quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Ano Novo e outros desejos!

Gosto da ideia de se festejar o ano novo. Gosto de tudo o que sirva de mote para as pessoas celebrarem juntas! Mas a passagem de ano será muito mais do que uma festa qualquer. Tem uma dimensão simbólica (mais ou menos mágica) que a associa à possibilidade de recomeço. Afinal de contas: “ano novo, vida nova!”

12 badaladas, 12 passas, 12 desejos!
Pedir desejos é bom! Resgata a esperança. Ajuda a configurá-la. Mas não chega para conquistar o futuro! Os desejos precisam de ser acarinhados, polidos com paciência até, com uma pontinha de sorte, se transformarem em projetos viáveis.
Sim, desejar é bom! Na verdade, os desejos nunca são irrealizáveis! Ganhar o euromilhões ou comprar uma ilha no Pacífico não serão bem desejos, parece-me. Desejos megalómanos não serão bem desejos, parece-me. Servirão, quando muito como refúgio mágico para quem, tolhido pelo medo, se recusa a projetar o futuro. No fundo, não será tão diferente assim (ainda que por linhas travessas) de quando se poupa nos desejos (e nos rasgos de vida) para se poupar nas desilusões. 
Tenho para mim que o desejo será, assim, uma espécie de ligação, pela esperança, entre o imaginário e as possibilidades que a realidade oferece. Numa espécie de 2 em 1, será o caminho mais efetivo para agarrar o futuro, servindo, ao mesmo tempo como vacina que ajuda a metabolizar a desilusão. Uma dor condensada num falhanço (a partir do qual é possível tirar ilações e crescer com a experiência) será - tenho para mim - mais facilmente metabolizável do que a dor difusa, mas omnipresente, de quem, invariavelmente, não vai a jogo (evitando desejar ou precipitando-se numa catadupa de desejos megalómanos). 

Um Ano Novo cheio de desejos feitos projeto!

domingo, 11 de dezembro de 2016

Talvez o Natal seja só quando o Homem puder... querer!

   As luzes dão um brilho especial à Baixa da Cidade. Os mercadinhos de Natal, a pista de gelo, as ruas cheias de gente, os vendedores de castanhas e a árvore estrategicamente posicionada bem no meio da praça completam o cenário. Mas nem a vista privilegiada que a grande janela do seu escritório abre para toda esta beleza ajuda a Maria a reconciliar-se, um bocadinho que seja, com o Natal. Tudo a irrita nesta época: as filas intermináveis para o trabalho (que culpa tem ela que o escritório seja mesmo no centro da cidade?!), o entusiasmo da Marta (a sua colega da secretária em frente) com o espirito natalício, os filmes que invadem todos os canais de televisão. Chega o 1º de dezembro e já só suspira por janeiro!
    A magia do Natal parece, para ela, ter morrido com a avó paterna, quando tinha apenas 10 anos. A lareira enorme e os presentes ajudavam, mas eram as rabanadas da avó (“nunca mais comi umas rabanadas assim”! recorda com a voz embargada) e o seu colo (sobretudo o seu colo!) que faziam renascer, a cada ano, o espírito natalício. Depois disso, o Natal foi perdendo cor… muito à boleia da tristeza profunda da mãe que, ano após ano, fazia da consoada uma espécie de romagem de saudade à memória dos avós da Maria. O seu pai, talvez por ficar sempre muito atrapalhado com a tristeza do outro, parecia refugiar-se, cada vez mais, numa distância mais ou menos impenetrável. Anos mais tarde, os Natais na família do ex-marido eram bem mais parecidos com os que via nos filmes, em miúda. A casa estava sempre cheia: de gente, de comida e de presentes. Mas talvez o que mais a impressionasse fosse mesmo sentir a casa cheia da alegria de estarem juntos. Uma alegria em que todos (a começar pelo ex-marido) se esforçavam para a incluir. “Sabe, o ambiente era mesmo de alegria. Eu não tinha o direito de o estragar. Mas… o Afonso (ex-marido) parecia um miúdo com os olhos a brilhar. Pareciam todos. Eu fazia um esforço… mas irritava-me tanto não estar feliz. Eu acho que me irritava a capacidade do Afonso para se encantar. Ele era assim: encantava-se com o Natal, as viagens, as festas de família, o futebol, a música, os filmes… Até as habilidades do Madjer (o labrador que adotaram no canil municipal) o encantavam! Acho que foi por isso que o meu casamento acabou: há muito que não me conseguia encantar”!
   Este ano o Martim ia passar o Natal com o pai. Sem a única pessoa que a faz investir tempo e imaginação num presente (todos os outros são corridos a vales da Fnac e da Zara) os Natais são ainda mais dolorosos. Como se não bastasse ter o filho a 200 Km de distância, este ano teve de partilhar a mesa da consoada com a prima do Algarve com quem a mãe sempre a comparou. À boleia desta “intrusa”, pela primeira vez em anos, toda a família foi à missa do Galo e, depois, à festa comunitária que irradia alegria a partir de uma fogueira enorme, bem no centro da aldeia dos pais. O sorriso da mãe tantos Natais depois (resgatado pela prima do Algarve… e não por si ou pelo seu Martim), as correrias das crianças, as famílias a celebrar reencontros, os casais de mão dada… era tudo o que lhe faltava para desabar num desamparo sem fim. Chorou, desalmadamente, noite dentro até, por fim, sucumbir ao cansaço num sono sobressaltado.
   De regresso ao trabalho, foram o brilho e as histórias da Marta a fazer rebentar o dique uma vez mais. Caiu num choro desamparado mesmo ali, bem no meio do escritório com vista privilegiada para o cenário festivo da praça. Mas, desta vez, não chorou sozinha. “Chorei no abraço da Marta. E soube-me tão bem. Sabe, acho que foi o melhor abraço que tive em anos … Fez-me lembrar o abraço da minha avó”.

   Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez precisemos (todos) de quem nos mostre que, muito mais do que nunca ficar triste, vale a pena não desistir de encontrar o caminho para os abraços onde se pode chorar sem perder o chão. Talvez, assim, fiquemos (todos) muito mais aptos para nos reconciliarmos com o Natal... e com a vida! 

Feliz Natal!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 20 de novembro de 2016

A saúde mental faz bem ao PIB!

  A Maria faz parte dos quadros da função pública há mais de 20 anos. Não está na secretaria por estes dias. Já conta com 3 baixas psiquiátricas no currículo. Depressão diz o relatório. O Inácio, mais sonolento a cada dia que passa, não dorme 3 horas seguidas vai para um ano. À noite, apaga a luz e acende-se a angústia. As preocupações, que o cansaço e a ocupação vão adormentando durante o dia, vêm em catadupa na hora de dormir. Parte da fatura tem sido paga pelas máquinas industriais: a rapidez e eficiência com que sempre as reparou e afinou têm vindo a diminuir a olhos vistos. As linhas de produção ressentir-se-ão em breve. E, com elas, a faturação da empresa.  Vinha correndo bem a vida ao jovem Bernardo. O MBA numa Business School de renome abriu-lhe as portas de uma multinacional de sucesso. Os contratos avultados de exportação que conseguiu fechar aceleraram-lhe o futuro promissor na gestão. Mas a ascensão meteórica está agora entalada. No 1º semestre do ano, não conseguiu um único novo cliente internacional. Não, não perdeu a visão estratégica nem o tato para o negócio. Mas as horas antes das reuniões com os clientes passaram a ser ocupadas por 1001 estratégias para não ter de lhes apertar a mão. As horas depois, com 1001 estratégias para que ninguém percebesse que as ocupava, quase na totalidade, a lavar as mãos com tudo o que é desinfetante.

  A promoção da saúde mental (através da intervenção psicológica e das psicoterapias, nomeadamente) é, antes de mais, uma questão de humanidade e equidade social – justificação muito mais do que suficiente para a implementação de uma estratégia sustentada de saúde mental. Mas, na era em que tudo cabe num indicador económico, é bom lembrar o relatório da OCDE sobre esta matéria (ou, num outro plano, o estudo sobre o custo-efetividade de intervenções psicológicas em cuidados de saúde, realizado pela Ordem dos Psicólogos Portugueses). Dele parece decorrer que os gastos com uma estratégia sustentada de promoção da saúde mental não são bem custos. Serão antes investimento com retorno. Às poupanças com as baixas e com prestações sociais, junta-se um aumento da produtividade do trabalho. Nós não andávamos a precisar de apanhar boleia na expansão económica dos últimos trimestres, para continuar a fazer crescer o PIB?!

Nota:  Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 6 de novembro de 2016

Lados lunares e outros recursos!

Sempre foi um exemplo. Para os colegas. Os primos. Os vizinhos. Na escola, no ballet, na música ou na catequese. Foi crescendo com a ideia de que o erro era coisa de fracos e que, a repetir-se, poderia, no limite, levar à prescrição: afinal de contas, dos fracos não reza a História! Talvez por isso, se fosse sentindo sempre muito mais confortável num mundo de regras. O importante era fazer direitinho. Cumprir e cumprir... por cumprir. Sem questionar ou levantar ondas. Cada teste escolar (por mais que dominasse a matéria de trás para a frente) era uma espécie de prova dos nove do seu valor enquanto pessoa. Passava sempre com distinção: na escola, no ballet, na música ou na catequese. Mas sentia, ainda assim, que ficava sempre aquém. Como se a possibilidade de errar a perseguisse por todo o lado, sem que os sucessos fossem capazes de estancar o medo, para lá do regozijo do momento.
  Nunca se portava mal. Nem fazia birras. Talvez desconfiasse (sempre) da ideia de haver alguém capaz de acolher o seu “lado lunar”. Na dúvida, tentava esconde-lo. Como se, ao camuflá-lo, ele deixasse, magicamente, de existir. Mas, se isso lhe foi assegurando os ganhos secundários de um lado excessivamente certinho, parece ter-lhe condicionado em demasia a capacidade espontânea e descontraída de se chegar aos outros. 
  E, mais ou menos de rompante, começaram a surgir os medos: de cães, primeiro. De dormir ou de estar sozinha à luz do dia, no quarto, depois. Dos meninos do recreio, na escola nova. De ir sozinha ao quintal. Dos melros que fizeram ninho na roseira do jardim. Das motas que passavam na estrada. Dos senhores do café do fundo da rua, etc, etc. Com os medos vieram, também,  ataques de fúria (que nunca ninguém lhe tinha visto!) cada vez mais frequentes, intercalados, ainda assim, com períodos em que voltava a exibir orgulhosamente a medalha olímpica do bom comportamento.
 
  Por mais que todos gostemos de medalhas de bom desempenho e de bom comportamento, talvez nem todas mereçam festejos e regozijos!
 Talvez o grande desafio seja mesmo o de compatibilizar regras (que balizem o crescimento) com espontaneidade; exigência com oportunidades de expressão (do “lado lunar” também...). 
 Talvez a tristeza, o medo, a raiva ou a inveja nunca se possam mesmo transformar em forças criativas à margem de um olhar que as acolha e ajude a transformar. Talvez estes sentimentos que, tantas vezes, vamos interpretando como “maus” não passem, tantas e tantas vezes, de “pensamentos à procura de um pensador” (recordando Bion) que vão corroendo, por dentro, sempre que não encontram acolhimento e transformação na relação.
 Afinal de contas, ninguém cresce saudável a tentar amordaçar o que sente, em favor do que acha que devia sentir! Ou não fosse o coração feito para sentir por inteiro… em relações que balizam os exageros, ao mesmo tempo que acolhem e transformam (também o "lado lunar"...)!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 23 de outubro de 2016

Espelho meu, espelho meu, há alguém mais sabichão do que eu?

  Desde muito cedo que ouvia, com insistência, que era super-inteligente. Diziam-no a Educadora e a Professora do 1º ciclo. Dizia-o a avó, dando-o como exemplo para os outros netos. Repetiam-no as tias, a cada almoço de família. Mais discretos os pais não conseguiam, ainda assim, resistir à tentação de o exaltar sempre que a vizinha da frente batia à porta para, à boleia de uma qualquer desculpa, se vangloriar da bolsa no estrangeiro que o seu filho mais velho havia conseguido. Exageros à parte, o Bernardo sempre foi, de facto, um rapaz inteligente. Talvez isso o tenha ajudado a desenvolver um gosto apurado na música, na literatura e no cinema. Talvez isso o tenha ajudado a construir o seu interesse pela Filosofia, pela Ciência ou pela História de Arte. Mas nem sempre o terá conseguido reverter a seu favor na hora de se aproximar dos outros… e do melhor de si! A forma sobranceira como se foi colocando perante os colegas, no Básico e no Secundário, raramente foi permitindo estabelecer relações de verdadeiro companheirismo. Afinal que importância tinha debater o Sporting vs Benfica da véspera, se os prémios Nobel ainda estavam fresquinhos? Mas, se no Ensino Secundário, a postura excessivamente intelectualizada lhe foi valendo um certo estatuto entre os colegas, que iam oscilando entre olhá-lo com admiração e suportá-lo com irritação, a integração não estava fácil na Faculdade! Vários colegas seus também sabiam de cinema, de música e de literatura, de filosofia e de ciência; o que por si só já não era nada confortável para o Bernardo, mais habituado que estava à postura professoral do que à partilha e à discussão entre iguais. De tão habituado que estava a compartimentar o mundo, mais estranho se sentia ao perceber que alguns colegas, tão depressa falavam de cinema islandês como seguiam entusiasticamente cada jogo da Liga dos Campeões. Que tão depressa poupavam dinheiro para ir ver um concerto de jazz como pulavam ao som das Doce (“Uma da manhã, ei!”) numa qualquer festa académica! Como se isso não bastasse, pareciam misturar-se e gostar de colegas com percursos, gostos e interesses diferentes. E, pasme-se, não bastando sentirem-se à vontade no contacto com as colegas (mesmo aquelas que se estavam nas tintas para a música alternativa ou para o cinema francês), caíam mesmo de amores por algumas delas!
   Este choque de frente com a diversidade podia ser o empurrão que faltava ao Bernardo para se abrir ao mundo, à diferença e ao outro. Mas, apesar de todos os apelos dos colegas, parecia fechar-se a cada dia que passava. A ideia de se relacionar de igual para igual era, para si, demasiado assustadora. Enquanto o assunto era meramente intelectual, podia sempre puxar dos galões do alto do seu púlpito. Já olhar nos olhos uma colega bonita, descer do púlpito e discutir de igual para igual, libertar-se numa qualquer festa ou falar do que o comove ou lhe mete medo, eram terrenos demasiado movediços para quem se sentia tão sozinho e assustado para lá das luzes do palco.

  Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez a sobranceria seja, tantas e tantas vezes, uma espécie de defesa contra o medo e o desamparo. Mas se, por um lado os ilude (tornando-os mais suportáveis), parece alimentá-los (!), por outro, ao afastar-nos do outro… e do melhor de nós! Talvez a integração da diferença, da diversidade e do conflito sejam mesmo essenciais para, com o outro (diferente!), nos irmos encontrando com o melhor de nós próprios!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 11 de setembro de 2016

E foram felizes para (nem) sempre…

   Talvez nunca, como hoje, tivéssemos podido sonhar com um grande amor (ou não fossem os casamentos por amor uma feliz “invenção” recente), uma família feliz (ou não fosse a generalização das manifestações abertas de afeto uma feliz “invenção” recente), uma rede próxima de amigos e um projeto profissional que permita casar realização com autonomia financeira. Apesar de todos os imensos males do mundo (da gravíssima crise humanitária dos refugiados, ao terrorismo, passando pelas crises económicas e pelo desemprego, pela xenofobia, violência e maus-tratos infantis, por exemplo), talvez nunca como hoje, na história da Humanidade, tivéssemos podido sonhar e reclamar para nós, de forma tão alargada e democrática, a Felicidade. E isso parece-me - apesar de todos os males do mundo – uma extraordinária conquista!
   Mas talvez às vezes, vezes de mais, a reclamemos com tanta ânsia e sofreguidão aqui, agora e já, arrebatadora e eterna, de preferência, que a procuremos enclausurar numa qualquer fórmula do tipo: “os 10 passos para a felicidade”. Sendo a vida um milagre (!), as fórmulas mágicas, mais ou menos instantâneas, não me parecem, de todo, a forma mais efetiva de a agarrar pelos colarinhos!
   Mas o que nos torna mais felizes, então? Um estudo de larga escala, dirigido por Robert Waldinger, um psiquiatra e psicanalista de Harvard, diz-nos que são as pessoas, a qualidade das relações com as pessoas da nossa vida! De forma não tão diferente assim – parece-me – do que os psicanalistas das relações de objeto vêm, há décadas, chamando a atenção: as vidas têm pessoas dentro! Umas atrapalham, assustam, assombram, tolhem, muito mais do que guiam. Incitam-nos a afastarmo-nos de nós próprios, da sabedoria do que sentimos. Outras, não deixando de ser importantes, não passarão de figurantes com mais ou menos pinta. As mais preciosas de todas, parece-me, serão aquelas que, com o seu amor e admiração, nos fazem sentir o special one, ao mesmo tempo que, de cada vez que abusamos na vaidade, nos põem no lugar e nos lembram que somos só um em milhões com o coração no sítio e os neurónios a funcionar. Serão, creio, autênticas estrelas guia a alumiar o caminho para o mais fundo de nós, para o mais fundo do outro. Quanto mais esta complexa rede de pessoas (tão diferentes) que moram dentro de nós nos permitirem, sem soçobrar, chorar as perdas ou zangarmo-nos abertamente com o que nos magoa, mais perto estaremos – creio – de confiar na vida. Quanto mais nos convidar a pormo-nos em causa e a aprender com os erros, mais próximos estaremos – creio – de sermos mais humildes, mais lutadores e mais afoitos. Quanto mais esta comunidade do nosso mundo interior (e exterior) confiar e exigir o melhor de nós, mais prontos estaremos – creio – para nos despojarmos para a relação. Talvez seja a forma como permitimos que este diálogo de Babel se torne cada vez mais fluído, inclusivo e transparente dentro de nós - pondo todas as personagens (tão diferentes entre si) da nossa vida à discussão – que faz realmente a diferença nas nossas vidas. Talvez isso seja determinante para termos fé nos vínculos (como lhe chamava Bion), na vida e no futuro. Talvez isso seja determinante para, à boa maneira do 2º Exótico Marigold Hotel, nunca deixarmos de confiar que no final tudo bate certo.
   Mas como é que se faz? Ou, como pergunta o Bob Dylan na sua Blowin´in the wind: How many roads must a man walk down before you can call him a man? 
 Ao aprendermos com os erros e a experiência, iluminados por quem, dentro de nós, não desiste de fazer de estrela guia, talvez tornemos o mapa para o mais fundo de nós, para o mais fundo do outro, um bocadinho mais claro de cada vez que somos capazes de parar para nos escutar… no outro.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Entre o desejo e o medo!

  Diz – num tom muito mais irritado do que displicente ou sobranceiro – que não consegue estudar. Foi por isso e pela “estúpida mania de bloquear nos exames” que teve um rotundo chumbo na prova que lhe permitiria terminar o Secundário e entrar no Curso que, de forma muito envergonhada, ambiciona. De forma tão envergonhada que se apressa a dizer: “nunca na vida vou conseguir entrar”, irritando-se de forma veemente se alguém lhe chama a atenção para as possibilidades reais que tem.
 Acabadinha de fazer 18 anos, a Maria é uma miúda afetuosa e toda despachada, com ar de quem não leva desaforos para casa. Tem um olhar vivo e inteligente. Move-se com mestria por entre vários grupos de amigos e tem, quase sempre, de forma muito natural, uma posição de liderança nas várias atividades extracurriculares em que está inserida. Apesar de todas as suas qualidades tem vindo a poupar nos desejos muito para lá do razoável. Até para si parece ter medo de os sussurrar. Como se, à cautela, preferisse poupar nos sonhos para poupar nas desilusões. Parece, apesar de todo o seu potencial, verdadeiramente bloqueada de medo. Talvez seja isso que a impede de desejar a plenos pulmões, em vez de ficar sempre a meio caminho entre o desejo e o medo. Diz que não se consegue concentrar para estudar. Senta-se com o livro à frente, e logo se levanta para ir afiar o lápis. Depois envia uma qualquer sms absolutamente inadiável. Faz uma passagem rápida pelo facebook (que acaba, claro, por durar mais de uma hora). Levanta-se, novamente, agora para arrumar a prateleira dos CDs. E agora? Agora já é hora de jantar! Como somos todos tão bons a inventar prioridades de última hora quando queremos “fugir” do que nos mete medo! Numa das suas deambulações pelo facebook encontrou um daqueles textos bem ao género de: “como deixar de procrastinar em 10 passos”. Apressa-se a dizer: “mas comigo não resulta! Eu devo ter défice de atenção. E dos graves!”. E bem, bem seletivo acrescentaria eu, ou não fosse a Maria uma miúda atenta a todos os pormenores na hora de ler os pais, os professores ou os amigos. Ou não fosse a Maria capaz de se concentrar em todas as tarefas intelectualmente exigentes com que tem que lidar em algumas das suas atividades extracurriculares. Talvez o que atormente a Maria não seja uma incapacidade mais ou menos estrutural de se concentrar. Talvez essa seja só a estratégia que vem construindo há muito para não ir a jogo, evitando, assim, confrontar-se com os medos mais ou menos irrealistas (quais moinhos de vento do D. Quixote) que, involuntariamente, foi alimentando. Se, por um lado, se sente uma rapariga cheia de capacidades, por outro parece sentir-se permanentemente assombrada por um medo difuso, mas omnipresente: o medo de falhar, de ser realmente incapaz, de ser uma desilusão para os pais, de ser o patinho feio lá de casa (não é fácil ouvir os professores dia sim dia não a evocarem o rol de 19 e 20 que o seu irmão mais velho foi colecionando antes de ir para a Faculdade), etc. etc.                       

 Mas não é só na Escola que tem perdido por falta de comparência! A sintonia com o Bernardo é indisfarçável e a troca de olhares verdadeiramente enternecedora. Embora resista em admiti-lo até para si, há muito que a Maria suspira pelo seu abraço. Mas qual livro de matemática, acaba sempre por boicotar qualquer hipótese de ficarem a sós. Acaba sempre por “chutar para canto” qualquer sms mais insinuante.    ´
                                                  
Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez fiquemos todos (!) um bocadinho menos aptos para pensar, para nos concentrarmos, para estudar, para trabalhar, para criar, para namorar, para nos divertirmos, para nos fazermos à vida… sempre que poupamos nos desejos (e nos meios para os configurar em projetos viáveis) para poupar nas desilusões.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Arrogantes (também) somos nós!

  Já nos conhecemos bem. Afinal, temos passado horas e horas a escutarmo-nos. O João é um tipo inteligente e com o coração no sítio. Veio para “desatar alguns nós que me atormentam”, disse-me, a primeira vez que se sentou comigo.
  Diz-me, com a voz trémula: sabe, acho que há um lado meu arrogante, que me tem tramado a vida. Acho que sempre o tive. Lembra-se daquela história do grupo de jovens? Eu era muito novo. Era o mais novo do grupo. Era para aí a 2ª reunião que ia. Estava inseguro. E sabe como é que é quando se está inseguro: metemo-nos em bicos de pés. Uma das raparigas, mais velha do que eu, não sabia quem era o Guterres. Ele era primeiro-ministro na altura. Bem, eu do alto do meu ar mais pedante disse-lhe qualquer coisa como: “Não sabes quem é o Guterres? Que falta de cultura política!” Fez-se um silêncio na sala. A rapariga riu-se e encaixou com uma categoria de fazer inveja. O meu irmão olhou-me com uns olhos de: foge-me da frente que nunca mais vou esquecer. No final, sozinhos, deu-me uma descasca, que ainda hoje lhe agradeço. E sabe, a rapariga, depois daquele meu laivo de arrogância sem fim, teve a bondade de ser minha amiga. Ainda hoje somos amigos. Ela até podia não saber quem era o Guterres, mas de pessoas, meu Deus, de pessoas, dava-me 5 a zero! Depois foi o que você sabe: no Liceu, entre as borbulhas e as Doc biqueira de aço, estava longe de me sentir um ás de trunfo. Eu acho que as pessoas até gostavam de mim, mas faltava-me a confiança para ir a jogo, à homem. Lá saber quem era o Guterres e o Clinton, lá isso eu sabia, mas já como ser acutilante com as miúdas… ainda tinha muito que aprender! A Faculdade foi um upgrade extraordinário na minha vida. Perceber que me conseguia sintonizar com pessoas com histórias tão diferentes da minha, acho que me ajudou a tornar um bocadinho mais seguro, um bocadinho mais humilde. Travou este meu lado mais arrogante, mas não o matou de vez. Que o diga a minha primeira namorada da Faculdade, a quem fiquei a dever alguns pedidos de desculpas, dívida que entretanto saldei. A insegurança dos primeiros anos de trabalho, acho que o reacendeu um bocadinho. Que o digam alguns operadores de call center, com quem tive verdadeiro vómitos violentos e arrogantes. Sabe, eu acho que tenho um lado verdadeiramente humilde. Sou amável com as pessoas e adoro misturar-me com elas, reconhecer-lhes o mérito e encantar-me com as suas qualidades. Mas, às vezes, meu Deus, às vezes, pareço um touro enraivecido, a espumar arrogância por todos os poros, como se o mundo se tivesse realmente unido para me tramar. Tenho pensado muito nisso, desde que, há umas semanas, acordei um dia tão azedo, mas tão azedo, que me zanguei com Deus (como poderia ele existir se a minha vida estava tão longe de ser a que sonhei?!), com os meus pais, com a minha namorada, consigo, com o céu estrelado e com tudo o que mexesse ou estivesse parado, acho eu! Sabe, entretanto, acho que houve duas coisas que me fizeram parar para pensar. O Bernardo [um grande amigo, de há muitos anos] disse-me, a propósito das lutas da vida, uma coisa que me ficou a martelar na cabeça: “A verdade é que, chegada a hora, não somos melhores do que ninguém”. A outra, tal como naquela vez, no grupo de jovens, foi o meu irmão que ma disse. Não foi muito mais do que um: “às vezes também tens de ter calma”. A princípio senti aquilo como castrador. Só aumentou o meu sentimento de cruzado contra o mundo. Mas a verdade é que, pouco depois, me fez cair em mim. Fez-me pensar em como, tantas e tantas vezes, me ponho numa posição sobranceira perante a vida, como se fosse a última bolacha do pacote. E a verdade é que não sou! Fiquei ali uns dias derreado, tristonho, metido comigo, envergonhado, muito envergonhado acho eu. Mas, a verdade é que foi libertador! Por mais paradoxal que possa parecer, perceber que não sou a última bolacha do pacote serenou-me! Por mais estranho que possa parecer, perceber que tenho de ser mais humilde deu-me esperança no futuro e força para o fazer acontecer! Engraçado como sermos mais humildes nos torna mais seguros. Lembrei-me do Bob Dylan quando, na sua Blowin´in the Wind, se pergunta: How many roads must a man walk down before we can call him a man?, percebi que ainda ando a aprender como é que se pode ser assertivo e humilde ao mesmo tempo, e acho que fiquei um bocadinho mais amigo da vida, de Deus, dos meus pais, da minha namorada, dos meus amigos, do céu estrelado, de tudo o que mexe e que está parado!

  Se, como nos ensina Bion, a arrogância (como a inveja destrutiva, a violência ou a indiferença) vem direitinha da parte psicótica da personalidade, esta capacidade extraordinária de nos escutarmos, de nos pormos em causa, de discorrermos sobre as nossas histórias, ligando-as, de repararmos erros, de nos perdoarmos e de aprendermos com a experiência, será – creio – a forma mais efetiva de, humildemente, nos encantarmos pela vida, agarrando-a pelos colarinhos!


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 26 de junho de 2016

Um admirável mundo novo*!

   Depois de um ano de ansiedade miudinha, exames e estudo empenhado, o João entrou, finalmente, no curso que sonhara. Desde que, há uns anos, foi ver o cortejo académico do primo que sonhava com a vida de universitário, com as festas e as noitadas, com a autonomia e o mar de pessoas e oportunidades que a Faculdade lhe ia trazer. Nos últimos dias antes da partida para a cidade que escolhera, sentia-se mais apreensivo. Comoviam-no os conselhos e gestos protetores dos pais, mas não lhe saía muito mais do que um: “que melgas, eu já sou crescido!”, como que não querendo dar parte de fraco. O mesmo aconteceu (com uma intensidade ampliada pela proximidade do futuro) no dia em que, finalmente, os pais o levaram ao quarto que tinha alugado a dois passos da Universidade e do centro da cidade. Ao almoço, manteve, por fora, a postura de “homem crescido sem medos”. Com mais custo, mas aguentou-se, depois, enquanto a mãe lhe fazia 1001 recomendações acerca da roupa, da comida e das saídas à noite, e o pai lhe falava, entre o entusiasmado e o assustado, da necessidade de conciliar responsabilidade com boémia. Talvez o João quisesse dizer: “eu sei, eu sei que há muito que sonhava com isto. Eu sei, eu sei, que isto vai ser bom para mim, mas estou com tanto medo! Tenho tanto medo das praxes, de me acharem ridículo na Faculdade, de não estar à altura das matérias, de não ser tão fácil fazer amigos como sempre imaginei que era, etc, etc”. Talvez o João quisesse sossegar-se com um: “Vai correr bem, não vai?”, ao mesmo tempo que corria para os braços dos pais e lhes perguntava: “vão cá estar sempre para me segurar quando não correr bem, não vão? Mesmo quando eu, inflamado e um bocadinho arrogante, disser que sou um homem crescido, e que não tenho medo de nada?”… Mas só lhe saiu um: “Mãe!!! Eu já tenho 18 anos! Dah, isto foi o que eu sempre quis!”. Depois de uma despedida tão calorosa quanto esta postura sobranceiro-assustada permitiu, assim que os pais fecharam a porta da sua nova casa, o João deitou-se sobre a sua nova cama (como lhe pareciam estranhos a almofada, o cheiro e as esquinas da nova casa) e chorou. Chorou desalmadamente. De medo (do que aí vinha). De raiva (por não ter conseguido ser claro na hora de procurar, no colo dos pais,  a segurança que o poderia sossegar). Até que o telefone tocou. Enxugou as lágrimas, mas não conseguiu disfarçar a voz triste e arrastada. Eram os pais, em uníssono, a dizer: “Hei, João, a primeira noite é um bocadinho difícil. A 2ª e a 3ª talvez também ainda possam ser um bocadinho. Mas vai, evidentemente, correr bem!”. Desta vez o João não se conteve... e chorou. Nem a distância que o telefone impõe o impediu de sentir o colo dos pais, bem ali, para si, forte e seguro, para o que desse e viesse. E o medo avassalador transformou-se numa espécie de nervoso miudinho que, pouco a pouco, começou a abrir brechas para o encantamento de quem está prestes a agarrar um admirável mundo novo.

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez os medos se tornem bem menos assustadores sempre que somos capazes de os confiar a quem os acolhe e nos ajuda a transformá-los, abrindo espaço para o entusiasmo de quem quer agarrar o futuro com as duas mãos!

*Título de um romance de Auldous Huxley

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 12 de junho de 2016

Pode alguém ser quem não é*?!

  A Maria é Professora vai para mais de 10 anos. Foi por gosto que escolheu ensinar Português. Mas isso era dantes. Há muito que a paixão pela literatura (em que se foi “refugiando” desde muito nova) perdeu terreno para a angústia miudinha que toma conta de si a cada viagem para a Escola. Sente-se desrespeitada, atacada, desvalorizada pelos alunos. Está tão inflamada que sente a mínima interpelação provocatória como mais um atestado de incompetência. Sente-se incapaz de dar um murro na mesa e de mostrar quem é o Professor, quanto mais de pôr no bolso os 2 ou 3 alunos que parecem ter um gostinho especial em “picar” a Professora. Sente-se incapaz de se encantar com as obras que outrora a faziam sonhar, quanto mais de entusiasmar os alunos, ajudando-os a mergulhar nas histórias. Tentar falar com os colegas, pedir a sua ajuda, abrir aí um espaço de reflexão, está completamente fora de questão. Ou não entrasse em cada reunião dominada pela ideia aterrorizadora: “é desta que vão descobrir que sou uma absoluta incompetente e me vão encostar à parede”! Apesar de estar deslocada de casa, raramente entra nos jantares e noites de esplanada dos colegas. Fica tensa ao pé deles, sempre a medir as palavras. A Maria é uma mulher inteligente. Mas, ao pé dos colegas, de voz trémula, vai alternando as opiniões à medida do que imagina serem as suas expectativas. Se o Tomás - o Professor de Educação Física com quem fantasia noite após noite – está por perto, fica ainda mais calada do que o costume. Ao contrário do que muitas vezes imagina, a maioria dos colegas gostam dela (tanto que, apesar das suas desculpas recorrentes, não desistem de a convidar para os seus programas sociais). As opiniões camaleónicas (ao sabor do que imagina serem as expectativas dos outros) não deixam de ser irritantes, mas o olhar assustado e com um je ne sais quoi de bondoso e abandonado aproximam. Num desses jantares, depois de ter bebido 2 cervejas por pressão do grupo, não se aguentou e acabou a chorar com a Filipa, uma colega afetuosa que lhe elogiou as qualidades e lhe disse, de forma convicta, que uma mulher com as suas competências tinha que ser mais assertiva: com os alunos, a Direção da Escola, os colegas e o Amor. No dia seguinte, a Maria sentia-se dividida entre a vergonha de ter partilhado alguns dos seus “medos tontos” (como lhes chama), o medo de que a Filipa não os soubesse guardar, espalhando-os por toda a sala de Professores, e a esperança que brotou de se ter confiado um bocadinho a um “colo” afetuoso. Talvez tenha sido este o mote para pedir ajuda “para deixar de tentar ser quem não sou; para deixar de ter tanto medo de ser eu, como me dizia a Filipa”.
           
  Mas porque é que algumas pessoas parecem gastar tanta energia a tentar ser quem não são? Pode alguém ser quem não é?
Fomos aprendendo (com Winnicott e Sami-Ali, passando por Bion e tantos, tantos outros) que sermos mais iguais a nós próprios nos dá um sentido de coerência ao caminho, nos aproxima de quem puxa pelo melhor de nós e nos faz, mais vezes, felizes! Mas fomos aprendendo, também, que a assertividade, a autodeterminação e a autonomia se alimentam, desde muito cedo nas nossas vidas, de relações verdadeiras que, nunca deixando de nos mostrar os limites e de nos pôr no lugar, abrem espaço para o que somos, respeitando-nos os ritmos, validando-nos e ajudando-nos a legendar a intensidade do que sentimos, e nunca, nunca desistindo de puxar pelo melhor de nós. Em certo sentido, acho que nunca deve este deixar de ser, também, um dos pilares de uma relação terapêutica.


*Título de uma música do Sérgio Godinho

Nota: Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 22 de maio de 2016

Porque eu só estou bem aonde eu não estou!*

  Sempre foi bom a Física e a Matemática (ainda que a História nunca tivesse deixado de ser uma espécie de paixão platónica). Nos anos do Curso, numa área de interseção entre a Engenharia e as Novas Tecnologias (o sonho de qualquer mãe, portanto), foi conseguindo conciliar algoritmos com noitadas a saltitar entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré. “Bebia-se muito. E estava-se bem. Quer dizer…”. O Pedro sentia, na altura como hoje, uma ansiedade de fundo, ora mais miudinha ora mais ruidosa, mas sempre à espreita. À boa maneira da canção do António Variações, só parecia estar bem onde não estava, saltitando de bar em bar, à procura sabe-se lá do quê. Acabava por não se divertir tanto assim. Estava sempre em grupo, como se precisasse disso para se perder nos seus pensamentos e inseguranças. Bebia. Bebia muito. Não tanto por prazer. Menos ainda para celebrar a alegria de estarem juntos. Na verdade, tanta vodka, parecia não ser muito mais do que uma forma de calar uma ansiedade difusa, mas omnipresente, ao mesmo tempo que lhe dava a desinibição que precisava para se aproximar das turistas nórdicas. Turistas, sempre turistas. Ou, quando muito, estudantes Erasmus. Desde que a Maria, no 3º ano de Faculdade, o deixou de coração partido, não mais se permitiu aproximar de ninguém que pudesse percorrer as ruas da mesma cidade no mês seguinte.
  Com o fim do curso, uma oportunidade de emprego trouxe-o de volta à cidade que o viu crescer. Deixou para trás as noitadas de estudo no Técnico e as deambulações desenfreadas no Bairro Alto. O trabalho intenso fazia, agora, as vezes da Faculdade. Os bares novos as vezes dos velhos. Mas faltava dimensão (e disponibilidade) ao grupo, que isto de se terem reuniões importantes logo pela manhã tem que se lhe diga. A ansiedade, essa parecia ser cada vez menos miudinha. Teimava, agora, em impor-se de rompante nas situações mais inconvenientes, acelerando a respiração e fazendo o coração querer saltar pela boca.

  Talvez, às vezes, façamos todos um bocadinho de Pedro. Talvez, às vezes, as pessoas sejam todas um bocadinho especialistas em (de fuga para a frente em fuga para a frente) tentar camuflar a angústia. Mas se isso até pode, numa ou noutra circunstância muito particular, ser útil num primeiro momento, tenho para mim que, quando cristaliza em movimentos mais enquistados, deixa as pessoas mais distantes dos seus recursos saudáveis e, por isso, mais sozinhas e com menos armas para fazerem face a uma angústia crescente. Talvez seja só quando as pessoas se começam a reencontrar com as histórias e as pessoas que moram bem dentro da sua história, ao mesmo tempo que puxam para si quem lhes faz bem, que a esperança e a vitalidade ganham (verdadeira e decisivamente) o protagonismo à angústia e ao desamparo.

*Título inspirado na música do António Variações

 Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 8 de maio de 2016

Agora não que me dói a cabeça!*

  Começou por não querer ir às visitas de estudo. Porque os meninos cantam canções foleiras no autocarro, explica. Deixou, depois, de querer ir ao intervalo. Porque os meninos são muito brutos a jogar à bola e podem magoá-lo, justifica. Depressa deixou de querer ir à Escola. Mas, como seria de esperar, o argumento básico do “não gosto” não colheu junto dos pais. Tentou, por isso, aprimorá-lo com um sedutor: “podia ir contigo para o escritório, mamã”. Por mais que a mãe se tivesse, secretamente, sentido um bocadinho vaidosa, o argumento continuou, naturalmente, a não colher. Só havia uma solução: endurecer a luta! Vieram as dores de barriga e de cabeça (chegando, mesmo, a fazer febres ligeiras num ou noutro dia), os episódios de angústia e as crises de choro à saída de casa e à porta da Escola.
  Talvez o que o João estivesse a querer dizer com a sua escalada de “efeitos especiais” não fosse tanto que não gosta da Escola, mas mais que não sabe o que fazer ao medo! Talvez o que mais o assuste nas visitas de estudo não seja bem a qualidade das canções, mas mais o medo de sentir a discrepância incómoda entre a descontração divertida dos colegas e a contração tensa de quem não sabe muito bem como fazer para se chegar aos outros. Talvez o que o assuste mais no futebol não sejam bem as caneladas. Talvez seja mais o medo de não saber bem como é que se pode competir, de igual para igual (de forma leal, franca e aberta), sem se ser atropelado pela dor da derrota (potencial). Talvez o que o assuste mais na Escola não sejam tanto as idas ao quadro ou os testes, mas mais a ideia de que pode soçobrar perante o insucesso (seja ele na matemática, no futebol, nas canções ou na relação com os colegas).

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez alguns movimentos altivos e sobranceiros (à boa maneira da parábola da raposa e das uvas) e a cristalização de alguns evitamentos fóbicos não sejam muito mais do que uma forma que crianças e adultos utilizam para fugir (não indo, invariavelmente, a jogo) do fantasma de poderem ser engolidos pela dor da derrota. Mas se, muito circunstancialmente, movimentos desta natureza até nos podem proteger de um ou outro “perigo” potencial, quando se tornam sistemáticos, tenho para mim, que da única coisa que nos protegem é do melhor de nós próprios! 

* título inspirado no Movimento Perpétuo Associativo dos Deolinada

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 26 de abril de 2016

E se brincar fosse uma coisa muito séria?

  A Maria tem 9 anos e (quase) nunca menos de 95 % nas provas da Escola. Nas raras vezes em que ousa distrair-se um bocadinho e cometer a veleidade de ter só 85 % chora baba e ranho como se o mundo fosse acabar. É exemplar no ballet e na música. Nunca teve queixas na caderneta e a Professora, a catequista, as Professora do ballet e da música dizem, a uma só voz, que é um amor, que mais que uma menina parece uma mulher feita, de tão bem comportada. Um exemplo para os colegas, de tão sossegadinha que é, acrescenta a auxiliar que supervisiona o recreio.
  Mas se nas coisas de graúda a Maria vai pontuando quase sempre 100 %, vê-se aflita na hora de se misturar com as outras crianças, no recreio. A maioria das vezes tenta não se afastar da Professora ou da auxiliar. Os outros meninos jogam à bola ou à apanhada. À Maria assusta-a a forma sôfrega e atabalhoada como o fazem. Às vezes brincam às princesas ou às artistas de músicas infantis. Aí, a Maria lá se chega a medo, mas acaba por nunca encontrar o seu espaço no jogo. O mesmo se passa quando fazem construções na areia ou castelos com pedrinhas.
  Vai-se sentindo confortável com as coisas de adulto, com os testes e os trabalhos, as pautas e os passos de ballet treinados exaustivamente. Mas parece sempre tensa. Como se estivesse, permanentemente, a segundos de entrar para a entrevista do seu 1º emprego. Quase nunca faz um sorriso rasgado. Quase nada a parece divertir. Nem os jogos do tablet, aos quais se agarra intervalo após intervalo. Nem os bolos que faz com a mãe, nas tardes de sábado. Nem as atividades da catequese ou da música, que prepara meticulosamente.  Quase nada lhe parece dar o direito de brincar… pelo simples gozo de brincar.
 Se esta postura sisuda foi valendo alguns ganhos secundários à Maria, a verdade é que nunca deixou de preocupar a Professora. Tantas gerações de crianças a quem foi dando tanto colo quanto ralhetes, foram-lhe ensinando que é pelo menos tão importante o entusiasmo e o brilho nos olhos na hora de brincar, quanto uma letra redondinha e testes irrepreensíveis. Talvez tivesse razão a Professora: depressa o lado certinho da Maria começou a não ser suficiente para a segurar. Primeiro veio o evitamento de qualquer visita de estudo ou atividade fora da escola. Depois o medo de cães (de todos os tamanhos e feitios), de dormir e estar sozinha, de fazer audições públicas na música, etc., etc. . Depois as dores de cabeça antes de ir ao intervalo, primeiro, e ao acordar, depois. Multiplicavam-se os medos à medida que se encolhia, ainda mais, o seu entusiasmo e autonomia.

  Há um punhado de anos ouvi, num Congresso, uma extraordinária contadora de histórias (Cristina Taquelim) falar de um menino que queria ser “brincador” quando crescesse. É fascinante esta ideia de se ser “brincador”, não é?
 Parece que nos preocupamos todos muito (e bem, a meu ver) quando se sucedem os recados na caderneta, as queixas de comportamento ou os desencontros com as boas notas. Mas talvez nos preocupemos de menos com as crianças (e com os adultos) que, sem dar nas vistas, parecem ter muitas dificuldades em soltar o seu lado “brincador”: entusiasmado, curioso, ousado, atabalhoado às vezes, mas mexido e vivo. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 12 de abril de 2016

A quanto perigo preciso de me expor para me sentir vivo?

   Com apenas 18 anos de vida, o João já leva muito que contar. Está a repetir o 12º ano, depois de já ter repetido o 9º. A relação com os Professores é tensa. Com todos menos com o Professor de Matemática que, com a sua constância, afeto e firmeza, está a conseguir pôr o João no sítio, para espanto de toda a comunidade escolar. Apesar das explicações que se multiplicam (e, às quais, falta quase tanto como às aulas), as notas oscilam entre o medíocre e o satisfatório. Mas, por mais que a escola lhe doa (e dói, muito!), estará longe de ser o principal problema do João. Nos últimos meses foi parar 3 vezes ao Hospital, em estado quase comatoso, depois de beber shots em quantidades industriais. Fuma charros todos os dias e, de quando em vez, faz umas festas de experimentação de novas drogas com os amigos. Dantes comprava-as nas smartshops. Agora pela internet ou ao dealer lá da Escola. A grande prenda do seu 18º aniversário foi uma mota 125, que destruiu toda num acidente contra uma árvore e que lhe valeu umas quantas fraturas e um par de semanas no Hospital. Depois disso, já espatifou a mota do amigo contra uma barreira (desta vez sem danos físicos de maior). Vai acumulando, com os seus amigos, lutas violentas com grupos rivais que, de quando em vez terminam no hospital (para tratar escoriações) ou na esquadra (onde já foi parar, também, por posse de haxixe e pastilhas de ecstasy). A relação com os pais é distante e tensa. Não que não gostem dele. Não que não estejam preocupados. Mas tão depressa parecem desvalorizar com um “é da idade” comportamentos de claro perigo, como se excedem a propósito de um qualquer pormenor. Parecem conhecer mal o filho. Ter muita dificuldade em sintonizar-se com ele. Tanto que a sua principal preocupação, neste contexto mais ou menos explosivo, parecem ser as notas e a média para entrar na Faculdade! Já ao João nada o parece preocupar, vincando-o repetidas vezes, até rebentar num: “Eu não tenho sentimentos!” mais ou menos ameaçador!


   De facto, há jovens (e adultos!) que parecem sentir-se tão desvitalizados, tão desencontrados do espaço redentor da relação, da esperança, dos sonhos e dos projetos, que um contínuo desafio ao perigo (seja ele consubstanciado na condução de uma mota invariavelmente como se se estivesse a jogar um videojogo, no brincar ao Fight Club fim-de-semana sim fim-de-semana não, ou no anestesiar-se repetidamente com um cocktail de drogas e álcool, etc, etc.) parece ser a única forma de se sentirem vivos… de sentirem a adrenalina a correr nas veias! Esta sucessão vertiginosa de fugas para a frente (denegando os perigos) parece ser a única forma (disfuncional, mas ainda assim a única forma) que estão a encontrar para, ainda que apenas por momentos, aliviarem uma angústia avassaladora que os parece perseguir para onde quer que vão. A ser assim, para além de formar e informar sobre os riscos e os perigos (passo importante, naturalmente), será essencial dar a estes jovens o espaço relacional contentor (familiar, comunitário, escolar, psicoterapêutico…) que, ao mesmo tempo, que lhes bloqueia quaisquer exposições excessivas ao perigo, acolhe e os ajuda a legendar e pensar a angústia avassaladora que parecem carregar dentro de si (autêntico combustível dos comportamentos de risco, parece-me). 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 27 de março de 2016

A vida é um milagre!

   A Sara entrou na copa e com aquele olhar brilhante só dela pergunta-me, do nada: “acreditas em milagres?”. Na altura, os milagres eram, para mim, quando muito uma espécie de bruma de um passado que não volta. Entre as saudades imensas de uma grande paixão que acabou (muito contra a minha vontade) com a transparência cristalina com que começara, e o namoro com a Francisca que, valha a verdade, começou a morrer mesmo antes de nascer, aquilo que mais se aproximava de um milagre na minha vida, por aqueles dias, eram os longos cafés com a Sara, superados só, claro, pelos intermináveis, mas cada vez mais raros, telefonemas com a Inês (a grande paixão que terminou muito contra a minha vontade, com a transparência cristalina com que começara). Ainda assim, servindo-me descaradamente do filme do Kusturika, que tinha visto uns meses antes, atirei, com o meu ar mais sedutor (se é que se pode ser sedutor sem acreditar em milagres): A vida é um milagre! Se eu, na altura, fosse tão transparente como a Inês me mostrou, de uma forma visceral, que era possível ser (ser-lhe-ei eternamente grato por isso) não me teria acanhado quando, a caminho da praia, para mais um café de fim de tarde com a Sara, passou no rádio do carro aquela música extraordinária do Martinho da Vila com a Kátia Guerreiro, dando o mote para uma proximidade impossível de disfarçar. Se eu não tivesse, na altura, tanto medo de milagres… Sabe, acho que vinham daí as minhas insónias, a minha tristeza, a minha insegurança… acho que vinham do raio do medo de ir além dos meios milagres. Mas sabe, eu agora acho que já acredito mais vezes em milagres. E então agora que é desta que parece que nos deixámos de tretas e me entendi de vez com a Rita. Sabe, acho que ela é uma espécie de síntese para melhor de tudo o que de bom tinham as minhas outras namoradas. Pode parecer estúpido, mas percebi isso quando ela se sentou ao meu lado, no sofá do hotel, bem agarradinha a mim, a ver o jogo de futebol comigo, com aqueles olhos grandes a brilhar, a brilhar. E esta semana, no sábado, fez-me uma à filme: pediu-me para ir buscar o vinho à dispensa enquanto ela nos servia o jantar. Quando cheguei, pronto a fazer um brinde, tinha no meu prato os bilhetes de avião e dois bilhetes para o Nick Cave em Londres, enquanto ela trauteava o Into my arms. Com uma mulher destas posso lá eu não acreditar em milagres?!
Lá no Banco é que eu acho que não vão muito em milagres e as rescisões vão mesmo avançar! Fiquei com uma fúria! Andei estes anos a virar-me em masters e pós-graduações, a dar couro e cabelo por aquele banco e agora o melhor que mereço é a azeda oficial dos recursos humanos a dizer-me: tem sorte enquanto vai ter indemnização e subsídio de desemprego! Entre partir-lhe a cara e ir, de vez, fazer a viagem dos meus sonhos com a Rita… é desta que vamos à Argentina. Comprámos os voos ontem, via Barcelona. Ficamos cinco dias em Buenos Aires. Eu sempre quis dançar tango em Buenos Aires! E depois descemos de autocarro para a Patagónia, Estreito de Magalhães, Terra do Fogo… desde que vi um documentário com o meu pai que sempre fui dizendo… um dia, um dia. Pois hoje é o dia!
  Uns meses depois, tinha, na caixa de correio do consultório, uma carta com remetente de San Martin de los Andes (uma cidadezinha da Patagónia Argentina, soube, depois de pesquisar no google). Era um postal do Luís que dizia: “Depois de tudo, começar a arriscar desarrumar a minha vida ajudou-me a deixar-me de meios milagres. Vista dos Andes, a vida é (ora mais simples, ora mais dura) mesmo um milagre!”. Meses mais tarde, agora por e-mail, o Luís conta-me, orgulhoso, que conseguiu um bom emprego numa consultora financeira, em Londres, e a Rita um lugar bem pago, num hospital a meia-hora da cidade. 

   Acho que o Luís, ao me ter dado o privilégio de assistir, ao vivo e a cores, à construção lenta (com muitas dúvidas e dor à mistura) do seu milagre, me ajudou a acreditar mais vezes em milagres! Fico-lhe muito grato por isso!

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 15 de março de 2016

De tanto querer bater baixinho…o meu coração não pára de me sobressaltar!

A Maria é enfermeira no Serviço onde entrara há 14 anos, com a insegurança natural do primeiro emprego. Já assistiu a recuperações quase milagrosas e já se enterneceu com os gestos de bondade e gratidão dos seus doentes e familiares, ou com a solidariedade desprendida de um outro colega. Mas, vezes sem conta, já se sentiu atropelada por uma tristeza sem fim, ao assistir, impotente, ao desmoronar, lento ou súbito, de vidas e famílias. Vezes sem conta, já se sentiu profundamente magoada pela ira de doentes ou familiares ingratos ou de chefes prepotentes. Vezes sem conta, já se sentiu invisível na hora de receber os louros que, por elementar justiça, seriam também seus. E vezes sem conta, calou a tristeza, a raiva ou o medo. É preciso correr. Passar no supermercado. Ir buscar as miúdas à escola. Fazer o jantar. Dar um jeito à casa até, por fim, entrar de novo no hospital, para mais uma noite entre gemidos de dor e desamparo. Muito cansada prefere, ainda assim, os turnos agitados. O silêncio e a calma trazem-lhe de volta a tristeza, a raiva, o medo… e, com eles, a culpa, como se, por algum motivo, não estivesse autorizada a sentir!
   Ao António sempre inquietou a ideia de dor e de morte. Imaginando o ruído que a proximidade diária com elas poderia causar na paz interior da mulher por quem se apaixonou ainda na Faculdade, tentava, com insistência, dar colo e espaço para a Maria “chorar” as perdas do Hospital, e as outras, as da vida. Mas isso foi há muitos anos. A Maria nunca foi muito de se abrir. Assustava-a a ideia de se confiar a um colo… mesmo que fosse o do marido, que sempre soube ser confiável. Desde pequenina que se foi habituando a guardar para si as tristezas, as revoltas, as mágoas e os azedumes. Desde pequena que se foi habituando a ser paciente e calma, a nunca perder a cabeça um bocadinho que fosse. Um bocadinho ao jeito das crianças pequenas que, quando começam a brincar às escondidas, tapam a cara com as mãos, na esperança de que deixem de ser vistas, a Maria foi agindo como se acreditasse que ao fingir com muita força que não sentia, talvez as tristezas, as raivas, os desamparos, as culpas e os desencontros desaparecessem, como que por magia. Foi assim durante anos e anos a fio. Até que, subitamente (quase nunca é subitamente!), e sem nada que o fizesse prever (como se anos e anos a tentar reiteradamente fintar o que sente não trouxesse, mais tarde ou mais cedo, uma fatura a pagar… para além da que se vai pagando dia após dia), a Maria calma e paciente parece uma bomba relógio, pronta a rebentar ao mais leve deslize das filhas, ao mais bem-intencionado apelo do marido ou à mais natural interpelação das colegas do Hospital. Como se isso não bastasse, vieram as crises de angústia, em catadupa, e com elas, os medos, uns atrás dos outros.

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez sempre que façamos, insistentemente, por amordaçar a sabedoria do corpo, sinalizando como perigosas as emoções que nos protegem e que (qual GPS de última geração) nos guiam os passos, tarde ou cedo, ela acabe por se fazer ouvir! Até podemos varrer as emoções continuadamente para debaixo do tapete (onde causam muito mais ruído do que nos iluminam o caminho) durante algum tempo mas, quando assim é, creio que de tanto as tentarmos domar (em vez de as pensar e gerir), acabamos (à custa de muito ruído) domados por elas! O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa viver sem soçobrar. O grande desafio talvez seja, então, o de encontrar o espaço relacional que as possa pensar e integrar (ligando os fragmentos dispersos das histórias que vivem dentro de nós), para que possam recuperar, primeiro, e refinar, depois, o seu papel de farol que nos ilumina o caminho. 

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

As vidas têm pessoas dentro!

   Fomos aprendendo (muito em especial com os psicanalistas das relações de objeto) que o que somos deriva, em boa medida, da forma – ora mais serena, ora mais turbulenta – como dialoga a complexa rede de pessoas diferentes que guardamos dentro de nós.
Umas fazem de figurantes com mais ou menos pinta; outras de estrela polar ou de farol; umas fazem de pirilampo, outras de papão; umas fazem de assombração ou alma penada. Umas fazem-nos sentir, na melhor das hipóteses, entre o purgatório e o inferno. Outras mostram-nos o caminho para o céu. Outras, (melhor ainda!) fazem-no acontecer.
Acho que algures dentro de nós há um sítio, uma espécie de praça enorme e cosmopolita, onde convive toda esta gente. Umas nas filas da frente, outras no meio da multidão, outras ainda com o rosto desfocado já. Mas estão lá todas.
Moram lá as pessoas que, quais pirilampos, tão depressa nos tratam com uma gentileza desconcertante, como a seguir conseguem ser de uma frieza gélida. Moram lá as pessoas ao pé das quais, invariavelmente, nos fomos sentindo pequeninos, presos, medrosos… bem longe do melhor de nós, portanto. Moram lá as pessoas que, em tempos, nos fizeram brilhar os olhos ao indicarem-nos, à distância, o caminho para o céu, mas que se perderam pelo caminho. Moram lá as pessoas que foram tão visceralmente transparentes connosco, mesmo em circunstâncias muito difíceis (ligando, com uma humanidade à prova de bala, aquilo a que Bion chama os vínculos do amor e do conhecimento), que – mesmo tendo bifurcado caminhos - nos acompanham (por dentro) vida fora, qual estrela guia, para nos lembrarem que o céu existe mesmo. Moram lá as pessoas cujo brilho nos olhos não ia muito além do reflexo do brilho do nosso encantamento por elas (muito ao jeito do retrato de Dorian Gray, mas ao contrário). Moram lá as pessoas que, tendo sido muito importantes para nós, acabaram, por um ou outro motivo, por nos decepcionar profundamente. Às vezes, insistem, ainda assim, em pairar sobre (quase) tudo, qual fantasma mais ou menos omnipresente. Outras, felizmente, vão direitinhas das primeiras filas para uma espécie de despensa, de onde reaparecem de vez em quando, ora para nos lembrarem (qual sinal de STOP) tudo o que não queremos para nós, ora para nos recordarem (qual sinal de avançar a todo o vapor) todos os aspetos que admirávamos em si. 
 Moram lá as pessoas que, de descuido em descuido, são despromovidas devagarinho até se tornarem numa espécie de figurantes com rosto desfocado. Moram lá as pessoas que, de gesto de bondade em gesto de bondade, sobem a pulso das distritais até à Champions das nossas vidas. Moram lá as pessoas que, com o seu amor e admiração, nos fazem sentir o "special one", ao mesmo tempo que, de cada vez que abusamos na vaidade, nos põem no lugar e nos lembram que somos só um em milhões com o coração no sítio e os neurónios a funcionar. Moram lá as pessoas que foram tendo inúmeros atos generosos para connosco, dos quais não soubemos, à época, estar à altura e, por isso, só sossegámos dentro de nós, quando fomos capazes de um pedido de desculpas sentido, honesto, transparente. Moram lá as pessoas que, já estando na linha da frente, ainda têm a capacidade de nos surpreender com a sua transparência e bondade, saltando das 1ª filas para o centro do palco, com todos os holofotes sobre si. Moram lá as pessoas que, lendo-nos até às entranhas, nos puxam para si com tal amor que fazem brilhar o nosso olhar no delas, mostrando-nos que o céu, muito mais do que uma questão de fé, somos nós, juntos.


 Acho que somos decisivamente influenciados por esta espécie de globalização que acontece, a cada momento, dentro de nós. Talvez seja a forma como permitimos que este diálogo cosmopolita se torne cada vez mais fluído, inclusivo e transparente - pondo todas as personagens (tão diferentes entre si) do nosso mundo interior (e exterior) à discussão – que faz realmente a diferença nas nossas vidas. Talvez seja isso que nos faz correr para quem nos ajuda a encontrar e a construir o caminho para o céu, e nos afasta de quem, na melhor das hipóteses, nos deixa às portas do purgatório. Talvez seja isso que nos afasta da saudade depressiva do: “o melhor da vida já lá vai” e nos empurra para a ânsia de viver aqui e agora, com saudades do futuro. Afinal, o melhor da vida está mesmo ali, ao fundo da avenida. Mais coisa, menos coisa. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

E se falássemos do medo?

  A Maria tem medo. O Manuel, o Francisco e o vizinho da frente também. Mas a Maria parece tolhida, dominada por ele. Tem medo de perder o emprego. Apesar de ter uma situação contratual estável, de ser uma profissional competente e de ser um quadro valioso para a empresa, tem medo que o novo chefe lhe faça a folha. Tem medo do terrorismo. Por isso, com uma culpabilidade do tamanho do mundo, não conseguiu ficar feliz quando o marido colocou no tabuleiro, em que lhe levou o pequeno-almoço à cama, bem entre os croissants e a meia de leite, dois bilhetes para Paris. O medo de andar de avião transformou-se em pânico. Por isso, trocou a viagem à Capadócia que o marido tinha ganho como prémio de produtividade, por uns dias na aldeia onde crescera. O gozo que lhe dava aproveitar a lareira e o abraço do marido, enquanto a chuva batia violenta nas vidraças, transformou-se numa espécie de estado de alerta permanente, que a faz acordar, assustada, a cada rajada de vento mais forte. O prazer (que misturava serenidade com cabelos em pé) de ser mãe tem-se vindo, paulatinamente, a transformar em culpa e em medo: medo de falhar, de não ser suficiente, de ser ausente, de não ser capaz. O gozo de fazer compras no centro comercial ou na Baixa da cidade já foi, também ele, tomado pelo enorme desconforto que começou a sentir no meio das multidões.
 “O medo está-me a roubar a vida! Tenho medo de tudo!” sintetiza a Maria.

  O medo é um recurso inestimável. Graças a ele, a Humanidade foi, desde sempre, escapando aos mais variados perigos (dos animais da selva aos grupos de bandidos que atacavam em lugares ermos). Graças a ele, poupamos, todos os dias, uma série de disparates. Mas, se o medo pode ser protetor nas mais variadas circunstâncias, tornar-se-á paralisante sempre que mina, por dentro, o entusiasmo, a iniciativa e a esperança. Lembro-me sempre, a este propósito, de uma cena muito bonita de O Talentoso Mr. Ripley : uma pianista prodigiosa e muito aclamada senta-se ao piano para dar início a um concerto muito importante. Ao perceber que o companheiro não está na plateia fica profundamente triste e muito, muito insegura. Minutos depois, quando ele chega, já atrasado, ganha uma “nova alma”, e volta a ser a pianista talentosa, criativa, segura e entusiasmada que a faz ter admiradores por todo o mundo. Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez a questão nem sempre deva ser: como é que se pode deixar de ter medo? Talvez faça sentido pararmos para perguntar: como é que nos podemos (re)encontrar com as histórias que moram dentro de nós, a ponto de percebermos ao pé de quem (dentro de nós) é que nos sentimos suficientemente seguros para, apesar do medo, das dúvidas e das inseguranças, avançarmos com bravura?

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

O balão do João: coragem e outros medos!

  O João tem uma mão cheia de Kgs a mais e é demasiado preso de movimentos para ser bom a jogar à bola. Nas aulas, o rubor toma conta de todo o seu rosto só de imaginar que um Professor o pode interpelar para ler um texto em voz alta, ou para ir ao quadro resolver um exercício. O Manuel e o Francisco, intuindo o pouco à vontade do João, não perderam tempo. Começaram a ridiculariza-lo, levando consigo uma parte muito significativa da turma. Chamavam-no vermelhão, a princípio. Depressa recuperaram o hit da Fafá de Belém, cantando em coro: “vermelho, vermelhusco, vermelhão” de cada vez que o João passava. Estenderam, depois, os mimos à pouca destreza física que o João expressava nas aulas de Educação Física e, daí, à forma atrapalhada como se relacionava com as raparigas.
  A cada dia que passava, mais o caminho para a Escola parecia uma espécie de via verde para a “tortura”. O João ia procurando ocupar o menos espaço possível (quem lhe dera ser invisível), mantendo o seu sofrimento em segredo. Tinha vergonha. Muita vergonha. A sua autoestima andava, por aqueles dias, pelas ruas da amargura. Até as notas que, apesar de tudo, a iam alimentando começariam a ressentir-se em breve. Temia, porventura, sentir-se mais ridículo, fraco e desamparado ainda, se procurasse ajuda nos pais ou num ou noutro Professor. Sentia-se uma fraude, “um fraco”, “um pilinhas”. Tudo o que queria era ser um vencedor aos olhos dos pais. E da Joana, do canto da sala que, por mais que uma vez, ousou defendê-lo contra as investidas de boa parte dos colegas.
 Para além disso tudo, inevitavelmente, alimentava um “odiozinho” de estimação silencioso para com o Manuel e o Francisco, dois franzinotes com ar de rufias.
           
  O João precisa de ajuda. Precisa de quem o proteja, em primeiro lugar, pondo no lugar quem usa e abusa das fragilidades do João para esconder e acalmar as suas. Precisa de quem, ao ajudá-lo a descodificar o que sente, o ajude a perceber que só se é verdadeiramente um vencedor para alguém quando há, na relação, um lugar para expor e olhar de frente as fragilidades. Precisa de quem o ajude a perceber que, sem esse espaço de intimidade, até se pode fingir bem, mas talvez nunca se seja verdadeiramente seguro de si. Precisa de quem, ao ajudá-lo a descodificar o que sente e a passar daí às ações intencionais, o ajude a perceber que, mesmo com todas as fragilidades e medos do mundo, tem mais do que qualidades para ser o vencedor junto dos pais, das Joanas que lhe aparecerão vida fora e de todas as pessoas que se vão deixar encantar pelas suas qualidades e fragilidades. Precisa de quem, ao ajudá-lo a encontrar-se no que sente e a daí retirar contrapartidas práticas, o ajude a usar as suas qualidades para aprender a pôr no lugar os Manéis e os Franciscos da sua vida. Precisa de quem o ajude a puxar pelas suas competências, percebendo, por exemplo, que até pode não ser um Messi dos recreios, mas que o porte físico considerável e a velocidade não desprezável podem ser uma grande vantagem competitiva no rugby ou em muitos outros desportos. Estará assim, creio, muito mais perto de se sentir (entre o medo e a audácia, as vitórias e as deceções) capaz de, com entusiasmo, nunca desistir de (re)encontrar o caminho para se sentir o vencedor no coração de todos aqueles que mais importam.


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.