quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Pelo direito à tristeza!

    A Joana foi fazer umas análises de rotina que, rapidamente se transformaram numa bateria de exames, num internamento e, pior, num diagnóstico de cancro. E num ápice, o chão ruiu, bem por debaixo dos seus pés. O marido e o filho, aterrorizados, desdobravam-se em mimos e cuidados. Mal as visitas se tornaram menos exclusivas vieram as colegas de trabalho. Bem intencionadas, às primeiras lágrimas da Joana, abafaram-na com : “tens de ser forte! Tens de te conformar! Tens de pensar positivo! Tens de reagir!”. Martelava, na cabeça da Joana, uma raiva profunda e silenciosa. Se fosse traduzida em palavras, seria, em versão soft, qualquer coisa como: “têm ideia do que estão a dizer?! Fazem uma pequeníssima ideia daquilo porque estou a passar?!” 
 Viria, felizmente, a correr tudo bem com a Joana. Disse, anos mais tarde: “sentia-me muito melhor depois de chorar com o meu marido. Esses momentos davam-me força. Tenho um marido incrível!”

   Talvez a falta de espaço para a tristeza seja ainda mais sufocante quando as pessoas adoecem. É preciso pensar positivo, reagir, fazer e acontecer. Como se, de repente, não fosse a coisa mais natural do mundo uma pessoa vir-se abaixo quando, sem apelo nem agravo, lhe cai o mundo em cima. Como se, de repente, nestas circunstâncias (como em tantas outras em que o chão parece fugir bem por debaixo dos pés), não fosse a coisa mais natural do mundo sentir uma raiva a querer saltar pela boca, um medo de morte ou uma tristeza que faz do peito uma espécie de buraco negro sem fim.  
   Sugerir, à cabeça, a uma pessoa atordoada com a brutalidade das notícias, com o desgaste dos tratamentos ou com a omnipresença do fantasma de risco de vida, que tem de pensar positivo, por mais que seja bem-intencionado (e é, quase sempre), corre o risco de magoar. E estará – tenho para mim- a léguas de se sintonizar com o que as pessoas sentem.
   Ficar enredado em segredos do tu sabes que eu sei que tu sabes, em que todos fingem que não se passa nada, por mais que seja bem intencionado (e é, quase sempre) corre o risco de deixar as pessoas demasiado sozinhas com o seu sofrimento. Talvez o que as pessoas precisem, num primeiro momento, seja de um colo para chorar abertamente, para poderem ficar tristes sem a preocupação de que o colo possa quebrar. Chorar lava a alma, mas só (tenho para mim) se for num abraço que não se assuste com a tristeza nem se parta com o sofrimento. Resistir aos atalhos que atiram a tristeza (o medo ou a raiva), invariavelmente para debaixo do tapete; acolher o sofrimento, sintonizarmo-nos com ele, traduzi-lo em palavras, em gestos e em olhares… talvez seja a forma mais efetiva de ajudar a esperança a brotar. E, com ela, a proatividade e o espírito combativo.  

(Inspiração em: http://www.publico.pt/portugal/jornal/cancro-afinal-e-permitido-chorar-25995723)


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue -  sendo, por vezes, inspirados num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

27 comentários:

  1. Que belo texto.
    Muito obrigada por partilhar pensamentos e opiniões tão importantes e úteis.

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  2. Sabe... É isso mesmo!! Muito verdade!

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    1. Muito obrigado pela simpatia do seu comentário, Leonor Capao.

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  3. Revi-me neste texto, tal e qual como o que aconteceu comigo. A unica diferença ela é a Joana e eu sou a Monica, ela tem 1 filho e eu 2, e o meu marido também é espetacular

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    1. Também me revi, também aconteceu comigo....mas com a diferença que foi com o meu filho...perdi-o para a doença, sinto-me no direito de me sentir triste :(

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    2. Muito obrigado pela simpatia e cuidado dos comentários!

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  4. Tão verdade! e às vezes, nem é preciso ser na situação de uma doença grave... Às vezes apenas nos sentimos tristes e precisamos de espaço e tempo para sentir essa tristeza. É termos empatia ao invés de simpatia, é não minimizar o sofrimento dos outros, é ter sensibilidade para em vez de bater no ceguinho com as frases do costume ("Tens de ter força, tens de te aguentar, é preciso pensamento positivo") mudar o discurso para um simples " eu sei que é difícil, mas estou aqui para o que precisares, seja isso um ombro para chorar, uma companhia silenciosa ou um espetaculo se stand up comedy para te fazer rir até doer a barriga". é apenas estar presente e dar o nosso tempo sem frases bacocas e sem impedir a outra pessoa de sofrer e chorar o que precisa pelo egoísmo de não querermos presenciar esse sofrimento e choro...

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    1. Acho que sim, que (tantas vezes)talvez seja um bocadinho assim. Muito obrigado pelo seu comentário, Diana Filipe Silva.

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  5. Só quem viveu ou vive esses momentos pode articular alguma palavra ou gesto que possa ajudar. Tudo soa a muito "falso". É preciso estar "dentro" para sentir, mas para estar "dentro" é preciso que se deixe entrar, desabafar, chorar, viver...
    Assim é na doença, na vida, na morte, nas decepções diárias.
    Belo texto e muito acertivo.
    Obrigada pela partilha

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  6. Obrigado por este texto. Tomei a liberdade de o partilhar na minha página de facebook.

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    1. Muito obrigado eu! Pelo seu comentário e por ter considerado o texto merecedor de partilha!

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  7. Faço voluntariado num hospital, e, já aconteceu, abordamos um doente que acabou de saber a gravidade do seu problema, eu, falo por mim, dizias essas palavras "ocas", mas confesso que não me sentia confortável em as dizer, mas também não me ocorrem outras!!!...

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    1. E - estou certo - tem ajudado muitas pessoas. Talvez, às vezes, (saberá disso, até pela sua experiência de voluntariado) baste estar-se, dando espaço para a expressão do sofrimento. Muito obrigado pelo seu comentário, Princepezinho.

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  8. Grata por estas palavras. Também partilhei o texto. No meu caso foi a minha mãe que esteve doente e não resistiu. E sim tive que lutar pelo direito à tristeza tanto durante a doença como depois. Durante a doença só me diziam. "Tens que ser forte. Não te quero ver a chorar." Ou então diziam graçolas para amenizar o ambiente ou fosse lá o que fosse. Até que explodi. Disse o que me ia no peito. E os que não choravam passaram a olhar de forma diferente até para as próprias dores. Eu nem estava à espera de tanto. Só queria respeito. Há o tempo de agir. Mas para ter força para ajudar a minha mãe eu precisava deixar sair a dor que se acumulava. E nem todos estão preparados para isto. Aliás muito poucos estão, ao ponto até de me fazerem sentir culpada. Felizmente reconheci a tempo o que precisava na altura e agradeço sempre a Deus por quem se soube manter firme ao meu lado durante e depois.

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    1. Muito obrigado Sónia Gois! Pelo comentário e por ter considerado o texto merecedor de partilha.

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  9. Este texto tb se aplica a quem sofre de depressão....qd nos sentimos no fundo do poço, sem vontade para nada e para ninguém e nos dizem :tens que reagir, tens que ser forte, anda vamos sair, tens que te distrair, pensar positivo e todos esses conselhos de cátedra, capacitem-se que aquilo que mais precisamos é de chorar abertamente, chorar,chorar até cair para o lado, que nos deves estar a sofrer horrores, chora que alivia, estou aqui para ti, fala, diz o que te vai na alma....

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  10. Concordo totalmente que só quem passa por uma situação dessas tenha a noção da realidade.No entanto, à maneira de cada um, dos que estamos de fora, imaginamos uma situação difícil e com a qual não sabemos lidar.Ficamos chocados com essas noticias e sem saber o que fazer ou dizer.

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  11. A consciência das palavras ditas, porque nao sabemos outras e não as sabemos para nós mesmo, e como reagir nestes momentos ajuda-nos a,de facto, a ajudar. Obrigada por este texto em que as palavras me ajudaram a "estar" mais e melhor comigo e com os outros. Bem-haja!

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  12. Muito obrigado eu, pela simpatia do seu comentário! Seja bem-vinda a este espaço

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  13. Não sei, todos somos diferentes. Eu tive cancro - duas vezes, dois cancros de diferente natureza, o segundo nada teve a ver com o primeiro. E sou franca, não sei de que teria precisado, mas sei as necessidades que senti: fugir das palmadinhas nas costas, das conversas da treta sobre quem vence a doença (como se sobreviver fosse sinal de alguma superioridade sobre quem morre), das palavras lugar-comum que as pessoas tanto gostam de dizer sem sentir nada, a não ser talvez um certo bem estar pessoal. Só senti a necessidade de que ninguém soubesse, para que eu conseguisse ter força para encarar o que tinha de ser encarado, fazer o que tinha de ser feito, dar o mínimo de espaço à doença dentro de mim e acreditar que a medicina iria, como sempre, dar o melhor de si por mim. E assim foi. E ainda estou viva. Não sei por quanto tempo (enfim, é certo que ninguém sabe, mas essa incerteza não é igual para todos), mas continuo sem saber dizer do que teria precisado. Não houve espaço para isso. Este é só um testemunho na primeira pessoa.

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    1. Cara Ana Maria Monteiro, muito obrigado pelo seu testemunho. Seja muito bem-vinda a este espaço.

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  14. Vi este texto hoje. E, apesar da situação ser totalmente diferente da descrita ,na sua essência também a mim me querem sonegar o direito a chorar, a fazer a catarse da minha dor. E ainda ouço o tradicional: se fosse uma doença, agora um divórcio em que descobres uma vida de mentiras e uns pais que decidem inventar que os roubas isso não é nada. Pois não. Para elas não é. Para mim é chegar a casa e não ter ninguém porque a minha família são, ou eram, aqueles 3.é não perceber que raio ando eu c fazer aqui. Afinal vou viver para pagar um empréstimo de uma casa,viver na mais profunda solidão até a morte chegar? Deixem me chorar. Quando choro consigo reagir a seguir. Ainda não com a vitalidade necessária, mas cada dia melhora. Permiti me chorar afastar do trabalho (trabalho com crianças, não dava para ir trabalhar deste jeito .)pois lá vem o tens de ser forte, trabalha que até te distrais... Como se os meus alunos fossem um mero passatempo. São crianças que merecem o meu melhor. A minha melhor versão. Choro imenso. Um dia tudo acalmará. Até lá lavo a alma.

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