quinta-feira, 30 de julho de 2015

Férias, Adamastores e outros gigantes.


O Duarte tem 10 anos acabados de fazer. A festa foi rija. Vieram todos os amigos. Todos menos o Frederico. Os pais acharam que ele tinha de ficar a estudar para o exame de Matemática. Rija, mas dominada pelas conversas acerca do exame da próxima semana. Conversa de pais, claro, que o Duarte e os amigos estavam mais interessados em tirar as teimas do 2-2 que a chamada para entrar da Professora impediu de desempatar.

Miúdo de olhar vivo, o Duarte tem boas notas e muitos e bons amigos. As observações negativas da Professora nunca vão além de um “é muito conversador” (o que, como todos sabemos é, à partida, uma espécie de atestado de vida… na ponta da língua). Os exames não vão mexer-lhe com as notas. Pelo menos de forma significativa. Mas, apagadas as velas, o exame aproxima-se a passos largos. A dois dias do exame, a mãe acorda o Duarte à mesma hora de todos os dias. Não, desta vez, o Duarte não salta da cama com o entusiasmo de quem ainda vai ter 20 minutos para jogar futebol antes de entrar na sala. Está envergonhado. Há anos que não fazia xixi na cama. Voltaria a fazer na noite seguinte, e na que se lhe segue, ainda. “Largou tão bem as fraldas. Nunca foi de fazer xixi na cama. O que se passa com o meu Duarte? Andará a abusar da coca-cola?” interroga-se a mãe para com os seus botões…

A Professora – quase sempre empenhada, dinâmica, afetuosa, segura - ao longo de todo o ano letivo, foi procurando serenar as crianças perante o “fantasma” do exame. Mas, desta vez, a serenidade firme que quase sempre acompanhou o “claro que vai correr bem” em momentos de maior insegurança do Duarte e de cada um dos seus colegas (fosse com as notas ou com os torneios inter-escolas) foi sendo levemente contaminada por uma réstia de preocupação. O suficiente para o “claro que vai correr bem” não soar da mesma maneira ao Duarte & Companhia. A Professora – quase sempre bem preparada, segura, empenhada, dinâmica e afetuosa - temia, agora, ainda que ao de leve, que uma possível discrepância entre os resultados da sua avaliação durante o ano e os do exame nacional pudesse abrir o flanco para mais uma pequena bicada (a juntar a outras bem mais substanciais, como a falta de colocação que a tem assolado nos últimos anos) na sua autoestima profissional.

Os pais do Duarte sempre tiveram muito orgulho nas suas notas. Para além disso, sabem bem que, por mais que as notas sejam importantes (e são!), estão longe de ser o mais importante! Orgulham-se, por isso, da “pinta” do filho, das suas fintas e golos e, muito em especial (mais ou menos secretamente), das suas saídas desconcertantes. Como a Professora, o seu “vai correr tudo bem” (seja a propósito das fichas de avaliação, do teatro da festa de Natal, da apresentação pública de viola ou da prova de natação) é quase sempre sereno, firme e afetuoso. Mas, como acontece com a Professora, desta vez parece ser dito com um nadinha de apreensão no olhar. Afinal de contas, um exame nacional é um exame nacional. A Escola mudou muito nas últimas décadas, mas não vá o diabo tecê-las: pairam no ar, lá bem longe, já difusas, as histórias de avós e tios com os exames de 4ª classe, em tempos idos, de muito maior rigidez.
O Duarte tem muita vida no olhar, uma Professora e pais firmes, seguros e afetuosos (ainda que, muito circunstancialmente, possam, porventura, estar a vacilar um bocadinho). Passados três ou quatro dias, a atenção regressa à bola e às balizas, à piscina e à viola, e o controlo dos esfíncteres está de regresso como se nunca tivesse tirado férias para os exames. Felizmente, há muitos Duartes, com pais e professores tão seguros, firmes e afetuosos como os dele. Quando assim é, na pior das hipóteses, os Duartes até podem, muito circunstancialmente, abanar um bocadinho com os exames. Mas nada que não se resolva num abrir e fechar de olhos…
Mas, e se o nadinha de apreensão da Escola, dos Professores e dos pais se transforma numa pressão tal (mais ou menos silenciosa) que, rapidamente, se torna ingerível para qualquer criança? Exigir o melhor do esforço de cada criança está longe de ser sinónimo de pressão alta!

Tenho dúvidas se, do ponto de vista pedagógico, os exames nacionais no 1º ciclo trarão, no contexto atual, muitos ganhos. Mas estou plenamente convencido que, seja como for, o que não fará sentido nenhum é criar-se uma atmosfera tal em torno dos exames das crianças que, de repente, aquilo que até poderia ser visto como uma espécie de “treino precoce de adaptação” para os exames que hão-de vir nos anos mais avançados do Ensino Secundário (ao mesmo tempo que, de uma forma transversal, aferia conhecimentos e competências) se transforme num verdadeiro Cabo das Tormentas (com direito a Adamastor e tudo!), que é preciso dobrar antes das férias grandes. Afinal de contas, exigir o melhor do esforço de cada criança estará muito longe de significar pressão alta!
A fazer fé nas notícias sobre um artigo de opinião inglês (que se tornaram virais nas redes sociais) que sugere que o medo do fracasso está, a passos largos, a querer, nas crianças, destronar o medo do escuro (e que, de resto, coincide, em certo sentido, com aquilo que vou sentindo no trabalho com crianças e pais) será caso para dizer, “mal por mal, volta bicho papão, estás perdoado!”.

Nota: Atendendo ao profundo respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo, nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do blogue - sendo, por vezes, inspirado num ou noutro aspeto de histórias reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal. 

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