O Bernardo tem demasiada história para tão tenra idade. Vítima de maus-tratos e abandonos
sucessivos nos primeiros anos de vida, conserva, ainda assim, um olhar vivo e
apelativo. Talvez isso o tenha ajudado a encontrar-se nuns novos pais que,
embora ainda à procura da melhor forma de o ajudar a crescer, têm a alma de quem,
genuinamente, está determinado a alumiar-lhe o caminho e a amparar-lhe as dores
de crescimento.
As
atitudes provocatórias para com a Escola sucedem-se. O olhar vivo e apelativo
ajuda a reunir recursos e pessoas à sua volta, mas os atos sucessivos de
indisciplina deixam os pais e uma parte muito significativa da Escola com os
cabelos em pé. As notas variam rapidamente entre os 70% e os 15%. A oscilação
acentuada das suas performances escolares não parece acontecer tanto pela
especificidade das matérias, mas mais pelo estado da relação com a Escola e com
este ou aquele Professor em específico, no momento particular das avaliações.
Curiosamente,
as pessoas de quem mais gosta são aquelas para quem, reiteradamente, dirige a
sua insolência de uma forma mais vincada e inflamada. É assim com o Professor
de Português e com a Professora de Matemática. É assim com a mãe. É assim com
o pai. Não! O Bernardo não precisa da complacência de quem
feche os olhos à sua insolência insuportável, numa lógica de: “coitadinho, já
passou por tanto”. Estou
em crer que o Bernardo precisa, em primeiro lugar, de quem não desista dele. De
quem o ajude a perceber que é especialmente insolente com quem mais gosta,
como se, à cautela, precisasse de se certificar vezes sem conta que não vai
ser, uma vez mais, deixado ao abandono por quem mais precisa de ter perto de si.
Precisa, tenho para mim, de quem o ajude a transformar o que sente em palavras.
E as palavras em histórias. Ao mesmo tempo que não cede um milímetro na hora de
o pôr no lugar.
A
qualidade das relações que mantemos parece, de facto, refletir-se em muitos
aspetos cruciais do nosso percurso de vida. Será assim, especialmente, com as experiências infantis, que funcionarão, em muitos aspetos, como um protótipo para as
relações futuras. Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos tornarão mais
predispostos para sermos mais ou menos medrosos, mais ou menos afoitos, mais ou
menos confiantes (e confiáveis), mais ou menos desconfiados das nossas próprias
capacidades. Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos deixarão mais
perto - ou pelo contrário mais longe – de convivermos bem com o que sentimos, de
confiarmos no outro, de nos aproximarmos dele e de gerirmos bem a proximidade.
Marcar-nos-ão de uma forma tão profunda que nos deixarão mais ou menos aptos para, perante o desconhecido, cerrarmos os punhos e acreditarmos – por intenções
e por atos - que “no final tudo bate
certo” (à boa maneira do Segundo Exótico Hotel Marigold).
Mas, por mais que as experiências
infantis se reflitam vida fora de uma forma muito significativa, estarão longe
de ser uma espécie de oráculo determinista a que é impossível fugir. Tenderão,
muitas vezes, a eternizar-se em relações novas com padrões de funcionamento
antigos, numa lógica viciada de mudar para que o essencial fique na mesma. Mas
não terá, forçosamente, de ser assim. Parece-me.
Talvez a reparação efetiva de feridas
abertas por experiências mais ou menos traumáticas ou por uma história
relacional muito marcada por desencontros e mal entendidos, não possa é passar
à margem de novos padrões relacionais, impulsionadores de relações verdadeiramente
diferentes (com pessoas novas e pessoas de sempre) e mais saudáveis (que ajudem
a sintonizar-se com a própria história e que instiguem a olhar nos olhos aquilo
que se sente, a traduzi-lo em palavras e enredos partilhados, primeiro, e em ações plenas de intencionalidade, depois). Terá este de ser, sempre, um dos eixos centrais de uma psicoterapia. Parece-me.
(Inspiração: http://ww2.kqed.org/mindshift/2014/12/19/which-early-childhood-experiences-shape-adult-life/)
Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o
privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que
estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser,
este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
Sem comentários:
Enviar um comentário