domingo, 23 de abril de 2017

Asas servem para voar!*

  Foi crescendo rodeada de gente. Para além dos pais e da irmã, a casa estava sempre cheia. Tios, avós, primos. Todos lhe iam gabando a beleza. Puxa à mãe, dizia a avó Amélia com orgulho, atropelada, invariavelmente, pelo pai que não se cansava de sublinhar a inteligência superior da irmã da Rita (que, evidentemente, só podia ter sido herdada de si). Talvez seja um bocadinho assim em algumas famílias. Ao mesmo tempo que dão o caldo afetivo para o crescimento, parece que precisam de acantonar as pessoas em prateleiras… como se, para a beleza, não contassem também a profundidade no olhar (de quem olha e de quem é olhado) e se, para a inteligência, não fizesse qualquer diferença para quê e, principalmente, com quem e para quem somos inteligentes!
  A Rita é efetivamente bonita. Mas é muitas outras coisas boas (inteligente e sensível, audaz e atenta ao outro) que talvez por serem tão poucas vezes olhadas por quem as poderia ajudar a florescer, foi emperrando, dentro de si. Entre o buliço das festas familiares e os grupos de amigos em que se movia, parece ter havido sempre um lado seu que nunca (!) deixou de se sentir numa espécie de solidão assistida. Especialmente depois da morte da avó Amélia, que olhava a sua beleza bem dentro dos olhos e parecia a única capaz de pôr travão aos excessos do pai. Também a mãe sempre se foi chegando à Rita (não deixando, com isso, morrer o melhor dos seus recursos). Mas foi-lhe faltando a vivacidade da avó para pôr o pai no sítio.  Claro que o pai sempre gostou da Rita! Mas raras foram as vezes em que encontrou a fórmula para a olhar dentro. Lembra, com a voz embargada, como o pai arranjava sempre forma de lhe roubar o protagonismo nos aniversários ou na festa de final de curso. Não se lembra de um único: “estou orgulhoso de ti”! E dos abraços mais apertados apenas tem memória de um, aquando da morte do seu avô paterno. Por mais que o que mais quisesse fosse puxar o pai para si, foi-se afastando ao ponto de, praticamente, não falarem se não no conforto do grupo ou por intermédio da mãe. E assim foi alimentando a ideia de que do pai podia apenas esperar dinheiro para o curso, as viagens e o carro. E o pai a ideia de que a Rita de si só queria o dinheiro para o curso, as viagens e o carro. E, de equívoco em equívoco, foi crescendo a distância entre quem suspira pela proximidade!
  Ainda assim, mais crescida agora, a Rita fez alguns movimentos de aproximação. Qual leoa, defendeu, com unhas e dentes, o pai quando o jornal local (e a destilaria de ódio pronto a cavalgar o lado negro das redes sociais) lhe caiu em cima. Entre o orgulhoso e o atrapalhado o pai, mais por falta de hábito do que por ingratidão, não foi capaz de agarrar o apelo. Como não fora meses mais tarde: a Rita rejubila com o projeto profissional que conseguira. Podia não ser, ainda, a oportunidade de realização profissional com que sonhara, mas era um passo. E era sobretudo, a oportunidade de mostrar a si própria e ao mundo (e muito em especial ao pai!)  que também sabe ser inteligente, trabalhadora e competente. Mas o orgulho que ia acumulando com os olhares orgulhosos da mãe e das tias… num ápice se transformou em sabor a vitória amarga! Os Parabéns orgulhosos que mais ansiava: os do pai, foram, afinal, dolorosamente substituídos por uma espécie de insinuação de que só conseguira o projeto… porque é bonita.

  Para primeira formulação, não está difuso de todo o seu pedido de ajuda: anda muito desistente e paralisada perante a ideia de futuro e as escolhas que teme não conseguir fazer. Anda triste. Profunda e dolorosamente triste. Apesar do grupo de amigos com quem sai à noite para os copos, sente-se sozinha. Profunda e dolorosamente sozinha.
  Com o decorrer tempo – ou, para ser mais preciso, à medida que, devagar devagarinho, nos vamos sentindo, e ligando enredos onde antes havia muito mais fuga para a frente do que pensamento – o apelo da Rita (e com ele a construção de soluções!) fica cada vez mais claro: Mas se eu tenho tantas saudades de conversas e relações profundas porque é que vou deixando morrer as amizades que me interpelam e vão ficando apenas aquelas mais feitas de memórias de infância e solidões assistidas (em noites agitadas de copos) do que de vínculos e cumplicidades? Mas se eu tenho tantas saudades de relações profundas porque é que fiz tudo para afastar os amores que me interpelaram até à medula e, agora mais do que nunca, estão bem vivos dentro de mim? Mas se eu não me quero deixar acantonar na imagem de mulher bonita, mas autocentrada e superficial (ter um closet pode ser um capricho engraçado, não é? Mas como metáfora de projeto de vida, de facto, não é lá grande coisa!) e quero, definitivamente, ser a mulher inteira, arrojada, sensível, cuidadora, competente, viva e lutadora que a minha avó Amélia via em mim, porque é que às vezes insisto nos tiques de diva e fico à espera que as amizades e os amores voltem num passe de mágica, sem reparação nem garra, como se merecesse tudo de mão beijada só por seu eu?! Ou, pior, como se não tivesse o direito a lutar pelo que realmente quero (!) e tivesse de me contentar com a memória e a saudade para preencher o closet! Sabe, acho que estou a precisar – qual Randall do This is us – de escrever num papel as 32 razões porque estou profundamente magoada com o meu pai (e, já agora as 8 ou 9 porque estou zangada com a minha mãe e as 14 ou 15 porque estou fula com a minha irmã) e de lhas dizer uma a uma, olhos nos olhos. E, a seguir, de lhe dizer que, por tudo isso, mereço muito mais pai! E que, para começar, quero, pelo menos, um abraço apertado por cada uma das razões da lista! E, depois disso, dizer-lhe que pode ter muito orgulho em mim porque apesar dos meus 23457 defeitos, estou decidida a virar o mundo do avesso para ser a mulher inteira que quero ser!
PS:Sim, ainda quero um closet! Mas a três dimensões porque a beleza está mais na profundidade do olhar de quem olha e é olhado do que no brilho dos vestidos!

*Título inspirado na Asas, dos GNR

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 2 de abril de 2017

(Não) quero tantas coisas que já (não) sei o que quero!

 O João está a conseguir, no 11º ano, manter a média bem acima dos 18. É barra a biologia, mas é a física e a matemática que mais o encantam. É neto de um médico diferenciado. Desde que começou a brincar com o estetoscópio do avô que todos lhe vaticinaram, mais ou menos em surdina, o futuro: seria nada mais nada menos que um médico brilhante. Essa sempre foi uma meta assumida por si. Sempre até há um par de meses, quando começaram a surgir as dúvidas. A paixão por aviões (não há modelo da Boeing ou da Airbus que não descreva com uma enorme naturalidade) e por máquinas em geral têm-no feito vacilar: a Engenharia Aeroespacial ou a Engenharia Mecânica têm, timidamente, vindo a surgir como hipóteses. Para além disso, diz o João: “eu até me via a investigar Biologia Molecular, por exemplo, mas ser médico mesmo, aquela vertente mais clínica de estar o dia todo a ouvir pessoas, levar com histórias desgraçadas, não sei se é para mim”.
  
 A Joana, da mesma turma, sente-se perdida. Foi, vagamente, alimentando a ideia de enveredar por Enfermagem ou, talvez, tentar Medicina em Espanha. Mas, tem vindo a descobrir que o estudo da biologia humana (que implicaria a Enfermagem ou a Medicina) não a encanta por aí além. Talvez o que mais a seduza num percurso muito ligado à saúde seja a dimensão de relação humana, a ideia de poder ajudar o outro, olhos nos olhos. Mas não morre de amores pelo frenesim de um Hospital ou de um Centro de Saúde. A psicóloga da Escola falou-lhe da área social (com Educação Social ou Serviço Social, por exemplo), como uma possibilidade para concretizar esta sua apetência para funções que possam implicar a relação como instrumento de trabalho.
            
 O percurso profissional é, ainda, fonte de sustento, como sempre foi. Mas é, cada vez mais, fonte de (in)satisfação e (não)realização pessoal. Tenho para mim, por isso, que quando se escolhe uma área profissional que compatibilize paixão e apetência, se estará mais próximo do trilho do sucesso e, mais importante, do caminho da realização e da satisfação profissional.
 Tenho, por isso, a ideia de que, em muitas circunstâncias, uma orientação vocacional cuidadosa e aprofundada é muito mais do que um capricho. Será, tenho para mim, uma ajuda valiosa para sustentar uma opção demasiado relevante para ser deixada ao acaso ou ao sabor de um impulso de momento. Sê-lo-á especialmente para todos aqueles para quem, no meio de tantas escolhas possíveis, não parece emergir, de dentro, uma convicção segura acerca do caminho a seguir. Será, tenho para mim, uma ajuda tão mais valiosa quanto mais puder cruzar interesses e apetências vocacionais com características de personalidade e variáveis cognitivas. Afinal de contas, é fácil imaginar que um arquiteto que case rigor com abstração espacial e criatividade estará mais perto de ser um bom arquiteto. Ou que um engenheiro que compatibilize raciocínio lógico, abstração espacial e raciocínio mecânico estará mais próximo de se poder destacar. Ou que um professor será muito mais facilmente um bom professor se, para além do domínio científico das matérias, tiver interesse e apetência para gerir relações interpessoais. Ou que um enfermeiro ou um médico, para além do domínio científico e de todo o raciocínio analítico complexo (que permite, por exemplo, chegar a um diagnóstico certeiro) tenderá a ser tão melhor médico ou enfermeiro quanto mais apetência tiver para gerir relações interpessoais e estabelecer relações de ajuda. 
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.