A Maria estava preocupada com a filha:
uma menina muito perfecionista, híper-educada, que alternava um registo
sossegado e híper bem comportado com alguns, raros mas muito ruidosos, episódios
de fúria. Não demoraria até a Maria, mulher sensata e afetuosa, dar por si a
falar-me da forma como, às vezes, se acha um bocadinho exigente de mais,
considerando que isso, involuntariamente, poderia estar a contribuir para o
registo excessivamente certinho da filha. Fluente, rapidamente salta para o
pequeno grande prazer que representam para si os pequenos-almoços de sábado, a
sós com a filha e o marido, num café lá do bairro. Ou melhor, que representavam.
A postura vincada de reprovação da sua própria mãe, perante tais prazeres
terrenos, foi tão insistente que a fez desistir da ideia. Diz-me que tem sido
assim com quase todos os pequenos prazeres: “não aguento a culpa que ela me faz
sentir. Se visse a cara dela. Eu gosto muito dela, mas depois fico que nem a
posso ver à frente. Mas não lhe digo nada. Ficava com remorsos se dissesse”.
Com o afeto e a sensatez de quem é capaz de se colocar em causa com uma
transparência cristalina, não demorará muito mais tempo a dizer-me, entre
lágrimas: “eu compreendo a minha mãe. Ela foi criada com muitas dificuldades.
Mas eu não posso continuar a reger a minha vida por aquilo que ela vai ou não
vai achar. Eu vou ter de lhe explicar que não pode ser assim. Que eu tenho de
viver a minha vida sem me sentir culpada por isso. Sem querer, isto acaba por
se refletir na minha filha. Fico tão zangada com a minha mãe por abdicar do que
gosto e sinto-me tão culpada por isso... que, às vezes, faço o mesmo com a
minha filha”.
A investigação recente vai dando substrato empírico àquilo que, em clínica, há muito se vem sustentando: a culpa faz mal à saúde! Sugerem alguns estudos que, em crianças, a culpa excessiva aumenta a probabilidade de quadros
psicopatológicos (depressivos nomeadamente) na idade adulta, e se associa a
alterações no sistema nervoso, ao nível da ínsula.
A capacidade de olharmos para dentro, de nos pormos em
causa e de olharmos nos olhos os erros (a que, em alguns contextos, se foi
chamando culpabilidade) parece ser um indicador claro de saúde mental. Ajuda-nos
a crescer com as falhas, ao mesmo tempo que nos recorda, a cada momento, que
não somos omnipotentes. Ajuda-nos a conviver com a ideia da inevitabilidade do erro, ao
mesmo tempo que nos instiga para verdadeiros movimentos de reparação.
Já a culpa excessiva parece consumir por dentro. Não parece
deixar espaço para a reparação ou para o aprender com a experiência de que
falava Bion. Fecha, bloqueia e magoa. Tanto que resvala, tantas
vezes, para um quase: “peço desculpa por existir”, de quem parece assumir como
suas as suas e as culpas alheias. Magoa. Tanto que, tantas vezes, se torna
insuportável e resvala para uma projeção massiva e insensata da culpa, que a
alivia, por momentos, mas a parece alimentar a prazo.
Talvez por isso, seja fundamental pensarmos a educação
como um espaço que, ao instigar a audácia e a autonomia, acarinha a falha e o
erro. Conviver melhor com a falha abrirá espaço para aprender com ela. Conviver
melhor com o erro abrirá espaço para se arranjar forma de o reparar.
(Inspiração:http://www.theatlantic.com/health/archive/2015/01/childhood-guilt-adult depression/384176/)
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Durante 7 anos entendi que a doença da minha mãe era minha, ela é bipolar. Ela bateu-me duas vezes e foi internada.. Tinha 10 anos na altura.. Para a minha cabeça a culpada era eu, se não ela não me tinha batido nem teria ido para o hospital, era o que dizia... Até muito tarde pensava no que ela iria achar se eu fizesse isto ou aquilo, e só o fazia com a aprovação dela caso contrário ficava quietinha...até que me cansei de sentir a dor dela e comecei a sentir a minha e não foi bonito . Ela descobriu o q fazia e ainda me aplaudiu. Hoje com 24 estou a tentar ganhar as minhas rédeas .. Mesmo que ela não aprove .. Cansei-me de viver a vida por ela e não por mim..
ResponderEliminarCara C´, muito obrigado pelo seu comentário. Às vezes parecem, de facto, haver situações difíceis na vida em que parece que, por muito que não o queiramos, é difícil não nos sentirmos “engolidos” por elas. Talvez o grande desafio seja, nestas circunstâncias, nunca desistirmos de procurar o apoio de todos aqueles que possam ajudar a reparar feridas e a iluminarem-nos o caminho para, como diz, agarrar as rédeas da nossa vida. Seja muito bem-vinda a este espaço.
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