O Marco é um tipo de coração grande e abraço
sentido. Para lá de muitas outras qualidades, talvez essas tenham sido
determinantes para construir um amor vivo (mas excessivamente medroso, a espaços)
com a Maria. Inteligente e sensato é um profissional muito diferenciado. Apesar
do gosto pelo trabalho e das competências que indubitavelmente tem, está muito
longe de gerir a vida profissional com o prazer e a serenidade que gostaria (e
que, de resto, as suas qualidades justificariam). Tudo se passa como se se sentisse,
permanentemente, num conflito entre o desejo de arriscar, intervir, inovar… e o
medo de que tudo possa falhar rotundamente.
De cada vez que ousa sobrepor o desejo ao
medo, as suas competências acabam por sobressair, valendo-lhe ganhos
profissionais muitos significativos. Mas não, sem antes, sentir o coração
apertado, muito para lá do razoável. Não, sem antes, dar mil voltas à cabeça, para
se certificar que cumpriu escrupulosamente tudo o que são normas, diretrizes e
regulamentos. Não, sem primeiro, antever os mil e um cenários (que quase nunca se confirmam)
em que as chefias o repreenderão abertamente ou, de forma disfarçada, o colocarão
no lugar, lembrando-lhe que ainda tem que comer
muitas rasas de sal, antes de poder ousar. Como lhe lembra a Maria, entre a
firmeza e a ternura, tudo se parece passar como se sentisse na obrigação de estar,
permanentemente, ora a pedir licença, ora a pedir desculpa… por ser bom!
À boleia deste seu lado medroso, lembra
vários episódios, mais ou menos longínquos, em que foi sentindo este seu lado
criativo, audaz, consequente e corajoso… desvalorizado, apoucado, ridicularizado
até. Recua ao campo pelado da sua infância, para falar da sua estreia em
jogos oficiais. Não cabia em si de tão vaidoso que estava com as chuteiras que comprara de
propósito para aquele dia, à custa das poupanças que conseguira com uma gestão muito
apertada da semanada. Ao intervalo ainda estava 0-0 e o Marco, entre as parcas
oportunidades e a pressão de fazer tudo bem e depressa, não tinha, ainda, conseguido destacar-se. O treinador tinha acabado de lhe aconselhar mais serenidade
na hora de ter a bola no pé, mas tinha-lhe elogiado o espírito de luta. Nada de
grave, portanto… até que o pai entra pelo balneário adentro e, sem mais, se
abeira dele e o aconselha a dar o lugar a um colega, “que seja menos trapalhão.
Já estás muito cansado. É melhor saíres”. Como se isso não bastasse para, num ápice,
transformar o seu brilho nos olhos num olhar cabisbaixo e embaciado (de vergonha, desilusão e raiva contida), o pai continuou num tom jocoso: “ai
achavas que eram as chuteiras que fazem os jogadores”? Escusado será dizer que,
na 2ª parte, as inseguranças do Marco acerca das suas capacidades
futebolísticas se multiplicaram por mil!
Nada que o tenha feito sentir de modo tão diferente assim quando, uns
bons anos mais tarde, tentava intervir - com a sua visão, porventura exagerada,
mas atenta e interessada - nas tertúlias de política nacional em que algumas
vezes se transformavam os jantares de família. Diz-me, comovido: “parece que
ainda consigo ver o ar de desdém do meu pai, secundado pelo meu avô ou pela
minha mãe. E aquele pfu, enquanto revirava os olhos, que antecedia o: tens muito que aprender. Cresce e aparece!
que me deixava furioso! Sabe, eu acho que não queria ter razão. No fundo, acho
que só queria mostrar que já era crescido, que me interessava pelos mesmos
assuntos que eles, que pensava e tinha opinião sobre as coisas. No fundo, no
fundo… acho que só queria que eles se orgulhassem de mim!”
Talvez seja sempre um bocadinho assim.
Quanto mais o caldo afetivo e as oportunidades educativas o potenciam, mais os
recursos se vão tornando robustos com o crescimento. Mas quando, ao mesmo
tempo, se vai crescendo com a ideia de que o desejo de ousar (mesmo que se tenha
de falhar muitas vezes, para fazer cada vez melhor!), está mais próximo de
valer reprovação (mais ou menos aberta) do que encorajamento, talvez as pessoas
se tornem mais inseguras em relação às suas qualidades! Quando o melhor das
suas competências, dos seus sonhos e do seu desejo de crescer parecem valer
mais crítica e apoucamento do que manifestações claras de orgulho, talvez as
pessoas se tornem (todas!) um bocadinho mais
medrosas… na hora de fazer pela vida.
Talvez por isso seja tão importante quem possa de fazer de Maria nas
nossas vidas para, de uma assentada, se orgulhar de nós e nos ajudar a elaborar
esta espécie de angústia de castração
(como lhe foi chamando a Psicanálise) que, tantas vezes, vezes de mais, teima
em inibir o melhor das nossas competências… e do nosso entusiasmo!
Nota: Atendendo ao profundo
respeito pela intimidade das pessoas que me dão o privilégio de guardar as suas
histórias e aos princípios deontológicos a que estou vinculado (de sigilo,
nomeadamente), como não poderia deixar de ser, este, como todos os textos do
blogue - sendo, uma ou outra vez, inspirados num ou noutro aspeto de histórias
reais - está muito longe de corresponder a uma descrição literal.
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