Ainda a tragédia de Paris. Alguns de nós (por
medo, creio) apressaram-se, de forma mais aberta ou mais velada, a associar os
atentados da eterna Cidade Luz aos refugiados. Não, muitos de nós não esperaram
sequer pela confirmação de que o suposto passaporte sírio é mesmo verdadeiro.
Não passou, sequer, pela cabeça da maioria de nós que se pudesse tratar do
passaporte de uma das vítimas da carnificina no Bataclan. Porque, claro, não há
como um cidadão sírio gostar de heavy
metal. Só poderia ser, claro está, o passaporte de um terrorista que, para
além das bombas e da Kalashnikov, fez questão de levar a sua identificação
consigo para facilitar o cruzamento de dados à polícia.
Outros, de entre nós, apressaram-se, a
culpar os serviços secretos e as falhas na segurança. Afinal de contas tinham
havido 1001 avisos e isto não podia ter acontecido. E não podia mesmo. É uma
tragédia. Um terror. O mal feito coisa em si. Outros, ainda, apressaram-se a
associar o terror aos muçulmanos em geral, como se o mal fosse um exclusivo dos
crentes em Alá.
Perante tamanho terror, esta cisão do mundo
entre bons e maus ou entre competentes e incompetentes em matéria de segurança,
até pode servir para, num primeiro momento, circunscrever o medo e tornar o
sofrimento um bocadinho menos insuportável: o mal estaria bem identificado,
teria uma cara e poderia, por isso, ser vencido para sempre. Seria, afinal de
contas, só investir nos serviços secretos (por mais que isso seja,
evidentemente, necessário) e combater os “maus” (por mais que isso seja,
evidentemente, uma necessidade urgente).
Mas, há mais de 100 anos, aprendemos com
Freud que o bem e o mal, assim como a saúde mental e a doença são muito mais
polos de um contínuo - relacionado, em boa medida, com a humanidade com que
tivemos ou não oportunidade de crescer - do que categorias isoladas
(resultantes, as mais das vezes, de um “defeito de fabrico”) que dividem o
mundo em branco e preto.
Por muito que fosse mais fácil dar um rosto
ao mal (fosse ele uma etnia ou uma confissão religiosa), a verdade é que
tenhamos nós nascido em Portugal, na Síria, na Suécia, nos subúrbios cinzentões
de Paris ou Londres, no seio de uma família pobre ou de uma família com sobrenome
pomposo, somos todos feitos da mesma matéria. Não há, por isso, qualquer razoabilidade
na ideia de que os muçulmanos, por serem muçulmanos, serão mais propensos ao
terrorismo. Infelizmente, a maldade feita terror, não é um exclusivo de nenhuma
etnia ou confissão religiosa (basta lembrar o cidadão norueguês que disparou
indiscriminadamente sobre um acampamento de jovens ou o piloto alemão que
assassinou muitas dezenas de pessoas despenhando, aparentemente de forma propositada,
o avião da Germanwings).
A este propósito, dizia-me, por estes dias,
um amigo mais velho (que, há um par de décadas, em trabalho, palmilhou, de lés
a lés, e vezes sem conta, países como o Irão e o Iraque): “estás a ver o que é
um miúdo pobre de uma aldeia perdida no deserto. O horizonte dele é onde o sol
se põe. Não tem posses para comprar uma mulher”. Qualquer manifestação mínima
de sexualidade - “olhar, só olhar para um corpo feminino (porque a cara está
coberta pela burka) – é severamente punida. Não pode beber álcool nem tem
qualquer outra fonte de prazer mundano. Não tem qualquer perspetiva de futuro
que não seja o de tentar sobreviver dia após dia… estás a ver: um miúdo destes –
que não é ninguém e, pior, que não pode sequer sonhar ser seja o que for - não
está mais suscetível a ser aliciado por um grupo terrorista? Acenam-lhe com a
cenourinha de se tornar importante, com o acesso ao contacto com as mulheres…
quanto mais não seja depois de morrer…”. Presumo que sem saber, este bom amigo trouxe-me
ao pensamento os teóricos da vinculação que, há 60 ou 70 anos, sustentaram
aquilo que hoje, em pleno séc. XXI, ainda é uma “verdade” muito consistente e
que, grosso modo, se poderia resumir na ideia de que o sentimento de se ser
amado (independentemente da latitude onde se nasce, cresce ou morre) é uma
necessidade primária, tão básica quanto uma alimentação saudável. Até que ponto
(nas aldeias do deserto, no centro ou na periferia de uma qualquer capital
Europeia) miúdos muitíssimo desorganizados e desamparados, não estarão mais
suscetíveis de aderir a organizações terroristas que lhes dão a ilusão – muito distorcida
e muito doentia, é certo – do sentimento de pertença, de se sentirem valorizados,
protegidos e até amados?
Estou, com isto, a querer desculpabilizar,
de forma velada, comportamentos tão hediondos? De modo nenhum! Não vejo como
não considerar que têm, sem dúvida, uma dimensão muito significativa de responsabilidade
pessoal e que, portanto, uma aproximação punitiva e securitária (sem
contemplações) é fundamental na luta contra o terrorismo (seja ele de que
natureza for).
Mas, evidentemente, a complexidade do
fenómeno do terrorismo não se compadece com lógicas simplistas e causalidades
lineares. Se, na linha de Freud, assumirmos que somos todos feitos da mesmíssima
matéria, e com os teóricos da vinculação, que todos precisamos de nos sentir
amados (com a sintonia, o colo e as regras que todo o amor implica) tanto
quanto precisamos de uma alimentação saudável, então, talvez valha a pena
perder algum tempo com a hipótese de que a adesão à violência hedionda talvez
seja mais provável sempre que, reiteradamente, não encontramos (nas relações
próximas, em primeiro lugar, mas na comunidade em geral também) nenhuma via
saudável que simbolize, um bocadinho que seja, o sentimento de se ser contido
(no sentido que Bion lhe dava) e amado.
Perdoem-me a “lamechice”, mas não resisto a
citar, a este respeito, o Nélson Mandela (ele que sendo, com inteiríssima
justiça, um dos símbolos maiores do melhor que a humanidade alguma vez foi
capaz de fazer, não deixou, durante um curto período do início do seu percurso
público, de ser um defensor da violência feroz como arma contra violências
maiores): “Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a
odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.
PS:
como acho que, simbolicamente, diziam as pessoas que saiam do Estádio de
França, ao entoarem, emocionadas, a Marselhesa ou todas aquelas que se
disponibilizaram para, naquele fatídica noite, acolherem turistas perdidos no
caos, em suas casas, estou convicto de que o medo não vencerá!