domingo, 8 de maio de 2016

Agora não que me dói a cabeça!*

  Começou por não querer ir às visitas de estudo. Porque os meninos cantam canções foleiras no autocarro, explica. Deixou, depois, de querer ir ao intervalo. Porque os meninos são muito brutos a jogar à bola e podem magoá-lo, justifica. Depressa deixou de querer ir à Escola. Mas, como seria de esperar, o argumento básico do “não gosto” não colheu junto dos pais. Tentou, por isso, aprimorá-lo com um sedutor: “podia ir contigo para o escritório, mamã”. Por mais que a mãe se tivesse, secretamente, sentido um bocadinho vaidosa, o argumento continuou, naturalmente, a não colher. Só havia uma solução: endurecer a luta! Vieram as dores de barriga e de cabeça (chegando, mesmo, a fazer febres ligeiras num ou noutro dia), os episódios de angústia e as crises de choro à saída de casa e à porta da Escola.
  Talvez o que o João estivesse a querer dizer com a sua escalada de “efeitos especiais” não fosse tanto que não gosta da Escola, mas mais que não sabe o que fazer ao medo! Talvez o que mais o assuste nas visitas de estudo não seja bem a qualidade das canções, mas mais o medo de sentir a discrepância incómoda entre a descontração divertida dos colegas e a contração tensa de quem não sabe muito bem como fazer para se chegar aos outros. Talvez o que o assuste mais no futebol não sejam bem as caneladas. Talvez seja mais o medo de não saber bem como é que se pode competir, de igual para igual (de forma leal, franca e aberta), sem se ser atropelado pela dor da derrota (potencial). Talvez o que o assuste mais na Escola não sejam tanto as idas ao quadro ou os testes, mas mais a ideia de que pode soçobrar perante o insucesso (seja ele na matemática, no futebol, nas canções ou na relação com os colegas).

 Talvez seja sempre um bocadinho assim. Talvez alguns movimentos altivos e sobranceiros (à boa maneira da parábola da raposa e das uvas) e a cristalização de alguns evitamentos fóbicos não sejam muito mais do que uma forma que crianças e adultos utilizam para fugir (não indo, invariavelmente, a jogo) do fantasma de poderem ser engolidos pela dor da derrota. Mas se, muito circunstancialmente, movimentos desta natureza até nos podem proteger de um ou outro “perigo” potencial, quando se tornam sistemáticos, tenho para mim, que da única coisa que nos protegem é do melhor de nós próprios! 

* título inspirado no Movimento Perpétuo Associativo dos Deolinada

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.

3 comentários:

  1. Ao ler em profundidade o texto, que a meu ver constitui uma grande fonte de pistas de reflexão sobre a relação, surgiram duas questões que gostaria de colocar:
    -Poderão, de algum modo, os padrões relacionais dos pais com a criança, desde que esta última nasceu, ter provocado ou ampliado o sentimento de medo ou angústia que foi descrito?
    -Se esse medo e essa angústia são realmente causados pela atitude dos pais na relação com o filho, será que esse filho revelará plenamente aos pais o que sente e será que a tentativa de intervenção dos pais resultará bem conseguida?

    Muito obrigado pela partilha.

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário e pelas suas questões.

      Tenho para mim que as relações entre pais e filhos são tão preciosas que nunca deixam de ter uma contribuição decisiva para tudo o que se passa com a criança: sejam os medos, as angústias ou os seus inúmeros recursos saudáveis.
      Se uma lógica de causalidade linear não me parece, de todo, servir para compreendermos melhor a complexidade das relações humanas (entre pais e filhos, nomeadamente), acho que os pais serão sempre uma variável crucial no desenvolvimento da criança.
      Acho que, muitas vezes, as crianças (como os adultos!) utilizam uma espécie de código encriptado... na esperança de que quem é muito, muito importante para elas não só o possa decifrar até à última linha, como a seguir ainda as possa ajudar a serem cada vez mais claras nos apelos! E é nestas circunstâncias que, uma ou outra vez, me parece que pode ser importante ajudar os pais a afinar um ou outro aspeto, ajudando-os a traduzir por palavras códigos, porventura, excessivamente encriptados.

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  2. Obrigado pela clareza da sua resposta.

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