domingo, 13 de setembro de 2015

E quando o regresso às aulas dá um nó na barriga?

   O João anda elétrico. Tudo o entusiasma no corredor que o hipermercado preparou milimetricamente para o regresso às aulas. Os cadernos, as canetas de feltro, os lápis de minas. O cheiro novo dos manuais. É assim com o João, a Francisca e o Tomás. Mas não com a Filipa, que se arrasta pelo corredor do material escolar, entre as chamadas de atenção irritadas da mãe. A iminência do início das aulas faz soar, dentro de si, todas as campainhas de alarme. Estão a voltar as dores de barriga e as dores de cabeça. As mesmas em que, no final do ano passado, tentava apanhar boleia para não ir à escola pela manhã. As mesmas que valeram uma série de chamadas da Professora a sugerir à mãe que fosse buscar a Filipa porque não se estava a sentir bem. Chegava a ficar pálida e ensopada em suores frios. O veredito médico, suportado em análises detalhadas, não deixa margem para dúvidas: a Maria é, felizmente, uma menina saudável! Saudável, mas completamente dominada por um medo sem fim...
   Sempre muito metida consigo, não tem muitos amigos na Escola. Nem fora dela, na verdade. Tem as competências cognitivas mais do que suficientes para ter sucesso escolar mas, de cada vez que é a sua vez de ler alto fica gelada. Não que não seja capaz de ler. É! Mas a voz fica trémula e a leitura cada vez mais entrecortada, à medida que a sua expressão se fecha cada vez mais e o rubor parece poder rebentar a qualquer momento numa cascata de choro de medo e raiva. Nas fichas de avaliação não é muito diferente: os exercícios são do mesmo tipo dos que fez com a explicadora, sem dificuldades de maior. Mas chegada a hora da verdade, a mão treme e o raciocínio bloqueia.
   A avaliação da Professora, a convicção da explicadora e os resultados dos testes cognitivos a que foi sujeita na escola apontam (todos) no mesmo sentido: não é por falta de competências cognitivas que a Filipa não tem boas performances. Os pais querem muito acreditar nisso, mas parecem ficar presos a uma discrepância por demais evidente entre os 90% do irmão mais velho e as baixas performances da Filipa. Como se nunca, dentro deles, deixasse de remoer, baixinho, a dúvida: “e se a nossa Filipa é mesmo incapaz?”. 
   Mas não é só na matemática e no português que a Filipa parece perder por falta de comparência. Também foi assim no basket: nem a vantagem competitiva de ter uma altura bem acima da média a impediu de desistir (e de jogar de forma desistente desde o primeiro momento). É assim na relação com as crianças da idade dela ou com o irmão, ao pé de quem se coloca, invariavelmente, numa postura de patinho feio.

  Foi-se olhando, vezes de mais, para o sucesso escolar como uma variável diretamente proporcional às competências cognitivas. E, mesmo depois de tantas evidências (teóricas, clínicas e empíricas), para as competências cognitivas como se fossem asseticamente independentes do desenvolvimento afetivo. Como se a crença que os adultos significativos têm nas capacidades da criança fosse um pormenor de somenos importância. Como se fosse compreensível um craque da bola falhar um penalti na final das Champions porque lhe tremem as pernas, mas já não fosse equacionável que uma criança completamente dominada pelo medo (de falhar, de desiludir os pais e os professores, de ser um zero à esquerda ou a “burra oficial” da escola, da família, do bairro, etc.) trave a fundo a expressão de qualquer potencial cognitivo, por mais sofisticado que possa ser. Como se não fosse expectável que uma criança que vai acumulando, dentro de si, equívocos atrás de equívocos - por, invariavelmente, não conseguir entender, desenriçar e traduzir em palavras e em histórias a complexidade do que vai sentindo – possa começar a manifestar, progressivamente, dificuldades nos mais diversos domínios. Como se não fosse natural que a confusão e o medo que poderão daí decorrer se façam sentir de forma cada vez mais vincada e generalizada a várias áreas. Como se sentir-se lida por dentro, investida de expectativas, valorizada nas suas competências e parada com firmeza nos seus exageros, não fizesse a curiosidade e o entusiasmo ganharem terreno ao medo. Como se, quando assim é, não estivéssemos todos (crianças e adultos) muito mais aptos a arriscar para lá do perímetro de segurança. Como se, quando assim é, não estivéssemos todos (crianças e adultos) muito mais próximos do sucesso e da destreza cognitiva. 


Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

4 comentários:

  1. Gostei, de novo, muito do artigo! É por isso que é preciso parar e ouvir, parar e ver, e elogiar e esperar a melhoria genuinamente e insistir e nunca desistir e, no caso do professor, mais do que ensinar, abrir caminho para aprender a descobrir e a acreditar...

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  2. Fantástico :) espero nesta nova etapa da minha vida(entrada do filhote na escola) estar à altura de o deixar ser livre..sem pressões que o limitem!!

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