A Maria tem medo. O Manuel, o Francisco e o vizinho
da frente também. Mas a Maria parece tolhida, dominada por ele. Tem medo de
perder o emprego. Apesar de ter uma situação contratual estável, de ser uma
profissional competente e de ser um quadro valioso para a empresa, tem medo que
o novo chefe lhe faça a folha. Tem medo do terrorismo. Por isso, com uma
culpabilidade do tamanho do mundo, não conseguiu ficar feliz quando o marido colocou
no tabuleiro, em que lhe levou o pequeno-almoço à cama, bem entre os croissants
e a meia de leite, dois bilhetes para Paris. O medo de andar de avião
transformou-se em pânico. Por isso, trocou a viagem à Capadócia que o marido
tinha ganho como prémio de produtividade, por uns dias na aldeia onde crescera. O gozo que lhe dava aproveitar a lareira e o abraço
do marido, enquanto a chuva batia violenta nas vidraças, transformou-se numa
espécie de estado de alerta permanente, que a faz acordar, assustada, a cada rajada
de vento mais forte. O prazer (que misturava serenidade com cabelos em pé) de
ser mãe tem-se vindo, paulatinamente, a transformar em culpa e em medo: medo de
falhar, de não ser suficiente, de ser ausente, de não ser capaz. O gozo de
fazer compras no centro comercial ou na Baixa da cidade já foi, também ele,
tomado pelo enorme desconforto que começou a sentir no meio das multidões.
“O medo
está-me a roubar a vida! Tenho medo de tudo!” sintetiza a Maria.
O
medo é um recurso inestimável. Graças a ele, a Humanidade foi, desde sempre,
escapando aos mais variados perigos (dos animais da selva aos grupos de
bandidos que atacavam em lugares ermos). Graças a ele, poupamos, todos os dias,
uma série de disparates. Mas, se o medo pode ser protetor nas mais variadas
circunstâncias, tornar-se-á paralisante sempre que mina, por dentro, o
entusiasmo, a iniciativa e a esperança. Lembro-me sempre, a este propósito, de
uma cena muito bonita de O Talentoso Mr.
Ripley : uma pianista prodigiosa e muito aclamada senta-se ao piano para
dar início a um concerto muito importante. Ao perceber que o companheiro não
está na plateia fica profundamente triste e muito, muito insegura. Minutos
depois, quando ele chega, já atrasado, ganha uma “nova alma”, e volta a ser a
pianista talentosa, criativa, segura e entusiasmada que a faz ter admiradores
por todo o mundo. Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez a questão nem
sempre deva ser: como é que se pode deixar de ter medo? Talvez faça sentido pararmos para perguntar: como é que nos podemos (re)encontrar com as histórias que moram dentro de nós, a ponto de percebermos ao pé de quem (dentro de nós) é que nos sentimos suficientemente
seguros para, apesar do medo, das dúvidas e das inseguranças, avançarmos com bravura?
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela
intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e
aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente),
como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo,
uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está
muito longe de corresponder a uma descrição literal.
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