domingo, 12 de junho de 2016

Pode alguém ser quem não é*?!

  A Maria é Professora vai para mais de 10 anos. Foi por gosto que escolheu ensinar Português. Mas isso era dantes. Há muito que a paixão pela literatura (em que se foi “refugiando” desde muito nova) perdeu terreno para a angústia miudinha que toma conta de si a cada viagem para a Escola. Sente-se desrespeitada, atacada, desvalorizada pelos alunos. Está tão inflamada que sente a mínima interpelação provocatória como mais um atestado de incompetência. Sente-se incapaz de dar um murro na mesa e de mostrar quem é o Professor, quanto mais de pôr no bolso os 2 ou 3 alunos que parecem ter um gostinho especial em “picar” a Professora. Sente-se incapaz de se encantar com as obras que outrora a faziam sonhar, quanto mais de entusiasmar os alunos, ajudando-os a mergulhar nas histórias. Tentar falar com os colegas, pedir a sua ajuda, abrir aí um espaço de reflexão, está completamente fora de questão. Ou não entrasse em cada reunião dominada pela ideia aterrorizadora: “é desta que vão descobrir que sou uma absoluta incompetente e me vão encostar à parede”! Apesar de estar deslocada de casa, raramente entra nos jantares e noites de esplanada dos colegas. Fica tensa ao pé deles, sempre a medir as palavras. A Maria é uma mulher inteligente. Mas, ao pé dos colegas, de voz trémula, vai alternando as opiniões à medida do que imagina serem as suas expectativas. Se o Tomás - o Professor de Educação Física com quem fantasia noite após noite – está por perto, fica ainda mais calada do que o costume. Ao contrário do que muitas vezes imagina, a maioria dos colegas gostam dela (tanto que, apesar das suas desculpas recorrentes, não desistem de a convidar para os seus programas sociais). As opiniões camaleónicas (ao sabor do que imagina serem as expectativas dos outros) não deixam de ser irritantes, mas o olhar assustado e com um je ne sais quoi de bondoso e abandonado aproximam. Num desses jantares, depois de ter bebido 2 cervejas por pressão do grupo, não se aguentou e acabou a chorar com a Filipa, uma colega afetuosa que lhe elogiou as qualidades e lhe disse, de forma convicta, que uma mulher com as suas competências tinha que ser mais assertiva: com os alunos, a Direção da Escola, os colegas e o Amor. No dia seguinte, a Maria sentia-se dividida entre a vergonha de ter partilhado alguns dos seus “medos tontos” (como lhes chama), o medo de que a Filipa não os soubesse guardar, espalhando-os por toda a sala de Professores, e a esperança que brotou de se ter confiado um bocadinho a um “colo” afetuoso. Talvez tenha sido este o mote para pedir ajuda “para deixar de tentar ser quem não sou; para deixar de ter tanto medo de ser eu, como me dizia a Filipa”.
           
  Mas porque é que algumas pessoas parecem gastar tanta energia a tentar ser quem não são? Pode alguém ser quem não é?
Fomos aprendendo (com Winnicott e Sami-Ali, passando por Bion e tantos, tantos outros) que sermos mais iguais a nós próprios nos dá um sentido de coerência ao caminho, nos aproxima de quem puxa pelo melhor de nós e nos faz, mais vezes, felizes! Mas fomos aprendendo, também, que a assertividade, a autodeterminação e a autonomia se alimentam, desde muito cedo nas nossas vidas, de relações verdadeiras que, nunca deixando de nos mostrar os limites e de nos pôr no lugar, abrem espaço para o que somos, respeitando-nos os ritmos, validando-nos e ajudando-nos a legendar a intensidade do que sentimos, e nunca, nunca desistindo de puxar pelo melhor de nós. Em certo sentido, acho que nunca deve este deixar de ser, também, um dos pilares de uma relação terapêutica.


*Título de uma música do Sérgio Godinho

Nota: Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

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