invadido por ela. Talvez o que o Xavier queira dizer, com o seu apelo, seja que este registo agitado e híper-funcional em que tem estado mergulhado, ao mesmo tempo que vai (cada vez menos) fintando a angústia, o vai afastando, cada vez mais, de quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos…) o pode ajudar a transformar a angústia em palavras, as palavras em histórias e as histórias em vida. Se o Xavier conseguisse ser mais claro, talvez tivesse dito: ajude-me a entender e a transformar toda esta angústia, para parar de, à boleia do trabalho, fugir dela e, com isso, afastar quem (a mulher, as filhas, os pais, os amigos, etc.) me pode ajudar a desfrutar do trabalho, da esplanada, do pôr-do-sol… da vida.

  Num mundo muito centrado na ideia de sucesso, corremos o risco desta espécie de hiperatividade funcional ser valorizada. Num primeiro momento até pode representar, de facto, ganhos de produtividade e um salto considerável no percurso profissional. Mas, à semelhança do que alguns dizem acerca da dívida de alguns países do sul da Europa, é insustentável a prazo. Correr por gosto não cansa. Já correr por medo (o medo de que à falta de um registo híper-funcional que a sustenha, a angústia tome conta de tudo), tenho para mim, dá maus resultados, a prazo. Talvez por isso o ócio (dos passeios de mão dada na brisa da tarde, às jantaradas de amigos, passando pelas reuniões familiares ou pelo dolce fare niente) seja fundamental para nos apaixonarmos pelo trabalho e, muito mais importante do que isso, pela vida! 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais, está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

Férias, Adamastores e outros gigantes.


O Duarte tem 10 anos acabados de fazer. A festa foi rija. Vieram todos os amigos. Todos menos o Frederico. Os pais acharam que ele tinha de ficar a estudar para o exame de Matemática. Rija, mas dominada pelas conversas acerca do exame da próxima semana. Conversa de pais, claro, que o Duarte e os amigos estavam mais interessados em tirar as teimas do 2-2 que a chamada para entrar da Professora impediu de desempatar.

Miúdo de olhar vivo, o Duarte tem boas notas e muitos e bons amigos. As observações negativas da Professora nunca vão além de um “é muito conversador” (o que, como todos sabemos é, à partida, uma espécie de atestado de vida… na ponta da língua). Os exames não vão mexer-lhe com as notas. Pelo menos de forma significativa. Mas, apagadas as velas, o exame aproxima-se a passos largos. A dois dias do exame, a mãe acorda o Duarte à mesma hora de todos os dias. Não, desta vez, o Duarte não salta da cama com o entusiasmo de quem ainda vai ter 20 minutos para jogar futebol antes de entrar na sala. Está envergonhado. Há anos que não fazia xixi na cama. Voltaria a fazer na noite seguinte, e na que se lhe segue, ainda. “Largou tão bem as fraldas. Nunca foi de fazer xixi na cama. O que se passa com o meu Duarte? Andará a abusar da coca-cola?” interroga-se a mãe para com os seus botões…

A Professora – quase sempre empenhada, dinâmica, afetuosa, segura - ao longo de todo o ano letivo, foi procurando serenar as crianças perante o “fantasma” do exame. Mas, desta vez, a serenidade firme que quase sempre acompanhou o “claro que vai correr bem” em momentos de maior insegurança do Duarte e de cada um dos seus colegas (fosse com as notas ou com os torneios inter-escolas) foi sendo levemente contaminada por uma réstia de preocupação. O suficiente para o “claro que vai correr bem” não soar da mesma maneira ao Duarte & Companhia. A Professora – quase sempre bem preparada, segura, empenhada, dinâmica e afetuosa - temia, agora, ainda que ao de leve, que uma possível discrepância entre os resultados da sua avaliação durante o ano e os do exame nacional pudesse abrir o flanco para mais uma pequena bicada (a juntar a outras bem mais substanciais, como a falta de colocação que a tem assolado nos últimos anos) na sua autoestima profissional.

Os pais do Duarte sempre tiveram muito orgulho nas suas notas. Para além disso, sabem bem que, por mais que as notas sejam importantes (e são!), estão longe de ser o mais importante! Orgulham-se, por isso, da “pinta” do filho, das suas fintas e golos e, muito em especial (mais ou menos secretamente), das suas saídas desconcertantes. Como a Professora, o seu “vai correr tudo bem” (seja a propósito das fichas de avaliação, do teatro da festa de Natal, da apresentação pública de viola ou da prova de natação) é quase sempre sereno, firme e afetuoso. Mas, como acontece com a Professora, desta vez parece ser dito com um nadinha de apreensão no olhar. Afinal de contas, um exame nacional é um exame nacional. A Escola mudou muito nas últimas décadas, mas não vá o diabo tecê-las: pairam no ar, lá bem longe, já difusas, as histórias de avós e tios com os exames de 4ª classe, em tempos idos, de muito maior rigidez.
O Duarte tem muita vida no olhar, uma Professora e pais firmes, seguros e afetuosos (ainda que, muito circunstancialmente, possam, porventura, estar a vacilar um bocadinho). Passados três ou quatro dias, a atenção regressa à bola e às balizas, à piscina e à viola, e o controlo dos esfíncteres está de regresso como se nunca tivesse tirado férias para os exames. Felizmente, há muitos Duartes, com pais e professores tão seguros, firmes e afetuosos como os dele. Quando assim é, na pior das hipóteses, os Duartes até podem, muito circunstancialmente, abanar um bocadinho com os exames. Mas nada que não se resolva num abrir e fechar de olhos…
Mas, e se o nadinha de apreensão da Escola, dos Professores e dos pais se transforma numa pressão tal (mais ou menos silenciosa) que, rapidamente, se torna ingerível para qualquer criança? Exigir o melhor do esforço de cada criança está longe de ser sinónimo de pressão alta!

Tenho dúvidas se, do ponto de vista pedagógico, os exames nacionais no 1º ciclo trarão, no contexto atual, muitos ganhos. Mas estou plenamente convencido que, seja como for, o que não fará sentido nenhum é criar-se uma atmosfera tal em torno dos exames das crianças que, de repente, aquilo que até poderia ser visto como uma espécie de “treino precoce de adaptação” para os exames que hão-de vir nos anos mais avançados do Ensino Secundário (ao mesmo tempo que, de uma forma transversal, aferia conhecimentos e competências) se transforme num verdadeiro Cabo das Tormentas (com direito a Adamastor e tudo!), que é preciso dobrar antes das férias grandes. Afinal de contas, exigir o melhor do esforço de cada criança estará muito longe de significar pressão alta!
A fazer fé nas notícias sobre um artigo de opinião inglês (que se tornaram virais nas redes sociais) que sugere que o medo do fracasso está, a passos largos, a querer, nas crianças, destronar o medo do escuro (e que, de resto, coincide, em certo sentido, com aquilo que vou sentindo no trabalho com crianças e pais) será caso para dizer, “mal por mal, volta bicho papão, estás perdoado!”.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.